Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Pesquisa avalia curso de alimentação saudável que retoma receitas ancestrais

por Por Isabela Nahas*

terça-feira, 11 de novembro de 2025, 18h12

 

A foto mostra uma fileira de cinco crianças pequenas sentadas em uma mesa. Elas almoçam pratos de comida com arroz e feijão, que já estão quase vazios. No centro e em foco, há uma menina comendo com as mãos e que sorri.

O projeto pretende passar conhecimentos sobre comida de geração em geração – Foto: Lucas Mendes/prefeituradenovalima/Flickr

 

 

Coordenadora geral do Instituto Comida e Cultura (ICC), uma associação sem fins lucrativos, Ariela Doctors realiza um projeto que ensina profissionais de escolas públicas a cozinharem alimentos saudáveis e sustentáveis e retoma receitas ancestrais. O objetivo das aulas do Cozinhas & Infâncias é que as professoras e cozinheiras de escolas públicas de educação infantil passem a transformar os hábitos alimentares das crianças. Em seu mestrado desenvolvido na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, ela analisa como as escolas foram impactadas pela primeira edição do curso em 2023 e 2024, em São Paulo.

 

Ariela Doctors é uma mulher branca, de olhos castanhos, cabelos castanhos, curtos e cacheados. Ela usa um óculos preto, uma blusa verde e um colar de sementes. Ela sorri.

Ariela Doctors – Foto: Reprodução/LinkedIn

 

 

Intitulada Formação de professores para alimentação saudável e sustentável: projeto Cozinhas & Infâncias, a dissertação de Ariela Doctors avaliou a intervenção realizada com mais de 1.200 professoras, cozinheiras escolares e nutricionistas que passaram pelo curso. Elas aprenderam sobre a história da alimentação humana, as culturas que influenciaram a culinária do Brasil e os impactos sociais e ambientais dos sistemas alimentares. As aulas foram realizadas em modelo híbrido, com visitas práticas à FSP.

 

Ariela é formada em Rádio e TV pela USP e foi produtora de programas como Castelo Rá Tim Bum e Telecurso 2000. Depois, foi chef de cozinha e se formou em Educação Sistêmica. Não foi à toa que decidiu criar um projeto que junta educação com comida. “Eu acredito muito nisso, numa educação em que essas sujeitas possam se emancipar e levar suas próprias histórias para dentro da educação. Pode ser uma educação realmente transformadora e verdadeira”, opina a especialista, que agora tem título de mestre em Ciências pela FSP.

 

O Cozinhas & Infâncias é uma parceria do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP com a FSP e o Instituto Comida e Cultura. O programa procura valorizar alimentos saudáveis e naturais de culturas ancestrais, como africanas e indígenas, que foram deixadas de lado e deram lugar a alimentos ultraprocessados, que causam mal à saúde.

 

“Tem um monte de conhecimentos e tecnologias ancestrais relacionados à nossa alimentação que precisam ser resgatados para que os educadores possam se reconhecer dentro dessa história e levar essa educação para as crianças”, diz Ariela. A base teórica para a preparação dos cursos considera que é preciso olhar para a comida como parte central da formação da sociedade, já que “a história do alimento e da alimentação se confunde com a própria história da humanidade”, escreve.

 

No plano de fundo, estão várias mulheres retirando toucas e aventais no Laboratório de Práticas Culinárias da FSP. Elas olham atentamente para Ariela, que está de costas e usa um lenço laranja na cabeça. Entre Ariela e as cursistas, há uma mesa com várias panelas, pratos e colheres com comidas.

Parte do curso ocorreu no Laboratório de Práticas Culinárias da FSP – Foto: Lucas Alves/FSP-USP

 

 

A conclusão do mestrado foi de que “a intervenção parece ter sido mais eficaz para aumentar a conscientização sobre os impactos ambientais dos alimentos ultraprocessados e a importância de alimentos naturais”. As avaliações e o curso tiveram como base instrumentos validados pela FSP, relacionados ao Guia Alimentar para a População Brasileira (GAPB). Já as receitas foram pensadas a partir de ingredientes disponibilizados pela Coordenadoria de Alimentação Escolar (Codae) do município de São Paulo.

 

Em 2023, houve um aumento nas habilidades culinárias domésticas dos professores e no nível de conhecimento sobre o Guia Alimentar. Para as cozinheiras escolares, em 2024, a turma 1 apresentou aumento nas habilidades culinárias e no conhecimento sobre o guia, enquanto a turma 2 não teve ganhos significativos. A autora do mestrado acredita que essa diferença se deu pela menor quantidade de aulas presenciais da turma 2.

 

O Cozinhas & Infâncias não parou em São Paulo. Agora, está no município de Sorriso, no Mato Grosso, já passou pela Chapada dos Guimarães, por Curitiba, no Paraná, e passou no edital Fundo Amazônia na Escola recentemente. “A gente vem tentando fazer com que o Cozinhas & Infâncias possa entrar como processo formativo dentro das redes municipais de ensino para que essas professoras, cozinheiras e nutricionistas possam levar a educação alimentar para o chão das escolas desde a primeira infância”, diz Ariela Doctors.

 

 

Alimentação e desigualdade não estão separadas

 

A obesidade infantil ultrapassou a desnutrição pela primeira vez na história em 2025, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Enquanto a desnutrição entre crianças e adolescentes caiu de quase 13% para 9,2% desde 2000, as taxas de obesidade aumentaram de 3% para 9,4% “Os alimentos ultraprocessados, hoje em dia, são os grandes vilões da história. Eles matam a fome, mas não nutrem os corpos”, explica Ariela Doctors. A ingestão desses alimentos está relacionada ao desenvolvimento de alguns tipos de câncer, diabetes, pressão alta e doenças cardíacas.

 

Essa nova realidade vem sendo chamada por especialistas em saúde de Sindemia Global, termo proposto em 2019 pela equipe do professor de Saúde da População, Boyd Swinburn, da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia. O termo sustenta que a forma como se produz alimentos é o que causa obesidade e desnutrição, o que, junto às mudanças climáticas, agrava desigualdades sociais.

 

“São pandemias que se sobrepõem e que exacerbam umas às outras. E por que mudanças climáticas? Porque a base dessa alimentação ultraprocessada, por exemplo, é feita de produtos da monocultura”, descreve a pesquisadora. Esse tipo de agricultura produz comida em larga escala e recebe insumos fiscais. Por isso, consegue vender a preços baixos. O Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP constatou que, desde 2022, o preço dos alimentos in natura é maior do que o dos ultraprocessados.

 

Ariela Doctors acredita que a educação pode mudar a forma como se produz e consome comida. Por isso, iniciou o Cozinhas & Infâncias. O curso aborda temas como história, geografia, agricultura, meio ambiente, educação e saúde. A junção de áreas busca integrar uma visão que funde conhecimentos científicos com processos alimentares e questões culturais e ambientais. Ao final das aulas, as professoras e cozinheiras elaboraram livros de receitas.

 

Alguns dos pratos presentes nos livros vêm de uma mistura de ingredientes e receitas de tradições de mais de um país. O bolinho puff puff nigeriano com bananas, por exemplo, é uma adaptação do doce frito da culinária africana. Outros são tradicionais brasileiros, como o beiju de massa de mandioca, que mistura tapioca com macaxeira.

 

Como em todo estudo, a pesquisa de Ariela tem limitações, como reconhece a pesquisadora. Os números das avaliações, por exemplo, não revelam como as cursistas vivenciaram o Cozinhas & Infâncias ou se começaram a valorizar mais a culinária tradicional. Além disso, o método de avaliação não passou por um processo de validação acadêmica, que precisa ser feito por especialistas.

 

Apesar das limitações, os diálogos durante as aulas demonstraram efeitos positivos da estratégia de ensino. “Eu vejo que elas [as cursistas] saem empoderadas, percebendo o quanto o conhecimento delas é importante. É um conhecimento que fica de escanteio, mas que é só você dar uma brecha para que ele apareça”, relata Ariela. Nessa retomada de infâncias passadas, o curso pretende ensinar às crianças de hoje em dia sobre comida para que elas repassem esse conhecimento para o futuro da sociedade.

 

*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles

 


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