Princípio da Insignificância e requisitos subjetivos
por Áurea Maria Ferraz de Sousa e Luiz Flávio Gomes
terça-feira, 01 de junho de 2010, 13h05
Há algum tempo a discussão acerca do princípio da insignificância deixou de recair sobre sua admissibilidade, pois doutrina e jurisprudência já o reconhecem amplamente. No entanto, a maior dificuldade que continua a circundar a matéria está na esfera dos seus limites e critérios de aplicação. Acórdãos conflitantes existem muitos.
Duas decisões quase que simultâneas do STF, uma da Primeira e outra da Segunda Turma, representam de maneira clara esta contradição constatada nos Tribunais nacionais:
1ª Turma: princípio da insignificância não pode servir para estimular condutas delituosas
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou Habeas Corpus (HC 96202) para M.F.P., condenado pela tentativa de roubo de uma bolsa feminina de couro, uma agenda e objetos pessoais da vítima (uma senhora de 63 anos) e a importância de R$ 49,00. O crime ocorreu em 2006 em Porto Alegre, capital gaúcha. O relator do caso, ministro Ayres Britto, negou a aplicação do princípio da insignificância, que para ele não pode servir para estimular condutas delituosas.
M.F.P foi pego logo após os fatos narrados na denúncia. Após responder ao processo penal, M.F.P foi condenado à pena de seis meses, convertida em prestação de serviços à comunidade. A Defensoria Pública da União sustentava, no HC, que deveria ser aplicado ao caso o princípio da insignificância, com base na pouca expressividade financeira dos objetos que se tentou subtrair – R$ 185,00.
Em seu voto, o ministro frisou que "a aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa, isso para evitar que a irrelevância como verdadeiro indiferente penal seja aplicada para estimular condutas atentatórias aos bens jurídicos tutelados pelo direito penal".
Nesse sentido, o ministro Ayres Britto explicou que os autos relatam a existência de uma extensa ficha penal em nome de M.F., chamado pelo tribunal de origem de delinquente contumaz, "tendo em vista os sucessivos processos criminais e condenações definitivas por delitos contra o patrimônio". Esclareceu, ainda, que "o réu, ‘mediante luta corporal com a vítima’, pessoa idosa de 63 anos, causou a ‘ruptura do tendão do braço direito’". Tudo a significar que "a aplicação do princípio da insignificância penal funcionaria no caso como um "incentivo ao cometimento de novos delitos", concluiu o ministro, sendo acompanhado pelos demais membros do Colegiado.
Ministro Celso de Mello concede liminar para homem que furtou o equivalente a R$ 220,00
O ministro Celso de Mello concedeu habeas corpus (HC 103657) em caráter liminar a H.S.N., preso por ter furtado o equivalente a R$ 220,00. Ele aplicou ao caso o princípio da insignificância, frisando que o bem foi retirado da vítima sem violência física ou moral.
A ordem do ministro foi de suspender cautelarmente a eficácia da condenação penal imposta pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul até que o habeas corpus no Supremo tenha o mérito julgado pela Segunda Turma.
Para o relator, cabe ao caso o entendimento de que o Estado deve intervir o mínimo possível em matéria penal. Ele considerou, na análise da relevância do crime, que houve ofensividade mínima da conduta do acusado, falta de periculosidade social da sua ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e que foi inexpressiva a lesão jurídica provocada por ele.
Além disso, Celso de Mello lembrou que a privação de liberdade e a restrição dos direitos do indivíduo são justificáveis apenas se estritamente necessários à proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos. "Notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade", diz a jurisprudência da Corte citada pelo ministro na decisão liminar.
A primeira decisão não aplicou o princípio da insignificância ao fato que se consubstanciou na tentativa de roubo cujo desfalque patrimonial seria de R$ 185,00. Por outro lado, o Min. Celso de Mello aplicou o mesmo princípio a um caso de furto equivalente a R$ 220,00. No primeiro caso o Ministro Ayres Britto levou em consideração, inclusive, fatores subjetivos, tais como os antecedentes criminais do infrator. Sobre esse ponto ainda existe muita confusão na jurisprudência.
Veja-se. Os critérios que orientam o princípio da insignificância são somente os do desvalor do resultado e do desvalor da conduta.
O que se constata na primeira decisão é adoção de uma linha de raciocínio, segundo a qual, para o reconhecimento da infração bagatelar não basta a constatação do desvalor do resultado ou da ação, mas há, ainda, a verificação de exigências imprescindíveis. Ou seja: o fato é penalmente irrelevante quando são insignificantes cumulativamente o desvalor do resultado, o desvalor da ação e o desvalor da culpabilidade do agente. Em outras palavras, quando todas as circunstâncias judiciais - culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos do crime, consequências, circunstâncias etc. - sejam favoráveis.
Não se pode fazer essa confusão: a insignificância relaciona-se ao injusto penal, nada tendo com os critérios subjetivos típicos da reprovação da conduta, que se relacionam com a culpabilidade (necessidade da pena).
Dessa forma, acertada e técnica é a decisão que considera a ofensividade mínima da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressiva relevância do crime para considerar como insignificante a conduta do paciente.