Denúncias de racismo on-line aumentam e têm mulheres negras como principais vítimas
por Maria Eduarda Oliveira*
terça-feira, 16 de setembro de 2025, 14h35

Análise aponta que racismo e misoginia se encontram em discursos de ódio on-line – Fotomontagem Jornal da USP com imagens de Freepik
Um estudo da iniciativa baiana Aláfia Lab, que faz um trabalho focado em mesclar tecnologia com tópicos sociais, analisou 1.651 denúncias de racismo e injúria racial registradas no Disque Direitos Humanos (Disque 100), entre janeiro de 2011 e abril de 2025. Os dados revelam que o número de ocorrências cresceu exponencialmente no Brasil a partir de 2020, quando o Disque 100 registrou 217 casos em comparação a apenas seis do ano anterior, um aumento de quase 35%, enquanto em 2024 houve um recorde com 452 denúncias. O levantamento também mostra que mulheres negras aparecem como as principais vítimas.
Para Celso Eduardo Lins de Oliveira, professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP e diretor executivo do Aqualtune Lab, coletivo jurídico multidisciplinar dedicado a analisar as relações entre direito, tecnologia e raça, o aumento se dá tanto por maior conscientização de que racismo é crime quanto por um crescimento na ideia de que o direito à liberdade de expressão é uma licença para reprodução de preconceito. “Esse pensamento de defesa da suposta liberdade de expressão leva muita gente a ter manifestações racistas que antes não teria”, diz.
Entre os dados encontrados sobre as vítimas está que mulheres são 61% das afetadas, enquanto homens aparecem como 38%. A pesquisa identificou que 90% das vítimas de racismo digital são negras, sendo que 66% se declaram pretas e 24% pardas. Em geral, pessoas de pele mais escura costumam ser as mais agredidas. Para traçar o perfil dos grupos mais vulneráveis a ataques, foi realizado um recorte no período entre o segundo semestre de 2020 até o primeiro semestre de 2022.
Interseccionalidade
O fato de mulheres negras serem as principais vítimas integra outro fenômeno geral dos últimos anos: o crescimento da misoginia na internet. Um relatório publicado em dezembro de 2024, produzido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com o Ministério das Mulheres, analisou influenciadores no YouTube que monetizam discursos de ódio contra mulheres. Os conteúdos observados somam quase 4 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentários, com mais de 105 mil vídeos publicados entre 2018 e 2024. O alto engajamento mostra a potência desse ódio na internet.

Gráfico: Extraído da pesquisa Brasil, Mostra Sua Cara: Retrato das vítimas de racismo online e o anonimato de seus agressores
Mas ainda que mulheres no geral sejam as maiores vítimas de violência, mulheres negras continuam sendo o maior alvo de preconceito e agressões on-line. “Isso diz muito sobre como raça e gênero acabam se inter-relacionando e produzindo resultados e vulnerabilidades específicas para essas mulheres [negras] no âmbito da violência. Elas seguem mais desprotegidas e com mais dificuldade de acesso à proteção e são as principais vítimas de violência”, afirma Patrícia Oliveira de Carvalho, doutoranda em direito na Faculdade de Direito (FD) da USP e autora do livro Insubmissos Relatos de Mulheres Negras: raça, violência doméstica e o sistema de justiça.

Celso Eduardo Lins de Oliveira – Foto: Arquivo pessoal
Segundo o professor Celso de Oliveira, a falta de mulheres negras em cargos de decisão faz com que a sociedade veja essa figura como de fácil acesso para ataques, sem que haja consequências reais pelo ato. “Se a gente for ver quantas mulheres negras têm no Congresso Nacional, na Assembleia Legislativa ou como delegadas de polícia, vamos ver que esse é um grupo sub-representado”, diz o docente. Oliveira ressalta que essa sub-representação é uma contradição em relação ao perfil populacional do Brasil. “Estamos falando do maior grupo étnico da sociedade brasileira. Os negros são maioria e as mulheres também”, explica.
Responsabilização
Devido ao anonimato possibilitado pela internet, a maior parte das vítimas não consegue fornecer informações sobre os suspeitos, como cor, idade ou gênero. Nos casos em que essas características foram identificadas, em 70% das vezes os agressores são brancos, em sua maioria homens (55%), com idade média entre 25 e 40 anos. Mas, na opinião de Oliveira, esse anonimato na realidade é uma falsa impressão. “O anonimato gera no racista a ideia de que ele não pode ser culpabilizado, de que não vai ter nenhuma consequência. Por outro lado, o que garante esse pensamento é a inação das plataformas e, muitas vezes, do Estado, que não faz averiguação. Se for investigado, eles podem sim chegar aos reais culpados”, explica. O professor ainda diz que existem poucas delegacias e profissionais em território nacional que são adequadas para acolher denúncias envolvendo crimes digitais, o que dificulta o avanço de políticas públicas adequadas.

Patrícia Oliveira de Carvalho – Foto: Arquivo pessoal
Segundo Patrícia, “esse é um problema complexo que vai demandar respostas igualmente complexas para que sejam efetivas. O primeiro ponto é avançar na regulamentação e isso já está no debate público há um tempo”.
A especialista comenta que a decisão no julgamento do Superior Tribunal Federal (STF), em junho deste ano, sobre a inconstitucionalidade do artigo 19 da Lei nº 12.965 de 2014, o Marco Civil da Internet, foi um passo importante. Anteriormente, as plataformas só podiam ser responsabilizadas por conteúdos postados pelos usuários se houvesse ordem judicial determinando a remoção, um processo mais demorado que fazia com que as vítimas esperassem um longo tempo até a remoção do ataque.
Agora, as plataformas digitais podem responder legalmente por manter postagens ilegais no ar, ainda que feitas por terceiros. A exclusão deve ser feita mesmo sem a existência de uma decisão judicial, exigindo apenas um aviso extrajudicial prévio, isso significa que a empresa tem a obrigação de apagar matérias que envolvem práticas misóginas e racistas.
“A rede social é, na realidade, uma empresa que está ganhando dinheiro e, como qualquer empresa em que ocorre um crime no seu interior, ela também tem que ser responsabilizada”, afirma Oliveira. O professor acredita que as informações que essas empresas possuem devem ser utilizadas como ferramentas de investigação. Patrícia diz que houve um avanço no assunto, “mas muito pode ser melhorado” e que “as redes sociais têm total condição de disponibilizar canais de denúncias e apurações mais efetivos, mas a gente não percebe uma eficácia sendo direcionada para criar um ambiente on-line mais saudável para todas as pessoas que o utilizam”.
Os dados da pesquisa, intitulada Brasil, Mostra Sua Cara: Retrato das vítimas de racismo online e o anonimato de seus agressores, realizada por Letícia Alcântara, jornalista e doutoranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), foram recolhidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). O estudo faz parte de um projeto intitulado Observatório de Racismo nas Redes, desenvolvido desde 2022 pela Aláfia Lab, com o objetivo de ampliar os mecanismos de vigilância e combate ao racismo nas plataformas da internet.
*Estagiária sob supervisão de Antônio Carlos Quinto e Silvana Salles