Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Cuidado sensível ao gênero: como conceito pode favorecer tratamento de usuárias de drogas

por Gabriela Nangino*

quinta-feira, 02 de outubro de 2025, 13h55

 

Braços de uma mulher fazendo uso de drogas

Segundo edição recente do Relatório Mundial sobre Drogas da ONU, apenas uma em cada 18 mulheres com transtornos por uso de substâncias recebeu tratamento, em comparação com um em cada sete homens – Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

 

O consumo abusivo de álcool entre brasileiras quase dobrou entre 2006 e 2023, passando de 7,7% para 15,2%, segundo dados da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel). Segundo Pedro Bacchi, pesquisador do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP, o preconceito social que recai sobre mulheres dependentes de drogas culmina na ausência de redes de apoio e dificulta o acesso ao tratamento adequado. 

 

“Para as usuárias, todas as vulnerabilidades se exponenciam. Elas são mulheres, sofrem estigma da população, têm dificuldade de acessar serviços de apoio e, quando acessam, podem sofrer reproduções dos traumas que viveram durante a vida”, comenta. Este aumento ainda expõe um problema histórico: o despreparo do sistema de saúde para lidar com especificidades de gênero. Mas o que a ciência já sabe sobre o assunto?

 

Entre 2004 e 2006, o Programa da Mulher Dependente Química (Promud) do ambulatório do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP foi expandido para a cidade de São Paulo, com o apoio da Secretaria Municipal da Saúde. Desenvolvido em 1996 pela psiquiatra Patrícia Hochgraf e a psicóloga Silvia Brasiliano – atuais coordenadoras –, o serviço propôs estratégias especializadas para o cuidado feminino, em detrimento de um tratamento único para ambos os gêneros. 

 

 

Rosto de homem branco de bigode sorrindo para a foto

Pedro Starzysnki Bacchi – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Com fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o modelo de atendimento do Promud foi reproduzido em dois Centros de Atenção Psicossocial (Caps), na região do centro, próximo à Cracolândia, e no bairro Jardim Nélia, região periférica leste da capital; 20 anos depois, os resultados da implementação permanecem pouco debatidos, e quase nenhuma mudança foi adotada nos protocolos para consumo de substâncias. Para Bacchi, este é um reflexo da invisibilização do sofrimento das mulheres frente ao transtorno. “Mulheres são muito sub-representadas, historicamente, em pesquisas clínicas”, critica.

 

“A escassez de evidências no campo da saúde mental feminina impulsionou o psiquiatra a retornar a essa experiência e avaliar, retrospectivamente, o que ainda pode ser aprendido e oferecido a esse grupo. O exercício resultou em um artigo publicado no periódico internacional Archives of Women’s Mental Health, que analisa o tratamento de 200 mulheres inscritas nos programas da época. “O objetivo inicial foi mostrar que é possível tratar mulheres a partir das suas próprias necessidades e particularidades, e isso poderia ser feito dentro de equipamentos que já existissem no SUS, sem custo adicional”, justifica Silvia Brasiliano.

 

Os cientistas compararam a retenção no tratamento nos três locais para desvendar fatores de risco associados ao abandono e identificar disparidades sociais, regionais e individuais entre as mulheres. “Vamos valorizar uma política pública tão importante que foi feita, e mostrar como esses espaços podem ter um efeito na sociedade”, comenta Bacchi. 

 

 

mulher de cabelos e pele claros, sorri e usa uma camisa estampada em tom verde

Silvia Brasiliano – Foto: Promud / reprodução Facebook

 

 

Cuidado sensível ao gênero: o que é?

 

Segundo pesquisa global realizada com especialistas em saúde feminina, o cuidado sensível ao gênero (do termo no inglês gender-sensitive care) refere-se a abordagens clínicas que reconheçam como o sexo biológico, a identidade e os papéis socioculturais de gênero afetam a saúde mental, a apresentação de sintomas, o acesso ao cuidado e os resultados do tratamento. Para o pesquisador, conhecer as dinâmicas de socialização das mulheres é fundamental para entender por que elas recorreram às drogas e como se mantém o ciclo da dependência. “Entre as usuárias de substância é regra, não exceção, ter outra condição de saúde mental. Nos homens, não”, compara.

 

Ambientes exclusivos para mulheres aumentam a segurança psicológica, o engajamento terapêutico e a adesão ao tratamento. “As mulheres têm experiências próprias do seu universo que não aparecem em grupos mistos, referentes a sexualidade, traumas, violências e abusos. Mulheres sentem-se melhor falando desse tipo de intimidade com outras mulheres”, comenta Silvia.

 

 

Fachada do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP

A equipe é composta de psiquiatras, residentes, psicólogos, nutricionistas e uma advogada – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

 

Com tempo ideal de permanência de dois anos, o Promud é estruturado de forma a oferecer apoio integrado: o objetivo é trabalhar toda a gama de desafios enfrentados pelas mulheres – desde comorbidades e histórico de trauma até vulnerabilidades associadas ao vício.

 

Alguns dos serviços oferecidos aos participantes são avaliação psiquiátrica, tratamento farmacológico, terapia ocupacional e consultoria jurídica, com foco no direito de família da mulher. “A advogada que dá assistência legal às nossas pacientes é muito importante, principalmente em casos de violência doméstica”, exemplifica Silvia.

 

Além disso, o programa inclui aconselhamento nutricional, assistência social e terapia em grupo. “É muito comum a comorbidade com depressão, ansiedade ou transtornos alimentares”, acrescenta. O trabalho de doutorado da pesquisadora evidenciou que, quando abstinentes, muitas mulheres desenvolvem compulsão alimentar.

 

 

Fatores de risco

 

O fator individual que mais influenciou na retenção das pacientes no Promud foi a faixa etária. De acordo com cálculos de análise proporcional, um ano a mais de vida reduziu o risco de abandono em 5,9%. ”Com o envelhecimento, tendem a diminuir traços como impulsividade, desinibição, necessidade de gratificação imediata, e aumenta-se o vínculo com projetos a médio prazo, a regulação emocional e a permanência no programa”, explica Silvia. Pesquisas prévias também apontam que dificuldades cognitivas e a presença de transtornos de personalidade propiciam o abandono. 

 

O território, por sua vez, está relacionado ao perfil das mulheres e ao sucesso da intervenção. O ambulatório do HC está localizado em uma área nobre de São Paulo, com infraestrutura robusta e recursos de acessibilidade. O Jardim Nélia (JN) é uma área periférica, marcada por serviços públicos limitados e comunidades de baixa renda. A região do centro, por sua vez, é caracterizada por marginalização, desemprego e vulnerabilidade ​​social, incluindo muitas pacientes com histórico de trabalho sexual e falta de moradia.

 

O HC teve uma porcentagem maior de pacientes brancas (70,0%, comparado a 45,2% no JN e 34,5% no Centro), com níveis de educação mais altos (33,8% diploma universitário, comparado a 1,6% e 0%) e empregadas (51,3%, comparado a 43,5% e 19,0%). O hospital também apresentou uma proporção maior de pacientes cuja principal substância de dependência era a cocaína (20,0%, em comparação com 12,1% no JN e 8,1% no Centro), enquanto o JN e o Centro apresentaram mais pacientes dependentes de crack (19,4% e 17,2%, respectivamente, em comparação com 7,5% no HC). 

 

 

Mapa de São Paulo dividido em regiões, sinalizando a localização do ambulatório do HC da FMUSP, em azul, o CAPS do Centro em vermelho, o CAPS Jardim Nélia, no leste, em amarelo.

Segundo os autores, o território é um componente inseparável dos processos sociais, não apenas um espaço físico onde esses processos ocorrem. Em azul, o HC, em vermelho, o Caps do Centro e, em amarelo, o Caps JN – Imagem: Retirada do artigo

 

 

A taxa de retenção após dois anos foi próxima entre o HC e o JN (44,8% e 42,4%), mas, no Centro, foi muito menor – apenas 17,3%. Esses resultados indicam que a renda, por si só, não foi um fator determinante, mas sim a adequação do programa às necessidades das comunidades. “O Jardim Nélia e o Centro têm semelhanças de vulnerabilidade, mas o Jardim Nélia é um lugar territorializado: os pacientes conhecem aquele território, têm uma comunidade e rede de suporte”, comenta Bacchi. 

 

No Centro, ambiente de menor coesão social, os indivíduos contam com pouco apoio. “Era um lugar de moradia instável, muitas pessoas em situação de rua, e o programa não se adaptava” explica Silvia. “Por estar próximo à Cracolândia as mulheres conviviam o tempo todo com outros usuários, e isso influencia negativamente na retenção.”

 

 

A ciência da implementação

 

Hoje, os Caps contam com diretrizes que podem não comportar o modelo ambulatorial hospitalar do Promud. Segundo Bacchi, os pesquisadores estão discutindo a expansão de propostas adaptadas, de forma que não comprometa os princípios dos centros. “[Os Caps] não podem impedir uma paciente de voltar ou desligá-la do tratamento de acordo com a constância e nem sempre podem separar um espaço físico apenas para mulheres”, exemplifica.

 

O cientista afirma que a implementation science, campo de pesquisa que estuda a aplicação de estratégias baseadas em evidências na prática diária, passou por importantes mudanças nas últimas duas décadas: “Na época, o serviço foi simplesmente copiado em três lugares; hoje isso precisaria ser feito de forma mais personalizada”.

 

Para ele, uma perspectiva futura é mapear os Caps e Unidades Básicas de Saúde (UBSs) de São Paulo para entender em qual nível um cuidado sensível ao gênero pode ser implementado – alguns locais, por exemplo, já propõem grupos de terapia para mulheres. “Podemos identificar elementos importantes do Promud e levar essas informações adiante para estimular, na atenção primária, maneiras de capturar as mulheres”, afirma Bacchi. “A ideia não é trazer uma proposta rígida, mas algo como um letramento, uma complementação da formação”, conclui.

 

O artigo Expanding gender-sensitive and equitable substance use care models: treatment retention analysis of the women’s drug dependent treatment program (Promud) replication in psychosocial units in Brazil está disponível on-line e pode ser lido aqui.

 

Mais informações: pedrobacchi@gmail.com, com Pedro Bacchi

 

*Estagiária sob orientação de Luiza Caires e Tabita Said

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorad

 

 


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