Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Jovens universitários indígenas podem contribuir com a saúde do planeta, diz artigo

por Isabela Nahas*

segunda-feira, 13 de outubro de 2025, 13h10

Quatro homens indígenas usando ornamentos de penas e pinturas corporais seguram lanças, que apontam na direção da câmera

Pesquisadores do Brasil, Hungria, Espanha e Ilhas Maurícias se reuniram para ouvir a juventude indígena Kaingang – Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula/Flickr

 

Um artigo assinado por pesquisadores indígenas e não indígenas, da USP e do exterior, destaca que jovens universitários que cresceram em terras tradicionais podem contribuir positivamente para a saúde do planeta Terra. Quando transitam entre as terras indígenas e a universidade, esses estudantes tendem a valorizar mais os conhecimentos ecológicos tradicionais, o que pode contribuir tanto para a preservação da natureza quanto para a manutenção das culturas originárias. O artigo foi publicado em junho na revista científica Proceedings of the Royal Society B.

 

Pesquisas que incluem jovens indígenas para pensar a preservação do planeta têm crescido nos últimos anos. O artigo publicado propõe um tipo de diálogo que equipara os conhecimentos das populações tradicionais aos acadêmicos. “Foi muito interessante juntar todas essas perspectivas diferentes e poder trabalhar de igual para igual”, diz Ariadne Dall’acqua, primeira autora da pesquisa.

 

 

Ariadne é uma mulher de pele clara. Tem cabelos castanhos longos e lisos, com mechas mais claras. Usa uma regata preta, brincos de argola e posa sorridente para a foto, em frente a um corpo d'água

Ariadne Dall’acqua Ayres – Foto: Lattes

 

 

Ariadne é bióloga e doutoranda em Biologia Comparada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. Desde o mestrado, ela entra em contato com jovens universitários da etnia Kaingang em aldeias do Paraná para entender como seus conhecimentos podem contribuir com a ciência e o meio ambiente.

 

[Os jovens] são importantes para as discussões sobre o futuro. Não só do território, mas também da natureza, dos conhecimentos que existem ali. Eles trazem uma visão totalmente diferente sobre as preocupações ambientais, o que é muito importante para a gente como sociedade em geral.
— Ariadne Dall’acqua, bióloga e primeira autora do artigo

 

 

O texto contou com a contribuição de mais sete autores: Fernanda Brando, professora do Departamento de Biologia da FFCLRP, Zsolt Molnár, etnoecólogo e botânico húngaro, Mercedes Bartolomé, antropóloga e socióloga espanhola, Yildiz Aumeeruddy-Thomas, antropóloga e ecóloga mauriciana, Joel Anastácio, agrônomo Kaingang, Camila Silva, estudante de Ciências Sociais Kaingang, e Jociele Luiz, pedagoga e ativista Kaingang.

 

Os pesquisadores entrevistaram 11 indígenas universitários, de 18 a 30 anos. Os nomes de cada um foram substituídos por números para preservar suas identidades. Com base nas memórias dos estudantes e na análise dos coautores indígenas, o artigo busca relacionar as práticas tradicionais às listadas pelo Nature Contributions to People (NCP). O NCP é um conjunto de diretrizes sobre como melhorar a relação entre humanos e natureza, criado pela Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES).

 

 

Infográfico relaciona cinco balões temáticos com falas de entrevistados na pesquisa. Título: Relação entre conhecimentos tradicionais e as contribuições humanas para a natureza reconhecidas pelos pesquisadores indígenas. Tema - Alimentos tradicionais: 'Se plantarmos mandioca ou milho na época errada, ou na fase errada da lua, isso causaria pragas e apodreceria o subsolo, mas os mais velhos tinham o momento certo para plantar', E07. Tema - Regras e práticas da calça: 'Quando os indígenas caçam, não pegamos muitos animais, matamos apenas um por vez. Entendemos as épocas de acasalamento e, sabendo disso, não caçamos esses animais', E04. Tema - Plantas medicinais: 'Eu ajudava meu pai a preparar remédios, costumávamos buscar eles na mata e secávamos as plantas em um galpão à sombra, pois com o sol elas perdiam suas propriedades curativas', E10. Tema - Trocas de sementes: 'Pinhão e milho são muito utilizados, por isso são frequentemente trocados entre vizinhos, parentes e amigos nas terras indígenas próximas', E03. Tema - Modo de vida: 'Na terra indígena, moramos perto uns dos outros, deixando os arbustos e as árvores. Uma casa fica longo da outra, com mais ou menos 300 metros de distância', E06.

Imagem: Diagrama adaptado e traduzido com base no artigo

 

 

Quem são os Kaingang?

 

A etnia indígena Kaingang está espalhada, principalmente, pelos estados da região Sul do Brasil. Ela se divide em dois clãs – Kamé e Kanhru – que definem a dinâmica dos casamentos e da economia, marcada pela agricultura. No Paraná, a população ocupa regiões de Mata Atlântica. O bioma se destaca pela presença de araucárias, espécie em extinção e que é proibida de ser cortada.

 

Eu acho que, preservando a natureza, nós também preservamos e valorizamos nossa cultura, porque uma coisa está ligada à outra.
— Entrevistado 5

 

 

Segundo o artigo, estudantes relataram que alguns dos conhecimentos transmitidos nas faculdades já haviam sido aprendidos por eles na própria terra indígena. A coautora Jociele Luiz, Kaingang da Terra Indígena Mangueirinha, localizada no sul do Paraná, diz que passou pelo mesmo no curso de Pedagogia.

 

Jociele recebeu o diploma de pedagoga no início deste ano e é ativista das causas dos povos tradicionais. Na COP30, ela participará da Zona Azul, palco de negociações oficiais. “A gente não pode falar da natureza sem nossos corpos, sem nossos territórios, sem nossa cultura viva, sem nossas ancestralidades. Acho que a natureza somos nós e tudo que ela nos representa”, ela define.

 

A ativista também enfrentou problemas semelhantes aos relatados pelos jovens entrevistados. Jociele relata que, quando entrou na faculdade pela primeira vez, em 2010, na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), um dos professores do curso de Direito disse a ela: “Nossa, você optou pelo Direito? Você não vai terminar, você não vai chegar lá. É muito difícil para você”. Os choques de realidade e o preconceito a fizeram desistir do curso.

 

Mas a vontade de terminar os estudos se manteve e, em 2020, Jociele entrou na Unicentro. Após concluir a graduação em Pedagogia, ela olha para o futuro. “Eu espero que eles [os jovens] não sofram o que a gente sofreu, não é? Não sofram racismo, nem preconceito. Acho que sempre vai ter, mas a gente espera que seja numa dose pequena”, diz.

 

 

Memórias de um outro passado?

 

O artigo reitera que as narrativas contadas pelos entrevistados podem, em alguns casos, refletir memórias idealizadas em vez da realidade. As transformações que o tempo traz podem modificar os lugares, e aspectos positivos podem mascarar problemas. Jociele afirma que existem hierarquias onde vive, e que jovens e mulheres podem enfrentar dificuldades para se posicionarem e serem ouvidos.

 

 

Jociele é uma mulher indígena. Tem cabelos pretos, lisos, cortados na altura do ombro. Usa um ornamento de penas na cabeça, pintura tradicional com padrão geométrico sobre as maçãs do rosto e batom vermelho nos lábios.

Jociele Luiz – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Nos últimos anos, os noticiários têm divulgado alguns conflitos internos na Terra Indígena Mangueirinha, relacionados a um esquema de exploração ilegal de madeira. Em agosto, o cacique José Carlos Gabriel foi preso com mais três pessoas por suspeita de contribuírem com uma quadrilha de desmatamento de vegetação nativa, segundo o Ministério Público Federal.

 

Jociele opina que “se eu não tivesse saído do meu território para estudar, eu também estaria nesse ciclo. Então, acho que dar oportunidade à juventude para sair do território, estudar e levar esse pensamento de voltar para o território e aplicar [o conhecimento] dentro dele é importantíssimo”. Ariadne concorda e sugere: “Os anciãos têm um conhecimento tradicional muito mais profundo, realmente, mas, pensando nessa transformação necessária para um futuro em direção à sustentabilidade, é muito importante ouvir os jovens”.

 

 

Existem estudantes indígenas na USP

 

Segundo dados do Questionário PRIP: Inclusão e Pertencimento na USP, publicado neste ano, apenas 0,2% dos mais de 59 mil graduandos da Universidade são indígenas. Iamandu Karaí é um deles. Aluno do primeiro ano da Faculdade de Direito (FD) da USP, ele considera sua entrada na faculdade muito significativa e quer servir de exemplo para seus primos e irmãos mais novos.

 

 

Iamandu é um jovem indígena. Tem cabelo castanho escuro, curto e liso. Usa um piercing acima do queixo e moletom com capuz. Está em frente a um monte com vegetação rasteira.

Iamandu Karaí – Foto: Reprodução/Instagram

 

 

Iamandu é da etnia Guarani Mbya, grupo que ocupa diversos estados do Brasil, principalmente nas regiões Sudeste e Sul, e outros países da América Latina. A infância e a adolescência do jovem foram marcadas por idas e vindas entre aldeias e o meio não indígena. Ele acredita que é a saudade que faz com que os jovens que se mudam de terras tradicionais para o meio urbano valorizem o lugar de onde vieram.

 

Iamandu escolheu o Direito para contribuir com o movimento indígena. “Eu queria trabalhar com a questão da demarcação de terras. Tem muita terra ainda para ser demarcada. Muita violência acontecendo. E eu queria poder fazer alguma coisa para ajudar”, conta o estudante. Mas ele diz que as questões tradicionais são pouco tratadas no curso. “A gente está no Brasil, tá ligado? Tem mais de 300 línguas [indígenas] faladas hoje em dia e uma das maiores faculdades de direito da América Latina, se não a maior, não fala sobre a questão indígena como matéria obrigatória”, critica Iamandu.

 

Nos conteúdos programáticos da FD, não há nenhuma matéria dedicada inteiramente aos direitos e conhecimentos dos povos tradicionais. Algumas disciplinas têm pautas indígenas nos conteúdos, como Direito Agrário, que cita reservas indígenas, e História do Direito II, que apresenta o direito indígena.

 

 

*Estagiária sob supervisão de Antônio Carlos Quinto e Silvana Salles

Fonte: Jornal USP.


topo