Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

“Eu me sinto atacada”: o que pensam adolescentes trans sobre as restrições do Conselho Federal de Medicina

por Maykon Almeida*

quarta-feira, 15 de outubro de 2025, 13h49

Pesquisadores da USP realizaram grupos focais para conhecer as opiniões de adolescentes trans, pais e cuidadores – Foto: Foreign, Commonwealth & Development Office/Flickr/CC BY 2.0

 

Uma pesquisa, realizada no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, aponta que adolescentes transgêneros, seus pais e cuidadores veem a Resolução nº 2.427/2025 do Conselho Federal de Medicina (CFM) como um retrocesso, uma regra ideologicamente motivada e sem embasamento científico. Promulgada em abril deste ano, a resolução veta a terapia hormonal para menores de 18 anos e proíbe a prescrição de bloqueadores hormonais da puberdade em crianças e adolescentes com disforia de gênero.

 

A Resolução nº 2.427/2025 também invalida uma regra anterior. Trata-se da Resolução nº 2.265/2019, também do CFM, que ampliou o acesso a tratamentos hormonais em adolescentes transgêneros. Para especialistas envolvidos na pesquisa, “restringir o acesso a esses cuidados pode agravar ainda mais as vulnerabilidades estruturais e psicossociais vivenciadas por essa população”. Os resultados foram descritos em artigo disponibilizado em versão preprint, que aguarda a revisão por pares.

 

Bruna é uma mulher branca, com longos cabelos lisos da cor castanha. Ela usa uma camisa verde-militar.

Bruna Mazzolani – Foto: Lattes

 

Para o estudo, foram realizados entre maio e junho nove grupos focais, com 31 adolescentes transgêneros que recebiam cuidados no Amtigos no momento do estudo e 21 cuidadores. O grupo focal é uma técnica de pesquisa que consiste na coleta de discursos por meio de debates sobre tópicos específicos entre os participantes, estimulados por um mediador. Para os pesquisadores da FM, a escuta por meio desses grupos permite capturar a complexidade das experiências e emoções dos participantes afetados pela resolução. Segundo eles, “ao centralizar essas vozes, o estudo busca informar políticas mais éticas, baseadas em evidências e políticas inclusivas para os cuidados das pessoas transgêneras”.

 

“A nossa intenção é trazer essas vozes. A nova resolução deixa de lado uma parte crucial do cuidado em saúde, que é ouvir aqueles que vão ser afetados por aquela decisão. Estudos como esse devem ser considerados e expandidos para outras realidades de adolescentes e crianças trans”, afirma Bruna Mazzolani, doutora em Ciências pela FM e primeira autora do artigo.

 

 

As visões dos adolescentes e dos cuidadores

 

Os grupos focais foram conduzidos ao redor de algumas temáticas principais, como opiniões e sentimentos, experiências individuais e preocupações quanto ao futuro após as novas medidas. Os relatos giraram em torno do descontentamento com a decisão do CFM. Tantos os adolescentes quantos seus cuidadores se sentiram afetados e atacados de alguma forma.

 

“Eu me sinto atacada de certa forma, sabe? Então, esse sentimento de ansiedade, de angústia, de depressão, de tristeza, de não ter a saída para essa situação toda”, afirmou um dos cuidadores.

 

Para os adolescentes, a resolução enfatiza o preconceito contra a existência das pessoas com disforia de gênero e sua autonomia em relação às próprias vidas. Além disso, eles expressaram indignação com a tomada de decisão por pessoas alheias às vivências de pessoas transgênero. “[…] ao fazer essa lei, eles estão forçando crianças e adolescentes a viver em corpos que não lhes pertencem. Não nos encaixamos no corpo com o qual nascemos…”, afirmou um dos adolescentes.

 

O bloqueador puberal foi destacado por ambos os grupos como algo positivo para as crianças e adolescentes, tanto fisicamente quanto psicologicamente. “Com a terapia hormonal, eles estavam satisfeitos com o desenvolvimento de características físicas que correspondem ao que é esperado para sua identidade de gênero, o que era o desejo quando iniciaram o tratamento”, afirmam os pesquisadores.

 

Uma das justificativas usadas pelo CFM na resolução é a possibilidade de que pacientes venham a passar por processos de destransição. Nos grupos focais, essa justificativa foi descartada tanto pelos adolescentes quanto pelos cuidadores, pois os cuidados e tratamentos para a afirmação de gênero no Brasil são bastante rigorosos e requerem um longo monitoramento e acompanhamento por profissionais especializados. Alguns cuidadores destacaram a destransição como o resultado entre pessoas sem acesso a suporte e aconselhamento ou até um processo natural de descobrimento da própria identidade.

 

Como destaca um dos cuidadores, “ele vai se descobrir, se conhecer, experimentar. E nós estaremos lá apoiando-o nessas construções e desconstruções. Somos seres que estamos constantemente desconstruindo e reconstruindo…”. Para os adolescentes, a destransição é vista como algo mais ligado a pressões externas do que ao arrependimento. Fatores como religião, política e problemas familiares foram destacados.

 

Para alguns cuidadores, outro ponto a ser levado em consideração é a diversidade de realidades transgênero. “Meu filho é negro e trans. Nós temos que discutir coisas assim também”, afirmou um deles. O relato revela as lacunas ainda presentes no estudo e mapeamento das condições de pessoas com disforia de gênero, o que impacta diretamente no desenvolvimento de políticas públicas e ações voltadas para essa população ainda invisibilizada e pouco reconhecida.

 

“Eu também fico preocupada, sem o bloqueador, outros apontam isso. Se você não consegue um emprego, você enfrenta preconceito. É por isso que tantas pessoas acabam marginalizadas e desempregadas, certo? Porque elas são marginalizadas, não tem como evitar, é hipócrita dizer ao contrário. As aparências, infelizmente, contam muito”, pontuou um dos cuidadores acerca das barreiras enfrentadas pelas pessoas trans ao desenvolver características sexuais secundárias e viver em uma sociedade transfóbica.

 

Bruno é um homem branco, magro, com cabelo castanho cortado curto. Veste uma camiseta branca e está na frente de uma estante de livros infantis.

Bruno Gualano – Foto: Lattes

 

Segundo Bruno Gualano, presidente do Centro de Medicina do Estilo de Vida (CMEV), docente da FM e um dos condutores do estudo, para além da oposição dos grupos às novas medidas, relatos como esse revelam o grau de consciência política por parte dos pacientes e cuidadores. Alguns expressaram seu descontentamento, por exemplo, com a parada LGBTQIAPN+, que para eles se tornou mais uma celebração do que um momento de luta por direitos.

 

Nesse sentido, organizações da sociedade civil como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e as Mães pela Diversidade são de extrema importância no desenvolvimento de ações, mobilizações, cartilhas e orientações para a comunidade trans sobre novas medidas e políticas que atingem suas existências e resistências.

 

“O que esperamos é que essas evidências também informem essas decisões judiciais. Os discursos que foram colhidos no âmbito desse projeto são muito fortes. Eles indicam perseguição política, uma restrição ao ser, à possibilidade de viver plenamente”, diz Gualano. Estudos como esse demonstram a necessidade da realização de estudos que consigam ir além dos dados e escutem essas vozes marginalizadas e invisibilizadas.

 

Para acessar o artigo, disponibilizado como preprint na plataforma na MedRxiv, acesse este link.

 

*Estagiário sob supervisão de Silvana Salles


topo