Diretrizes globais sobre a aplicação de sistemas inteligência artificial na arbitragem: Breve análise das SVAMC Guidelines (2024) e da CIArb Guideline (2025).
sexta-feira, 04 de julho de 2025, 16h29
Os avanços da inteligência artificial remodelam aceleradamente o cenário da arbitragem internacional, convertendo algoritmos em partícipes invisíveis do devido processo convencional. A automação da triagem documental, a predição de resultados e a redação assistida ampliam eficiência procedimental. Contudo, a incorporação de tais ferramentas suscita dúvidas sobre sua compatibilidade com os princípios basilares do instituto. À vista dessa inquietude, diversas entidades de referência têm publicado instrumentos orientativos destinados à regulação da matéria. Sobressaem, nesse escopo, as Guidelines emanadas do SVAMC - Silicon Valley Arbitration and Mediation Center1 e a Guideline editada pelo CIArb - Chartered Institute of Arbitrators2. A presente pesquisa propõe uma análise crítica que evidencia as zonas de interseção e de dissonância existentes entre tais documentos. Tal cotejo pretende iluminar implicações dogmáticas e pragmáticas para a governança algorítmica de disputas.
Imagine-se uma disputa arbitral sobre atraso na entrega de uma obra: logo após a fase inicial, um sistema de inteligência artificial examina milhões de e-mails, relatórios de obra e mensagens de aplicativo trocadas entre a empreiteira e o contratante, identifica padrões de atraso e agrupa os documentos por assunto; em seguida, sugere uma linha do tempo interativa que destaca os eventos críticos e aponta lacunas probatórias. Com base nesses dados, a ferramenta gera resumos temáticos para os árbitros, indica trechos potencialmente relevantes para depoimentos e até propõe perguntas de audiência. Ao final, o mesmo sistema redige um esboço de laudo com referências automáticas às peças do processo, deixando ao tribunal a tarefa de revisar o texto e tomar a decisão - economizando semanas de trabalho manual sem abrir mão da análise humana sobre o mérito.
Nesse cenário, as diretrizes do SVAMC e da CIArb fazem toda a diferença, pois indicam quando e como revelar o uso do software, esclarecem que os árbitros não podem simplesmente "copiar-colar" o laudo gerado e obrigam as partes a checar segurança, viés e proteção de dados. Em outras palavras, funcionam como manuais de boas práticas que permitem colher os ganhos de eficiência sem sacrificar a legitimidade da decisão arbitral.
A par disso, o fenômeno investigado neste trabalho encerra um dilema normativo de rara complexidade na medida em que inúmeras jurisdições, bem como centros institucionais de arbitragem, passaram a expedir recomendações sobre IA sem qualquer mecanismo robusto de coordenação intersistêmica. Por isso, a multiplicação desse conjunto de regras de soft law erode a previsibilidade dos perímetros procedimentais arbitrais. Como consequência, árbitros e partes podem deparar-se com diretivas mutuamente conflitantes acerca da extensão legítima do uso de artefatos algorítmicos, o que fragiliza a isonomia processual e dilui a expectativa legítima de enforcement dos laudos.
De início, anota-se que a inexistência de diretrizes harmônicas pode ensejar impugnações quanto à validade do laudo, fundamentadas em alegada violação ao devido processo. Tal perspectiva catalisa os stakeholders a buscar um arcabouço mínimo de padrões compartilhados, e decifrar as zonas de convergência e de divergência dos guias internacionais torna-se, portanto, uma estratégia imprescindível.
Nota-se que ambos os documentos reconhecem a imperiosidade de equilibrar incrementos de eficiência tecnológica com salvaguardas procedimentais substanciais. O núcleo axiológico comum cristaliza-se em torno dos princípios de transparência, integridade decisória e proteção de dados, eis que tais vetores refletem tendências globais de governança de dados no âmbito da resolução de controvérsias3. Ademais, a adesão simultânea a esses pilares reforça a legitimidade de sistemas de inteligência artificial enquanto ferramentas auxiliares, e, desse modo, delineia-se um conjunto de regras éticas imprescindível ao debate sobre a interconexão de tecnologia e processo.
A transparência emerge, de logo, como ponto axial de consonância, pois ambos os guias orientativos impõem dever categórico de revelação sempre que a utilização de sistemas algorítmicos tiver o potencial de influenciar o desfecho da controvérsia arbitral. Por essa razão, espera-se que árbitros e litigantes indiquem a natureza da aplicação, o fornecedor responsável e quaisquer vieses conhecidos. E, naturalmente, esse disclosure robustece o contraditório ao permitir escrutínio crítico sobre a confiabilidade e a relevância da tecnologia. O item 2 da SVAMC especifica parâmetros mínimos de exposição, ao passo que a CIArb, em seu item 2.3, reproduz exigências substancialmente análogas, corroborando a percepção de que a transparência opera como antídoto institucional contra a opacidade algorítmica.
Os documentos convergem, ademais, ao aconselhar que a revelação seja efetuada tão logo a ferramenta seja escolhida, prevenindo, com isso, manobras táticas e promovendo planejamento processual antecipado. Ambos os guias alertam que a omissão de informação relevante pode acarretar sanções que variam da desconsideração da prova à imposição de custas adicionais. Observa-se, em consequência, um alinhamento normativo robusto sobre o tema, o que fortalece a confiança recíproca entre os sujeitos processuais e que constitui, portanto, elemento de estabilização procedimental.
Outro vértice de convergência reside na vedação à delegação integral do juízo decisório a sistemas de IA. Isso porque as guidelines reiteram que a competência jurisdicional privada permanece prerrogativa irrenunciável dos árbitros. O item 6 da SVAMC veda, de forma explícita, a transferência do poder deliberativo ao sistema. Por sua vez, o item 4.1 da CIArb reafirma que a deliberação final deve emanar do raciocínio crítico humano, e tal paralelismo mitiga receios de laudos integralmente automatizados. Assim, esta salvaguarda consolida o due process e reafirma a centralidade do discernimento humano.
Com relação à tutela de dados pessoais, ambas as diretrizes convergem ao exigir desenho arquitetônico fulcrado em privacy-by-design. Recomenda-se, nesse sentido, a adoção de protocolos de criptografia robusta, controles de acesso granulares e auditorias periódicas dos logs operacionais. Essa equivalência aproxima os instrumentos das exigências contidas na LGPD e em diplomas estrangeiros correlatos.
Os documentos alertam, ademais, que incidentes de segurança podem comprometer segredos empresariais, o que indica a imprescindibilidade de expansão da segurança jurídica no manejo de informações estratégicas e reafirmação da importância de salvaguardas tecnológicas no contexto arbitral. No domínio da cibersegurança, embora intimamente correlacionado à privacidade, confere-se tratamento autônomo e minucioso, pois ambos os guias sugerem implementação de autenticação multifatorial, realização periódica de penetration tests e elaboração de planos de contingência voltados a mitigar interrupções provocadas por ataques cibernéticos. Essa sinergia normativa espelha aprendizado de lições extraídas de incidentes recentes em operações de e-discovery. O alinhamento obtido reduz, sensivelmente, riscos sistêmicos de comprometimento das infraestruturas digitais.
As mesmas diretrizes convergem, igualmente, ao exigir atuação proativa das partes litigantes. Cada interessado deve assegurar que sua equipe receba treinamento compatível com os riscos inerentes ao modelo de inteligência artificial empregado. Prevê-se, ainda, que eventuais peritos detenham domínio técnico aprofundado sobre o sistema utilizado, promovendo paridade informacional entre os contendores. Paralelamente, atenua-se curvas de aprendizagem durante as audiências. Mencione-se, em adição, que a SVAMC oferece cláusula-modelo destinada a facilitar a incorporação contratual das suas diretrizes, enquanto a CIArb, embora desprovida de dispositivo equivalente, admite inclusão por simples referência. Ambos os organismos enxergam valor substantivo na adesão voluntária a seus instrumentos e a harmonização contratual revela preocupação eminentemente pragmática.
Em relação aos pontos divergentes entre as duas guidelines, pontua-se que a SVAMC qualifica seus preceitos como meras recomendações, ao passo que a CIArb admite sua incorporação por opt-in, conferindo-lhe, nessa hipótese, força contratual obrigatória. Essa divergência incide sobre a natureza do vínculo percebido pelas partes. Pode-se afirmar, nessa linha, que árbitros tenderão a sentirem-se mais compelidos pelo texto da CIArb quando houver anuência expressa. Já as disposições da SVAMC permanecem eminentemente persuasivas. Consequentemente, a previsibilidade pode flutuar de acordo com a escolha documental.
Os documentos também se apartam quanto ao espectro territorial pretendido, uma vez que, enquanto a SVAMC se dirige predominantemente a arbitragens de índole tecnológica com nítido perfil internacional, a CIArb proclama vocação universal, estendendo-se a litígios domésticos ou transfronteiriços. Esse contraste gera eventuais assimetrias em processos que agregam partes oriundas de múltiplas jurisdições. A determinação de qual guideline regerá o expediente converte-se em decisão estratégica de relevo na medida em que qualquer conflito de seleção requer solução expressa no termo de referência. O desacordo, se não resolvido, introduz margens de incerteza procedimental.
Quanto à "inteligência artificial generativa", as abordagens divergem de modo expressivo. A CIArb reserva seção específica à geração de texto, código e imagens por modelos autorregressivos, estipulando minuciosos protocolos de verificação de originalidade. A SVAMC, em contrapartida, discorre sobre o tema de maneira esparsa e fragmentária.
Os limiares que deflagram o dever de disclosure também se dissociam. A CIArb impõe revelação sempre que o sistema de IA influenciar qualquer ato procedimental material, criando critério objetivo. A SVAMC concede discricionariedade mais ampla à câmara arbitral para calibrar o momento e a profundidade da divulgação. E, embora convergentes na vedação genérica à automação decisória, as guidelines sinalizam exceções divergentes: a CIArb tolera o uso de sistemas de IA na elaboração de rascunhos de laudo, condicionando a validade à revisão humana substancial6; a SVAMC, ao revés, adota postura mais estrita e desaconselha qualquer esboço automatizado. Essa dissonância pode repercutir na economia temporal do procedimento.
A localização de dados constitui questão especialmente sensível. A CIArb recomenda que os arquivos permaneçam em jurisdição coincidente com o assento arbitral, facilitando aplicação da lei processual local. A SVAMC admite soluções em cloud distribuída internacionalmente, condicionadas ao cumprimento de cláusulas de sigilo. Essa dissidência impacta custo operacional e conformidade regulatória, podendo confrontar legislações de transferência internacional de dados. A decisão deve ser cuidadosamente negociada em contrato. Sob pena de insegurança jurídica relevante. A harmonização evitaria choques normativos.
A CIArb advoga a criação de comitês de IA incumbidos de monitorar vieses e recomendar ajustes, estabelecendo instância formal de accountability7. A SVAMC, por sua vez, aposta na autorregulação das partes e na diligência dos árbitros. Tal contraste revela visões divergentes sobre a necessidade de controle institucionalizado. Pode influenciar a percepção externa de legitimidade. Uma convergência de mecanismos mitigaria riscos reputacionais. E ampliaria confiança na imparcialidade das decisões.
O diálogo com legislações domésticas também chama a atenção. A CIArb sugere prevalência da lei da sede arbitral sobre disposições do guideline, enquanto a SVAMC prioriza a lex contractus pactuada pelas partes. Esse conflito influencia diretamente a escolha do foro e a aplicabilidade de diplomas como LGPD ou GDPR. A ausência de hierarquia comum pode gerar litígios sobre qual parâmetro jurídico deve prevalecer. Cláusulas de salvaguarda tornam-se, assim, imprescindíveis no termo de referência.
A escolha do assento arbitral sofre influência direta dessas divergências. A CIArb, de viés mais prescritivo, tende a atrair partes que privilegiam segurança normativa robusta. A SVAMC, por apresentar maior flexibilidade, seduz litigantes inovadores que buscam liberdade contratual. O resultado é a reconfiguração geográfica da arbitragem em matéria tecnológica. Concomitantemente, repercute no mercado de plataformas de gestão algorítmica de casos e a competição entre sedes, assim, se intensifica e exige análise estratégica pormenorizada.
Em conclusão, o cotejo empreendido confirmou a hipótese de convergência principiológica aliada a divergência operacional: transparência, não-delegação, cibersegurança e proteção de dados configuram consenso sólido que garante núcleo ético mínimo. Assim, o êxito futuro da resolução de disputas dependerá da sinergia entre técnica e direito e a consolidação de padrões globais constitui imperativo inadiável, pois servirá de baliza para o uso responsável de sistemas de inteligência artificial no contencioso arbitral.
Fonte: Migalhas.