Uso de gravações policiais na Justiça não fere direito à não autoincriminação
sexta-feira, 27 de junho de 2025, 15h48
O uso de gravações de câmeras policiais em ações penais em que eles respondem por abuso não viola o princípio da não autoincriminação. Isso porque as imagens são públicas, não dos agentes, e eles não são obrigados a ato probatório que os incrimine. É o que avaliam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
A Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou, em 17 de junho, projeto de lei (PL 2.339/2024) que proíbe o uso de imagens de câmeras corporais como prova contra policiais que usavam o equipamento na farda no momento da gravação. A proposta ainda precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça e pelo Plenário da Casa.
O projeto original, de autoria do deputado Capitão Augusto (PL-SP), tratava apenas dos policiais militares. Porém, o relator do PL na comissão, deputado Coronel Ulysses (União-AC), ampliou o escopo do texto para incluir todos os profissionais dos sistemas de segurança pública federal, estadual, distrital e municipal.
Na justificava do PL, Capitão Augusto argumenta que o uso de imagens de câmeras corporais contra policiais viola o princípio da não autoincriminação, segundo o qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
“Ao permitir que imagens capturadas pelas câmeras corporais sejam usadas como prova em processos criminais contra o próprio policial que as portava, estamos violando este princípio constitucional e colocando nossos agentes de segurança em uma posição injusta e contraditória”, alega o parlamentar, que é policial militar de São Paulo.
Segundo ele, policiais brasileiros são injustamente tratados a priori como suspeitos. “Enquanto que, em qualquer democracia, o agente público tem a legitimidade de seus atos, até que haja prova em contrário, aqui, infelizmente, vemos defensores de uma inversão de valores, vitimizando o criminoso e colocando o policial como suspeito, até que se prove o contrário. Um verdadeiro absurdo”.
De acordo com Capitão Augusto, as imagens das câmeras corporais podem ser utilizadas para o aprimoramento dos procedimentos dos agentes de segurança e até para proteção dos policiais contra acusações infundadas, mas não para incriminá-los.
Para reforçar o seu argumento, o deputado cita decisão do Superior Tribunal de Justiça. “Pela garantia da não autoincriminação, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, não podendo ser forçado, por qualquer autoridade ou particular, a fornecer involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração que o incrimine, direta ou indiretamente”, decidiu a 6ª Turma da corte no Habeas Corpus 313.330.
O caso é bem diferente da matéria do projeto de lei. Um homem alegou violação ao princípio da não autoincriminação porque a juíza, mesmo diante da informação de que o réu não gostaria de responder às perguntas dela, insistiu para que ele o fizesse.
Como o réu não foi forçado a responder ao interrogatório, o STJ negou o HC. “Tendo o paciente respondido, voluntariamente, às perguntas formuladas pelo parquet e, não se verificando o emprego de pressão psicológica, ausente violação à garantia do nemo tenetur se detegere”.
Proteção da sociedade
O argumento do projeto de lei não se sustenta, pois as câmeras corporais são uma força de contenção do poder estatal e proteção da sociedade. Além disso, as gravações são públicas, e não privadas, dos agentes, avaliam especialistas.
Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), aponta que o uso câmeras corporais em processos contra agentes de segurança não viola o princípio da não autoincriminação.
“O policial representa a ação armada do Estado, por isso deve estar controlado da forma mais intensa possível, ao contrário dos demais cidadãos. Não se trata de não autoincriminação, mas de controle de uma atividade pública. Se o argumento fosse plausível, ninguém seria obrigado a passar suas malas pelo raio-x do aeroporto ou se identificar quanto entra em repartições públicas”, avalia Bottini.
A alegação de desrespeito ao princípio é falaciosa, uma vez que as gravações são públicas, analisa Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
“Se alguém for abordado por um policial na rua, a imagem pode ser usada no processo. Isso porque o agente está em um local público, a prova não é extraída dele, ele não deve praticar nenhum ato probatório”, diz.
O projeto distorce o sentido principal das câmeras corporais, que é o do controle da violência dos agentes públicos, afirma Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Ele ressalta que o uso das câmeras tem demonstrado eficácia preventiva para redução da violência dos agentes de segurança e posterior responsabilização em caso de abusos. Também destaca que a regulação da atividade de agentes de segurança é derivada de lei, que os autoriza a utilizar armamento e promover abordagens, entre outras medidas. Devido ao fato de trabalharem com força letal, a regulação deve ser rígida e prever formas de controle, como as gravações.
“Ocorre que as câmeras e a própria gravação não são propriedade do policial. São patrimônio público como a viatura que o conduz. Há uma distorção evidente. O policial não tem disponibilidade sobre o aparato ou a gravação de imagens em uma operação, por exemplo, como teria se estivesse fazendo uma filmagem com o seu celular particular em casa. Não há, portanto, qualquer relação com a autoincriminação. Trata-se do uso de imagens públicas produzidas por agentes públicos”, sustenta Salo de Carvalho.
Adoção nacional
O governo federal vai financiar a compra de câmeras corporais para as Polícias Militares dos estados que aderirem ao protocolo estabelecido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública para o uso desses equipamentos.
O principal instrumento para isso, na análise da pasta, é o Fundo Nacional de Segurança Pública, por meio do qual a União repassa verbas aos estados para apoiar projetos — entre os quais está a compra de equipamentos.
Os protocolos foram estabelecidos em portaria publicada em maio de 2024, criando diretrizes sobre o uso de câmeras corporais pelos órgãos de segurança pública. Elas precisam ser acionadas em 16 situações pré-definidas.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública recebeu pedidos de adesão ao Projeto Nacional de Câmeras Corporais de policiais de 20 estados e do Distrito Federal até março, segundo o jornal Folha de S.Paulo. As unidades da federação manifestaram interesse na compra de 52.558 equipamentos.
Ainda que tenha potencial de inibir casos de violência policial, as câmeras policiais viraram um tema controverso, gerando embate entre políticos de esquerda e de direita. O projeto de lei do Capitão Augusto é um novo capítulo dessa disputa. Os estados que não manifestaram interesse nas câmeras são governados por políticos de direita: São Paulo, Santa Catarina, Goiás, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso.
Há estados em que as polícias usam câmeras corporais. Há outros, como São Paulo, em que o governador, Tarcísio de Freitas (Republicanos), já foi contra, mas aderiu à medida após acordo homologado pelo Supremo Tribunal Federal. A corte também validou plano do Rio de Janeiro para reduzir letalidade policial que exige o uso de câmeras por policiais.
E há aqueles estados terminantemente contra as gravações, como é o caso de Goiás. O governador goiano, Ronaldo Caiado (União Brasil), prometeu que nenhum policial da PM-GO vai usar o equipamento. Segundo Caiado, a maioria da população se preocupa com o avanço do tráfico de drogas e das organizações criminosas, que têm mais homens e melhores armamentos do que as polícias. Em sua opinião, a discussão sobre as câmeras acaba por tirar do foco o assunto principal.
O uso de câmeras corporais pelas Polícias Militares chegou a ser tema de uma ordem do Superior Tribunal de Justiça. A 6ª Turma da corte deu prazo para os estados implementarem o equipamento ao decidir sobre uma causa de invasão de domicílio sem autorização judicial.
Essa determinação foi derrubada por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, em dezembro de 2021. Ele deu provimento a um recurso do Ministério Público de São Paulo, entendendo que o STJ extrapolou a própria competência ao criar obrigação para as PMs.
Fonte: Conjur