Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Espetacularização dos tempos da finada 'lava jato' segue viva, mas em menor escala

segunda-feira, 13 de outubro de 2025, 14h26

Os tempos de reality show judicial da finada “lava jato” ficaram para trás, mas os órgãos de persecução penal brasileiros continuam mantendo certa vocação para a espetacularização do processo penal. Essa é a opinião de criminalistas e constitucionalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico

 

O inquérito que apura as fraudes do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é, na opinião de especialistas, um dos últimos exemplos da tendência de jogar investigados aos leões do escrutínio público antes mesmo que haja qualquer comprovação de culpa. 

 

O professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Pedro Serrano é um dos críticos da condução do inquérito. “É preocupante o espetáculo que acompanha a apuração do envolvimento de Nelson Willians (advogado) no caso do INSS. A Polícia Federal, que vinha agindo com a discrição devida nos casos rumorosos, parece que retorna a um certo ar do espetáculo lavajatista. Que investiguem com rigor, mas com o sigilo e discrição que a eficiência da investigação e a preservação dos direitos do investigado exigem. Corremos o risco de destruir a imagem de profissional que, ao final de tudo, possa ter demonstrado sua inocência.”

 

Além das suspeitas da PF, o noticiário se ocupou de aspectos alheios ao processo penal, como a quantidade de seguidores que o advogado possui em seus perfis nas redes sociais e suas preferências artísticas. 

 

 

A atuação da PF nesse episódio e os seus desdobramentos midiáticos também chamaram a atenção de outro estudioso do circo montado em torno do processo penal.A defesa, identificou muito do que motivou suas críticas à “lava jato” no episódio. 

 

“O vazamento de dados da investigação, como itens apreendidos, a revelação de suspeitas como se fossem certezas e a atribuição à investigação de fatos condição de sentenças condenatórias, em meio à grande e avassaladora exposição midiática dos investigados”, são algumas das semelhanças apontadas por ele. 

 

Lógica alheia ao processo

 

Serrano explica que o DNA da espetacularização da persecução penal é a adoção sistemática por agentes públicos de uma lógica alheia ao processo penal, mas típica dos veículos de comunicação. “Quando o  sistema de Justiça passa a operar por razões do que é notícia ou não notícia, há uma corrupção sistêmica. Corrupção não no sentido do Direito Penal, mas no sentido de mau funcionamento. A democracia passa a funcionar mal.”

 

O professor defende que a investigação sigilosa, além de tudo, é mais eficiente e preserva o direito de imagem das pessoas. “Você está investigando alguém, você não sabe se vai encontrar a prova ou não, se ele vai ou não ser acusado. Não dá para você primeiro destruir a imagem dele para depois apurar? É uma grave ofensa aos direitos fundamentais. É evidente que o interesse público deve prevalecer. Eu sou a favor da divulgação, mas ao fim das investigações.”

 

A investigação em torno do INSS não é a única citada como exemplo recente de excessos da PF. A espetacularização também é notada por especialistas em investigações que envolveram outras personalidades famosas como o influencer fitness Renato Cariani, que se tornou réu em processo por supostamente estar envolvido em tráfico de drogas, formação de quadrilha e lavagem de capitais. 

 

O indiciamento é decorrente de investigação que tem como objetivo desarticular uma quadrilha que desviava produtos químicos para produção de drogas. A ação penal contra o influencer segue em tramitação.

 

Outro exemplo de espetacularização envolve o cantor sertanejo Gusttavo Lima. Ele foi acusado pelo Ministério Público de Pernambuco, juntamente com outras três pessoas, do crime de lavagem de dinheiro e chegou a ter a prisão preventiva decretada em setembro de 2024. 

 

Em janeiro de 2025, a juíza Andrea Calado da Cruz, da 12ª Vara Criminal de Recife, determinou o arquivamento do inquérito que investigava o cantor. 

 

Viúvas da ‘lava jato’ 

 

O advogado e professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Aury Lopes Jr. avalia que os excessos de agentes de persecução brasileiros obedecem a um movimento pendular. 

 

“Conforme você afrouxa as rédeas do poder, você abre espaço para esse tipo de absurdo. A ‘lava jato’ deixou muitas viúvas. Ela fez escola. Inclusive, a mídia, até hoje, não fez uma mea-culpa por ter entrado naquela canoa furada de (Sergio) Moro e Deltan (Dallagnol). Então a grande mídia talvez não tenha percebido o grande erro que foi a ‘lava jato’ e segue repetindo e comprando esse produto vendido por polícia e pelos Gaecos Brasil afora, que são redutos que tendem a esse autoritarismo.” 

 

 

Lopes Jr. explica que operações que envolvem pessoas públicas foram uma tempestade perfeita, o caldo cultural ideal para que se cometam excessos. 

 

“Ministério Público e Polícia já perceberam em grandes operações e pessoas com muita visibilidade que a pena processo, ou seja, o processo enquanto pena, já é um mecanismo procurado por eles. Então eles já imaginam, este processo vai demorar, este processo pode, na cabeça deles, vir a dar em nada, então já vamos punir pelo simples investigar e o simples denunciar. E você transforma o processo numa pena em si mesma, ainda que no final não se tenha uma pena, até por absolvição ou por ausência de provas, mas você já destruiu a vida de uma pessoa, já destruiu a reputação de uma pessoa, já quebrou empresas inteiras pelo simples fato de fazer um bizarro espetáculo midiático da investigação e do mero ato de acusar.”

 

O especialista também critica os nomes escolhidos pelas operações da PF, que já renderam notícias como “7 nomes geniais de operações da Polícia Federal” e “Saiba como são escolhidos os nomes das operações da Polícia Federal”. “São nomes marqueteiros. Tem que se criar um nome atrativo e esteticamente adequado para a notícia que irá sair, como se fosse um produto a ser consumido, que precisa ter nome e roupagem atrativa, ainda que nem sempre o conteúdo seja de boa qualidade.”

 

Mal antigo

 

Um dos advogados com atuação mais destacada nos anos da “lava jato”, o criminalista Antonio Figueiredo Basto explica que o que diferenciou a atuação do consórcio de Curitiba nos últimos anos era a estratégia de utilizar a mídia como braço da operação. Isso não ocorre atualmente, mas a espetacularização continua.

 

“A espetacularização está dentro do sistema de justiça criminal, ninguém está imune. Veja que hoje advogados vão ao tribunal com aparatos de mídia, filmam suas defesas e divulgam os cortes nas mídias sociais, querem notoriedade, um procedimento eticamente reprovável, mas tolerado, portanto a espetacularização está no sistema, que se alimenta da exposição e precisa dela para se legitimar. Não podemos esquecer que a sociedade também tolera e muitas vezes estimula esse comportamento, que se tornou objeto de consumo.” 

 

Quem também enxerga o problema como algo endêmico é o jurista Lenio Streck, que também acredita que não é algo restrito a investigados famosos. “Veja: para contermos qualquer indício de espetacularização necessitamos de um novo país, uma nova imprensa, uma nova polícia, um novo MP e um novo Judiciário. Porque um país em que todos os dias os pobres, quando são presos passam pela espetacularização, parece impossível criar uma isonomia de tratamento.”

 

Streck defende que a espetacularização seja combatida não apenas no varejo, mas também no atacado, e provoca: “Vamos encarar isso tudo como sendo uma questão de dignidade?”.

 

O advogado e professor de Processo Penal do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Luís Henrique Machado — que também teve atuação destacada nos anos lavajatistas — acredita que ocorreram avanços na questão de preservação da imagem de investigados. 

 

Não creio que haja hoje uma prática institucionalizada de espetacularização, seja na Polícia Federal, seja no Ministério Público. Se há desvios, são casos isolados, que não refletem a conduta majoritária dessas instituições. Aliás, é importante reconhecer que ambas vêm atuando com notável discrição e respeito aos direitos individuais, algo que, em grande medida, decorre das lições extraídas da própria ‘lava jato’ e do fortalecimento das corregedorias, sobretudo do Conselho Nacional do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça.”

 

 

Fonte: Conjur


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