Rio anuncia investigação por remoção de corpos, mas pode responder pelo mesmo crime
quinta-feira, 30 de outubro de 2025, 14h33
O governo do Rio de Janeiro diz que vai investigar suposta fraude processual cometida por moradores pela remoção de corpos da mata depois da ação policial mais violenta da história do estado. Agentes das forças de segurança, todavia, também podem responder pelo crime por terem escondido os mortos.
O número de assassinados em consequência da ação policial, promovida contra o Comando Vermelho nos Complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio, é incerto — o governo fluminense diz que foram 121, incluindo quatro policiais, mas moradores alegam que a quantidade é maior. Seja como for, é certo que se trata da ação mais letal no estado.
A título de comparação, a ação que fica em segundo lugar deixou 28 mortos, número quatro vezes menor do que a que ocorreu na Penha e no Alemão.
O secretário de Polícia Civil do Rio, Felipe Curi, anunciou nesta quarta (29/10) a abertura de um inquérito para investigar possível fraude processual na remoção de mais de 70 corpos na área de mata do Complexo da Penha, depois da incursão policial.
Curi criticou a suposta manipulação da imagem dos mortos. “Temos imagens deles todos com roupas camufladas, coletes balísticos e portando armas de guerra. Aí, apareceram vários deles só de cueca ou de short, descalços, sem nada”, disse. A alegação é que a retirada das roupas e acessórios busca mostrar que eram meros moradores das comunidades, e não traficantes preparados para o combate.
Fraude estatal
Apesar das declarações do secretário, agentes de segurança do Rio podem ter cometido fraude processual e desrespeitado as diretrizes para preservação da cena do crime estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 — na qual a corte homologou um plano de redução da letalidade policial no estado.
A conduta dos policiais civis de retirar os corpos do local e os ocultar na mata pode configurar o crime, avalia a criminalista Maíra Fernandes, professora da Fundação Getulio Vargas.
O delito, previsto no artigo 347 do Código Penal, pune aquele que “inova artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito”.
“No caso, a remoção e ocultação dos cadáveres representam clara modificação do estado e do local de prova, com o potencial de comprometer a reconstrução fidedigna da cena do crime e induzir os órgãos de persecução penal a erro quanto à dinâmica dos fatos”, segundo Maíra.
“Chamar de fraude processual o que os moradores e familiares fizeram beira o escárnio”, diz Victória-Amalia de Sulocki, professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Uma forma indigna e cruel de tentar justificar uma operação desastrosa.”
Policiais também podem respondem por ocultação de cadáver, caso seja comprovado que esconderam propositalmente os corpos. O primeiro crime tem pena de detenção, de três meses a dois anos; o segundo, de reclusão, de um a três anos.
O criminalista Fernando Augusto Fernandes, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, ressalta que o crime de fraude processual exige o dolo de induzir juiz ou perito ao erro.
“O que publicamente se verificou foi a inexistência de atividade do Estado para que os corpos fossem periciados nos locais onde foram deixados. Se estavam na mata, por que estavam lá? Foram mortos no local? Estavam armados? O que os moradores fizeram foi levar os corpos abandonados a um único local, o que deu visibilidade ao tamanho da catástrofe”, diz.
Decisão descumprida
De acordo com Victória-Amalia de Sulocki, a decisão do STF na ADPF 635 foi completamente desrespeitada. Isso porque a ação foi feita sem aviso prévio, fechando escolas e postos de saúde, com uso desproporcional da força e destruição das cenas dos confrontos.
Remover os corpos do local da abordagem e transportá-los para a mata “contraria frontalmente” as determinações fixadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 635, especialmente no que se refere à preservação da cena do crime como garantia da apuração de eventuais execuções extrajudiciais e abusos estatais, diz Maíra Fernandes.
“O STF, ao apreciar a ADPF das Favelas, estabeleceu que todas as ações policiais devem ser realizadas de modo a resguardar a integridade do local dos fatos, assegurando a atuação pericial independente e o efetivo controle externo por parte do Ministério Público (artigo 129, VII, da Constituição). Consignou-se que a preservação de elementos probatórios é condição imprescindível para a reconstrução dos eventos e para a responsabilização dos agentes que eventualmente tenham agido com excesso”, destaca a advogada.
Já Fernando Fernandes disse ser “evidente que a operação descumpriu a ADPF 635”. “A operação nada solucionou quanto ao tráfico, expôs a vida de inocentes e a sociedade brasileira internacionalmente, como desumana, cruel e perigosa.”
Críticas sem fundamento
Depois da operação policial mais violenta da história do Rio de Janeiro, o governador Cláudio Castro (PL) novamente criticou a decisão do Supremo na ADPF 635. A declaração foi repudiada por advogados, que dizem que ela incentiva ataques. E contradiz dados que mostram que as ordens do STF no caso ajudaram a reduzir a criminalidade no Rio, sem limitar as atividades das forças de segurança.
O ministro do STF Alexandre de Moraes determinou, nesta quarta, que Castro preste esclarecimentos sobre a ação policial, explicando se havia prévia definição do nível de força adequado e justificativa formal para a incursão.
Alexandre também marcou audiências para a próxima segunda-feira (3/11), no Rio. A primeira será com Castro; o secretário de Segurança Pública do estado, Victor Santos; o comandante da Polícia Militar, Marcelo Nogueira; o delegado-geral da Polícia Civil, Felipe Curi; e o diretor da Superintendência-Geral de Polícia Técnico-Científica, Wladimir Reale. O governador deverá apresentar as informações de maneira detalhada nesse encontro.
Depois, haverá audiências com o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Ricardo Couto; com o procurador-geral de Justiça, Antonio Moreira; e com o defensor público-geral do Rio, Paulo Vinícius Abrahão.
Fonte: Conjur