Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Caso Marielle: Comentários CAOCRIM MPSP

quarta-feira, 10 de junho de 2020, 15h41

Em decisão unânime, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou improcedente, nesta quarta-feira (27), o incidente de deslocamento de competência ajuizado pela ProcuradoriaGeral da República (PGR) que buscava transferir para a esfera federal a investigação sobre os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, ocorrido em 2018 no Rio de Janeiro.

 

A ministra Laurita Vaz, relatora, defendeu a manutenção do caso sob a competência da Justiça estadual, da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). Para ela, o caso não preenche os requisitos necessários para a federalização. A ministra disse que não é possível verificar desídia ou desinteresse por parte das autoridades estaduais nas investigações para solucionar o crime.

 

COMENTÁRIOS DO CAO-CRIM

 

Esta notícia nos obriga a comentar, ainda que sucintamente, o denominado incidente de descolamento de competência (IDC), estabelecido no art. 109, § 5º, da Constituição Federal, lembrando que a justiça paulista enfrenta igual pedido, mais precisamente no episódio conhecido “Mães de M ” (1).

 

Reza o art. 109, §5º, da CF: “Art. 109 CF (...) § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”.

 

Incidência: grave violação dos direitos humanos – “grave” no sentido de massificação, de repercussão no âmbito coletivo.

Neste primeiro requisito já conflitam duas correntes. Uma primeira defendo que o incidente pode ser tanto na esfera criminal, quanto na cível (ilícitos de maneira geral que importam em violação de direitos humanos). Outra, leciona que somente pode incidir na esfera criminal.

 

Finalidade: assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos. Aqui necessário recordar o papel dúplice da União, que representa uma parte do Estado-federal, mas também representa o Estado federal, pois quem celebra contratos é a União.

 

Oportunidade: “em qualquer fase do processo ou inquérito (e notem que a lei não fala em “inquérito policial”, razão pela qual, como vimos, para uma corrente o instituto alcança também o civil).

Nas academias se ensina que "direitos humanos”, conjunto de direitos inatos ao ser humano, não estão positivados ou quantificados; logo, são ilimitados no tempo e no espaço. Não podem ser confundidos com "direitos fundamentais", estes jurídico-positivados, limitados no território e no tempo em decorrência de seu reconhecimento formal. Para dar ensejo ao deslocamento de competência, qual violação deve ser constatada: dos direitos humanos ou dos fundamentais? A doutrina vem ditando que a melhor solução, tendo em conta a concordância prática dos preceitos constitucionais, é de que o deslocamento deve ser aplicado aos direitos humanos, e não apenas aos direitos fundamentais reconhecidos no texto constitucional.

 

Legitimidade: Procurador-Geral da República apenas.

 

Competência: STJ. Por que o STJ e não o STF, já que envolve questão de natureza federativa? Porque ele é responsável por dirimir os conflitos de competência. Contudo, isso não inibe o uso de recurso extraordinário ao STF.

De forma implícita (construção do Direito Internacional e do Direito Constitucional de alguns países), mais um requisito se apresenta:

 

Subsidiariedade: somente ocorre a "federalização" se houver uma omissão grave do Estado-membro ou fundado receio de impunidade.

 

Crítica: O incidente nos parece totalmente desnecessário no Estado Democrático de Direito, pois existem instrumentos já consagrados para lidar com eventuais falhas no sistema de justiça local: a) federalização (unificação) das investigações: de acordo com o disposto no art. 1º, inciso III, da Lei nº 10.446/02 – que regulamenta o art. 144, § 1º, inciso I, da CF/88 – é possível a atuação da Polícia Federal em casos de violação de direitos humanos, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos estaduais de segurança pública; b) desaforamento no rito do Júri quando os jurados forem suspeitos ou comprometidos (art. 424 do CPP); c) intervenção federal no Estado-membro para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana (art. 34, inciso VII, b, da CF/88). Se existem estes expedientes, não há papel relevante para o incidente de descolamento de competência.

 

Fonte: MPSP

 

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1 Há exatos dez anos, entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, pelo menos 564 pessoas foram mortas no estado de São Paulo, segundo levantamento da Universidade de Harvard, a maioria em situações que indicam a participação de policiais. A maior parte dos casos, apontam pesquisadores, fazia parte de uma ação de vingança dos agentes de segurança do Estado contra os chamados ataques da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), que se concentraram nos dois primeiros dias do período. A chacina daquele ano ficou conhecida como Crimes de Maio, a maior do século 21 e talvez a maior da história do país - para efeito de comparação, em toda a última ditadura civil-militar, que durou 21 anos, 434 pessoas foram mortas pelo Estado. Uma década depois do massacre de 2006, apenas um agente público foi responsabilizado pelas mortes. Condenado, ele responde a recurso em liberdade e continua atuando como policial militar. O gritante número de assassinatos e o desinteresse da Justiça em punir os responsáveis deu origem ao movimento Mães de Maio, formado principalmente por familiares das vítimas do massacre.


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