Três pilares da proteção à probidade estão sob ameaça
por CONJUR
terça-feira, 17 de novembro de 2020, 00h03
O Projeto de Lei 10.887/2018, em tramitação na Câmara dos Deputados, traz sensíveis alterações na Lei de Improbidade Administrativa (LIA). O texto original, de autoria do deputado federal Roberto de Lucena, embasado em estudos elaborados por uma comissão de juristas presidida pelo ministro Mauro Campbell, do STJ, foi alterado por substitutivo apresentado pelo deputado federal Carlos Zarattini, que aprofunda as mudanças e reverte algumas das ideias iniciais.
Entre as alterações propostas no substitutivo, três pontos merecem maior destaque, pois impactam em pilares fundamentais do regime de proteção à probidade estabelecido na LIA: fim da improbidade por violação aos princípios que regem a Administração, estabelecimento de dolo específico como requisito à configuração do ato de improbidade e mudança dos critérios e do objeto da indisponibilidade de bens.
Quanto ao primeiro ponto, o substitutivo estabelece que "Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º e 10 desta Lei" (artigo 1º, §2º). Junto com isto, o artigo 11 passa a asseverar que violações aos princípios que regem a Administração "não configuram improbidade administrativa, sem prejuízo da propositura de outras ações cabíveis, consoante o caso, como as leis 4.717, de 29 de junho de 1965, e 7.347. de 24 de julho de 1985".
Trata-se mudança grave, que rompe com a tradição estabelecida ainda em 1992, com a edição da LIA, tradição que estava em consonância com a importância conferida pelo Constituinte de 1988 aos princípios regentes da Administração (artigo 37 da Constituição Federal e outros, como os enunciados na Lei 9.784/99) como critérios a guiar a atividade estatal.
Caso aprovada a proposição, para se ter um ato de improbidade configurado não bastará a violação aos princípios administrativos, será indispensável a demonstração de enriquecimento ilícito por parte do agente público ou de dano patrimonial ao erário. O desonesto que não causar esses efeitos sairá livre.
Os tribunais têm classificado na categoria da violação dos princípios administrativos uma ampla gama de atos de improbidade, como a prática de maus tratos a crianças em creche municipal [1], a contratação de servidores públicos sem prévia realização de concurso [2], o uso do aparelho estatal para promoção pessoal do agente [3] ou o uso do procuradoria jurídica do órgão para defesa de interesses pessoais [4].
Se o substitutivo passar, essas ações e outras condutas graves, sujeitas, inclusive, à sanção penal [5] deixariam de ser caracterizadas como improbidade administrativa.
As consequências no campo de proteção à probidade seriam muito nocivas. A maior parte das condenações por improbidade se lastreia justamente no artigo 11 (46,02%, ante 43,24% lastreadas no artigo 10 e 10,72% no artigo 9º) [6]. Além disso, caso aprovada a proposta, dois teerços das ações por improbidade ajuizadas pelo Ministério Público Federal (MPF) deixariam de existir [7].
Para minimizar o impacto da proposta, a parte final do artigo 11 ressalva ser possível a "propositura de outras ações cabíveis, consoante o caso, como as Leis 4.717, de 29 de junho de 1965, e 7.347. de 24 de julho de 1985".
Contudo, em se tratando de violação de princípios, tais ações cíveis são carentes de sentido, pois não será possível aplicar nenhuma pena cível; nem haverá dano a ser ressarcido, já que, se dano houvesse, não se cogitaria de aplicar o artigo 11, mas o 10 da LIA. Nessa eventualidade, a ação cível serviria, quando muito, para pleitear o desfazimento de eventuais efeitos do ato (como a anulação de uma nomeação indevida, por exemplo).
Outro tema essencial objeto do substitutivo diz com o elemento subjetivo necessário à caracterização do ato (dolo ou culpa). A versão original do PL 10.887/2018 já previa o fim da improbidade culposa, mudança de per se negativa, pois "ao mesmo tempo em que fragiliza a proteção da probidade administrativa, retirando estímulo normativo à responsabilidade no exercício do cargo", não é coerente com o sistema de repreensão à corrupção, uma vez que "o ordenamento (Direito Penal) já contempla punição mais gravosa para a mesma categoria de atos" [8].
O substitutivo piora o tratamento do tema ao exigir que, além de dolosa, exista um especial fim de agir na conduta praticada pelo ímprobo. Segundo o novo texto, não basta que a ação ilícita decorra de vontade consciente do agente (dolo genérico), mas de uma voluntariedade dirigida conscientemente à produção do resultado ilegal (dolo específico) [9].
Na mesma linha, o substitutivo enuncia que "o mero exercício de função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa" (artigo 1º, §5º). Mais uma vez, reforça a necessidade de demonstração de um especial fim de agir como requisito para punição do agente.
Trata-se de tema já superado pela jurisprudência [10], que se firmou no sentido da suficiência do dolo genérico. A inovação, tal qual pretendida, implica em óbice adicional à punição dos que, voluntariamente, se distanciaram dos deveres de boa-fé e lealdade no trato da coisa pública.
O terceiro ponto sensível objeto de alteração se refere à indisponibilidade de bens, que, na versão original do PL, encampava entendimento consolidado pelo STJ para considerar a medida espécie de tutela de evidência [11], decretável "independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo".
O substitutivo, a seu turno, pretende que o pedido de indisponibilidade só seja deferido "mediante a demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo", invertendo a lógica do texto original e se contrapondo à orientação já pacificada na jurisprudência.
Além disso, o substitutivo restringe o escopo da indisponibilidade. A versão original do projeto, mais uma vez incorporando a orientação do STJ [12], enuncia que a indisponibilidade serve para a "recomposição do erário e a aplicação de outras sanções de natureza patrimonial". Com isso, engloba o ressarcimento de bens, a devolução do proveito ilicitamente obtido e a multa civil.
Pelo texto do substitutivo, a medida passaria apenas a "garantir a integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito" (artigo 16, caput), excluindo a multa civil. Pior ainda, o §10, em contradição com o próprio caput e com a tradição doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, enuncia que a indisponibilidade protege "exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, não incidindo sobre os valores a serem eventualmente aplicado a título de multa civil e sobre eventual acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito".
Não é só. Na versão original, o PL coloca todo o patrimônio, inclusive o bem de família, independentemente da época de aquisição dos bens [13], sob a mira da indisponibilidade, o que faz, outra vez, para acolher orientações solidificadas pelo STJ. O substitutivo suprime a referência a esses pontos (época de aquisição dos bens e sujeição do bem de família), no que não contribui para o aperfeiçoamento da aplicação da LIA.
Os resultados obtidos na ação de improbidade, no sentido da reversão dos danos causados ao erário, já são pífios. Não mais de 10% das ações terminam com efetiva recuperação de ativos pelo Estado [14]. As alterações propostas pelo substitutivo no regime de indisponibilidade de bens não parecem contribuir para a melhora deste cenário.
Em conclusão, pode-se afirmar que o PL 10.887/2018 tem a virtude de incorporar ao texto da LIA orientações solidificadas pela jurisprudência em temas fundamentais, conferindo maior segurança jurídica e previsibilidade na aplicação da lei. O substitutivo proposto, contudo, vai na linha contrária, se contrapondo, em muitos pontos, a temas já pacificados pelos tribunais, com o que tende a reabrir discussões já ultrapassadas, comprometendo a clareza e objetividade da LIA.
Além disso, não se deve esquecer que a lei, como indutora de condutas, sinaliza incentivos aos que estão sob sua influência [15]. Caso haja estímulo para adotar condutas positivas, estão serão adotadas. Ao contrário, se a norma for leniente, ou se a chance de punição for pequena, a norma tenderá a ser violada [16]. As propostas examinadas parecem sinalizar um afrouxamento no regime de proteção à probidade, o que pode ser percebido por agentes menos comprometidos com a honestidade como incentivo à prática de atos contra o patrimônio e a moralidade públicas.
FONTE: CONJUR