Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Artigo

A aplicação prática do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero no direito sucessório e nos inventários judiciais

por Eduardo Walmory Sanches

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025, 14h18

A vida dos herdeiros no Brasil, durante a tramitação do inventário judicial, não é fácil. Duração eterna dos Processos. Legislação ruim e ultrapassada. Reduzido número de profissionais (advogados, promotores, juízes, desembargadores e ministros) com efetivo conhecimento prático da matéria. Problemas emocionais relacionados a essa demora no julgamento do inventário.

 

Em suma: quadro caótico.

 

Mas acredite se quiser: existe alguém que consegue estar numa situação ainda pior, nesse cenário. A Herdeira e a meeira. Ou seja, A MULHER.

 

A herdeira, via de regra, durante o inventário judicial é maltratada pelos irmãos (herdeiros), pelos filhos do outro relacionamento do autor da herança, pelos próprios filhos (concorrentes na herança), pelas autoridades judiciais, pelos advogados, pelos herdeiros testamentários, e até mesmo pelos colaterais.

 

A dificuldade e o preconceito empregados contra a mulher, dentro do processo de inventário judicial, são surreais.

 

No cotidiano dos inventários judiciais, em plena disputa patrimonial familiar, o preconceito começa, logo após a nomeação da viúva para ser inventariante. Os filhos (homens), nesse caso, não aceitam que o inventário possa ser administrado pela mulher. Principalmente, se a mulher for de outro relacionamento e mais jovem.

 

Infelizmente em nossa sociedade, em especial no interior do Brasil, os papéis estereotipados são perpetuados e os atores sociais entendem como natural que a mulher tenha algum tipo de prejuízo material no inventário judicial.

 

Constata-se, essa discriminação contra a mulher, quando os irmãos não aceitam, por exemplo, a divisão dos quinhões de forma igualitária, conforme determina a legislação, pois entendem que a mulher não merece uma propriedade rural, sob o argumento de que a mulher não precisa do bem.

 

Muito comum ouvir durante o inventário judicial: 

- Excelência, pra que a minha irmã quer tanta terra? Uai. Não sabe nem tirar leite da vaca. Deixa uma casinha e um salário mensal pra ela que tá de bom tamanho. Ela não da conta de administrar. Vai perder o legado que meu pai deixou. -

 

A relação patriarcal e a misoginia, infelizmente, estão sim, presentes nos inventários judiciais, e se caracterizam como elementos próprios da estrutura de violência contra as mulheres. Numa tentativa de combater essas injustiças, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, fixado através da Resolução nº 492/2023. Essa orientação aos juízes, possibilita a identificação da situação fática de injustiça baseada no gênero, e permite a aplicação de mecanismos que promovam a igualdade material nos autos do inventário judicial.

 

O objetivo do homem, que segue essa prática da violência de gênero contra as mulheres é um só: obtenção de alguma vantagem patrimonial na partilha.

 

Revela notar, por oportuno, que na prática, em algumas ações e incidentes do direito sucessório, essa perseguição aparece com maior intensidade e frequência. Situações prejudiciais às mulheres em condição de vulnerabilidade aparecem durante os inventários judiciais.

 

Todo legítimo operador do direito, aquele que milita de verdade e de fato, o dia a dia dos inventários judiciais, já se deparou com alguma das seguintes situações: a) na discussão sobre as cotas sociais e os pedidos de dividendos das empresas que o autor da herança era sócio, em que os demais herdeiros, tentam valorar as cotas em valores menores, para depois, comprar as mesmas das herdeiras, excluindo-as da condição de sócias das empresas; b) nos pedidos de reconhecimento do Direito real de habitação, quando a mulher é pressionada por outros herdeiros, a renunciar tal direito; c) Nas ações de petição de herança, quando a mulher em situação de vulnerabilidade, é impedida, mediante, ameaça, intimidação ou até mesmo agressão, de ajuizar a respectiva ação dentro do prazo legal; d) na cessão onerosa de direitos hereditários, quando a mulher é constrangida, por outro herdeiro, a celebrar a cessão em condições prejudiciais; e) no pedido de reconhecimento de esforço comum na formação do patrimônio do casal, quando a mulher é constrangida a ter que provar que contribuiu na formação do patrimônio do casal; f) no incidente de remoção de inventariante.

 

O modelo patriarcal, e as determinações sociais formadas pelo contexto social e econômico, nos mais variados campos de expressão de poder, em especial no poder familiar, tendem a prejudicar a mulher, quando a mesma se encontra em condição de vulnerabilidade nas relações familiares, em especial, nas questões econômicas do Direito Sucessório.

O Tribunal da Cidadania ensina:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL. LEI N. 11 .340/2006. DESNECESSIDADE DE AFERIÇÃO ACERCA DA MOTIVAÇÃO DA OFENSA. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PRATICADA EM ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO . 1. A Lei Maria da Penha tutela a violência de gênero, assim entendido como uma construção social em que os papéis de gênero são tomados como um sistema de relações sociais estabelecidas entre homens e mulheres, estruturadas com base no modelo patriarcal e determinadas não pelo sexo biológico, mas pelo contexto social, político, econômico, nos mais variados campos de expressão de poder. 2. Dentro dessa perspectiva, consoante bem pontuado no "Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero"- grupo de trabalho instituído pela Portaria CNJ n . 27, de 2 de fevereiro de 2021, "o conceito de gênero diz respeito a um conjunto de ideias socialmente construídas, atribuídas a determinado grupo. Essas ideias são cristalizadas no que se convencionou chamar 'estereótipos de gênero'". 3. A lei não reclama considerações sobre a motivação da conduta do agressor, mas tão somente que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida . 4. É dizer, para a incidência da Lei Maria da Penha, basta a comprovação de que a violência contra a mulher tenha sido exercida no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida. 5. No caso dos autos, a acusada haveria praticado lesão corporal contra sua mãe, no ambiente doméstico. A decisão está em conformidade com a jurisprudência consolidada desta Corte Superior, que entende que "o objeto de tutela da Lei 11.340/2006 é a mulher em situação de vulnerabilidade não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor" (HC n. 277.561/AL, Rel . Ministro Jorge Mussi, 5ª T., DJe 13/11/2014). 6. Agravo regimental não provido .(STJ - AgRg no REsp: 2058209 SP 2023/0075743-6, Relator.: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 12/12/2023, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/12/2023)

 

Verifica-se, portanto, que a violência de gênero é uma realidade em sociedades patriarcais, como a brasileira. Muitas vezes, a violência e a ameaça, empregadas no âmbito doméstico impedem a mulher, em especial, a viúva ou a filha decorrente de outro relacionamento, de conseguir a plenitude de seus Direitos Sucessórios, perante o Poder Judiciário.

 

Vale lembrar, ainda, que essa vulnerabilidade da mulher, durante o inventário judicial, apresenta variações complexas e de difíceis detecção, diante de situações de violência, em especial, violência invisível/familiar.

 

Importante destacar que essa violência contra a mulher não é apenas a violência física. Tal violência, às vezes é invisível. Há também, a violência psicológica, a intimidação social, a violência psíquica/emocional e a violência financeira, que pode ser exercida por outros homens da família, tais como, irmãos, tios, primos e o próprio genitor, quando da disputa pela partilha dos bens do espólio, no inventário judicial.

 

Dessa forma, toda e qualquer prática de violência cometida em ambiente doméstico, familiar, ou em relação de intimidade/afeto, deve ser apreciada e levada em consideração pelo juízo sucessório, quando do julgamento da partilha no inventário judicial.

 

Cumpre, outrossim, destacar que essa situação fática justifica e exige a aplicação de mecanismos de proteção processual, que garantam a ocorrência do julgamento da partilha dos bens do espólio, sob essa perspectiva de proteção de gênero. O operador do direito, deve presumir a vulnerabilidade e a hipossuficiência da mulher, em situação de violência física, psicológica, psíquica, emocional e financeira, durante a tramitação do inventário judicial.

 

Revela notar que o Juiz possui o Poder de admissibilidade e valoração das provas produzidas no processo de inventário judicial (CPC, 139, 370 e 371). Tal afirmação está alicerçada no Poder Geral de Cautela, inerente à função jurisdicional. A título de sugestão, recomendo a utilização dos incidentes em apartado ao inventário judicial, para demonstrar e comprovar a necessidade de aplicação da resolução 492 do CNJ. Nesse incidente, em apartado ao inventário judicial, a prova testemunhal poderá ser produzida, por exemplo, para comprovar as situações que confirmam a prática da violência contra a mulher vulnerável que prejudicam a realização do direito constitucional de herança (art.5º, XXX).

 

O juiz do inventário judicial é antes de tudo, um gestor das emoções humanas. O condutor do feito deve possibilitar, sempre que necessário, a instauração do incidente, em apartado ao inventário judicial, para permitir a aplicação dos princípios do julgamento com perspectiva de gênero, fixado através da Resolução nº 492/2023.

 

Somente esse comportamento processual adequado e vigilante permitirá que a mulher (herdeira ou meeira), em condição de vulnerabilidade, tenha a efetiva oportunidade processual de provar os fatos e impedir a tentativa de prejudicar seu direito de partilha dos bens do espólio. Tal conduta processual visa garantir a plenitude do direito fundamental de herança, previsto na Constituição Federal no artigo 5º, inciso XXX.

 

Destarte, o juiz do inventário (GESTOR DAS EMOÇÕES HUMANAS), não pode ser omisso. Sua missão fundamental na condução do processo de inventário judicial é garantir e permitir a aplicação do verdadeiro Direito Sucessório desprovido de preconceito. Somente assim, as herdeiras e as meeiras terão a garantia real e a plenitude das possibilidades para produção de provas no inventário judicial. O juiz do inventário judicial deve empregar o correto e o justo juízo de admissibilidade e a adequada valoração das provas, visando a efetividade da Justiça, o reconhecimento da verdade real dos acontecimentos e a garantia do respeito ao protocolo de julgamento da perspectiva de gênero. Em conclusão: As decisões judiciais proferidas no âmbito do inventário judicial devem ser proferidas, em conformidade com as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, considerando a vulnerabilidade da mulher, dentro do contexto supracitado. Somente assim, as mulheres terão a garantia real de que a partilha dos bens será respeitada de forma absoluta.


Fonte: IBDFAM


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