Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

O futuro incerto dos botos do rio Amazonas em meio à seca histórica*

por Mayala Fernandes - Mongabay

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024, 08h30

Na seca extrema, a convivência com atividades humanas como pesca e vela aumenta os riscos para os botos amazônicos. Imagem cortesia da Sea Shepherd Brasil.

 

 

TEFÉ, Amazonas — "Eu moro nesta casa flutuante há 40 anos, e esta é a pior seca que já vi. Dá para perceber que a água caiu bem abaixo dos níveis de 2023", diz Carlos Magno, ao mostrar o ponto atingido pela água no ano passado. "Esse é um cenário assustador de assistir. E fica ainda mais assustador por causa da notícia de que isso vai piorar a cada ano."

 

Magno é mecânico de barcos e mora em uma casa flutuante sobre a água, geralmente construída em madeira ou metal, às margens do Lago Tefé, no município de mesmo nome localizado no coração do estado do Amazonas. Embora ele e sua família adorem morar perto do lago, onde estão cercados por água, floresta e animais, eles agora estão pensando em se mudar para terra firme por causa de secas cada vez mais severas.

 

"A casa flutuante já está completamente em terra. Dê uma olhada aqui para ver o quanto o nível da água caiu. Esta seca é quase 30 dias a mais; geralmente não chega a esse ponto", diz ele, preocupado. A água precisa subir para que Magno possa voltar ao trabalho. Por causa dos baixos níveis dos rios e lagos, os barcos param de viajar e ele perde clientes. Ele não tem trabalho há dois meses.

 

O Lago Tefé, uma formação lagunar do rio Tefé perto do ponto onde ele encontra o Solimões, vem passando por uma seca histórica este ano, atingindo apenas 4,5 metros (14,9 pés) - 13,5 m (44 pés) abaixo do nível de junho, no início da estação seca, quando tinha 18 m (59 pés) de profundidade (veja o gráfico abaixo). Além da redução drástica, a água restante registrou temperaturas extremamente altas, chegando a 40,3º Celsius (104,5° Fahrenheit), o mesmo que em 2023, segundo dados do Instituto Mamirauá de Desenvolvimento Sustentável (IDSM).

 

A seca histórica no rio Solimões reduziu drasticamente o nível da água do Lago Tefé, que atingiu apenas 4,5 metros (14,9 pés) em outubro. Imagem cortesia do ICMBio/Tefé.

 

 

Níveis de água do Lago Tefé de novembro de 2023 a novembro de 2024 (linha superior), ao longo de outros rios na área do Médio Solimões. Imagem cortesia do Instituto Mamirauá.

 

Em toda a Amazônia, 69% dos municípios vêm registrando taxas de seca ainda mais intensas do que as de 2023 — um aumento de 56% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com o Índice Integrado de Seca (IIS). No Amazonas, o Boletim de Seca 2024 do governo estadual indica que outras 850.000 pessoas foram impactadas por níveis mais baixos de água, e todos os 62 municípios estão em estado de emergência. De acordo com o Serviço Geológico do Brasil, a situação pode piorar até dezembro.

 

"Nas últimas décadas, observamos a intensificação de eventos hidrológicos extremos, com enchentes e secas recordes ano após ano", diz Ayan Fleischmann, pesquisador sênior do Grupo de Pesquisa em Geociências e Dinâmicas Ambientais na Amazônia do Instituto Mamirauá.

 

O monitoramento também é realizado por uma plataforma desenvolvida pelo World Wildlife Fund Brasil (WWF-Brasil) e pelo MapBiomas, que monitora 23 dos mais de 60 lagos da Bacia Amazônica. Ele revelou que as águas dos lagos conectados aos rios também atingiram temperaturas mais altas desde agosto.

 

Em 2024, 12 desses lagos já registraram temperaturas acima das registradas em 2023. Os dados também mostram que esses lagos tiveram temperaturas médias acima das do ano anterior por 5 a 9 meses, o que aponta para o estresse fisiológico experimentado por seres vivos repetidamente expostos a altas temperaturas e baixos níveis de água.

 

É o caso dos golfinhos.

 

Nas águas, uma tragédia anunciada

 

No Lago Tefé, em setembro e outubro de 2023, foram coletadas 209 carcaças de botos-cor-de-rosa (Inia geoffrensis) e botos-cinza localmente conhecidos como tucuxi (Sotalia fluviatilis), segundo pesquisadores do Instituto Mamirauá. Somente em 28 de setembro, 70 carcaças foram encontradas na área, um evento de mortalidade sem precedentes para essas espécies. Naquele ano, a maioria das mortes estava relacionada ao superaquecimento das águas, que atingiram temperaturas acima de 40ºC.

 

De acordo com estimativas feitas pelo Instituto Mamirauá, o Lago Tefé abriga aproximadamente 900 botos-cor-de-rosa e 500 tucuxis. Com uma taxa de reposição anual de apenas 5%, a perda de mais de 200 animais em 2023 representou um impacto significativo nessas populações. Cerca de 80% dos animais mortos naquele ano eram botos cor-de-rosa.

 

Ambas as espécies de golfinhos de água doce da Amazônia estão na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). O boto-cor-de-rosa e o tucuxi são considerados "ameaçados de extinção", o que significa que a espécie provavelmente será extinta em um futuro próximo. Este é o segundo nível mais sério de ameaça na lista da IUCN.

 

Em 2024, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Mamirauá decidiram se antecipar à tragédia. "A seca foi tão intensa no ano passado que o rio nunca recuperou seu nível. Já começamos com escassez de água. A expectativa era que a tragédia se repetisse", diz Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá. "Estávamos preparados para uma nova emergência, com monitoramento mais intenso, treinamento da equipe e aquisição de equipamentos específicos."

 

Diante do alto número de animais mortos, o ICMBio instituiu em 2023 a Emergência Botos de Tefé, uma operação de apuração da situação, com apoio técnico do Instituto Mamirauá e em parceria com diversas instituições. A agência também lançou a Emergência da Fauna Aquática 2024 em setembro, a fim de fortalecer o monitoramento dos animais na área e evitar novas mortes. Mais de 50 profissionais foram responsáveis por monitorar as condições da água e o comportamento animal duas vezes ao dia.

 

No entanto, a taxa de mortalidade dos golfinhos não foi a esperada. "Este ano foi mais seco; Estava muito quente e não vimos nenhum golfinho morrendo. Não entendíamos", conta Magno, que, em 2023, ajudou a coletar e transportar carcaças que muitas vezes iam parar em seu quintal.

 

Valdinei Lemos Lopes, que trabalha com golfinhos há mais de 20 anos e colaborou com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e o Instituto Mamirauá, diz acreditar que os animais anteciparam uma seca ainda mais severa e se mudaram para lugares mais seguros. "Os animais sabem mais do que nós; afinal, eles moram lá. No ano passado, a seca veio de repente e eles não tiveram tempo de deixar o lago. Este ano, eles fizeram questão de deixá-lo mais cedo", explica ele.

 

Segundo Fleischmann, o que impediu que a tragédia de 2023 se repetisse foi a menor incidência de radiação solar. Este ano, houve menos dias consecutivos de sol intenso, bem como mais chuvas e nuvens, o que impediu que o lago permanecesse a 40ºC por longos períodos.

 

"A temperatura da água no Lago Tefé varia muito. Pode ir de 27ºC [81°F] pela manhã a 40ºC à tarde em um único dia. Isso afeta todos os seres do ambiente aquático, mas não resulta em superaquecimento extremo de suas águas", diz Fleischmann.

 

Mas a seca ainda é o elemento por trás da morte desses animais. Com as águas baixas, os mamíferos aquáticos tornam-se mais vulneráveis e estão expostos a atividades humanas adversas, como pesca, caça e colisões com barcos.

 

A Sea Shepherd monitora a fauna local na área de Coari, uma cidade perto de Tefé. Eles contaram 37 carcaças, incluindo 22 tucuxis, cinco botos cor-de-rosa, dois golfinhos não identificados, quatro peixes-boi e quatro partes de peixes-boi. Embora alguns animais já estivessem em um estágio avançado de decomposição, todos apresentavam sinais de ação humana. "Encontramos os animais com marcas de redes de pesca e facadas", diz a diretora executiva da Sea Shepherd, Nathalie Gil.

 

Ela relata que, na primeira semana de monitoramento, a equipe observou sinais de caça ilegal à distância. Em uma operação com a Polícia Estadual, eles encontraram uma boia com dois peixes-boi mortos.

 

"Os peixes-boi são alvo da caça excessiva e são consumidos em Coari. Estamos falando de um grande consumo, com 15 a 20 animais capturados todos os dias", diz Gil. O peixe-boi amazônico é uma das 1.182 espécies brasileiras ameaçadas de extinção. Elas estão listadas como "vulneráveis" na Lista Oficial de Espécies Ameaçadas de Extinção da Fauna Brasileira.

 

A batalha entre golfinhos e pescadores

 

Embora os golfinhos não sejam diretamente visados pela caça, eles estão envolvidos em uma batalha com os pescadores locais. Segundo o pescador Edinei de Lima Ferreira, os botos-cor-de-rosa são "preguiçosos". Eles esperam que a rede de emalhar, uma rede de pesca feita de malha, se encha de peixes para que possam rasgá-la e comer. "O golfinho rasga a rede e perdemos todos os peixes", diz Ferreira.

 

"Trabalhamos tanto para consertar a rede e colocá-la no rio, e então aquele animal vem e rasga tudo. Se eles pegassem o peixe educadamente, eu não ficaria com raiva", diz ele. "Mas se pudéssemos, mataríamos todos eles", ele brinca.

 

No entanto, caminhando pela cidade de Tefé ou navegando pelos rios, é possível perceber que a tensão entre golfinhos e pescadores é grave. Lemos Lopes, que tem anos de experiência com a espécie, diz que é raro encontrar alguém na área que goste de golfinhos. "Algumas pessoas pensam que são bonitas, mas desde que estejam longe, não por perto. Também há medo das lendas que dizem que os golfinhos podem causar danos.

 

No folclore brasileiro, os golfinhos cor-de-rosa são conhecidos por sua capacidade mística de seduzir. Diz a lenda que, nas noites de lua cheia, o animal emerge dos rios como um homem atraente capaz de conquistar uma jovem e engravidá-la antes de retornar às águas.

 

Sabe-se agora que a lenda do boto-cor-de-rosa está fortemente ligada a casos de violência sexual na área. No entanto, por muitos anos, alimentou a perseguição a esses animais, que foram mortos por medo de seus supostos poderes de sedução. Também há relatos de que partes de golfinhos eram usadas como amuletos e que a gordura do animal era usada para fins medicinais. Embora a lenda não seja mais o principal motivo da caça, a captura retaliatória ainda ocorre em alguns lugares.

 

Na luta entre pescadores e golfinhos pelos recursos pesqueiros, o ressentimento dos primeiros vem chamando a atenção dos pesquisadores. Para evitar conflitos, estão sendo desenvolvidos dispositivos sonoros que mantêm os golfinhos longe das redes de pesca, evitando a destruição das redes de emalhar e a retaliação contra os animais.

 

O WWF-Brasil, em conjunto com a Sociedade de Pesquisa e Proteção Ambiental, começou a testar essa tecnologia em junho de 2023 na comunidade Prainha I, na Floresta Nacional do Tapajós, no Pará, onde os conflitos são comuns. Nos primeiros testes, houve uma redução de 40% nos danos às redes de emalhar e um aumento de três vezes na quantidade de peixes capturados. No entanto, a eficácia diminuiu na segunda fase de testes, quando os golfinhos começaram a se adaptar ao barulho e a encontrar novas formas de abordagem.

 

Karen Lucchini, pesquisadora do Centro de Mamíferos Aquáticos, ressalta que esses dispositivos, chamados de pingers, foram originalmente projetados para o ambiente marinho e que sua adaptação para uso em rios requer ajustes significativos. Fazer com que as pessoas adotem a tecnologia é outro desafio. "Enfrentamos resistência dos pescadores, que temem que suas capturas diminuam com o uso desses dispositivos. Além disso, seu custo é alto e adaptar essas tecnologias de forma acessível ainda é difícil."

 

Fonte: https://news.mongabay.com/2024/12/the-uncertain-future-of-amazon-river-dolphins-amid-historic-drought/

*Tradução automática


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