Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Qual é a fórmula para tornar as grandes cidades mais agradáveis, segundo urbanistas e arquitetos

por Ana Luiza Tieghi — De São Paulo

segunda-feira, 28 de julho de 2025, 16h18

Distanciamento entre as pessoas ocorre por tecnologia, violência e desigualdade de acesso, e pode piorar com a emergência climática, mas há solução

 

— Foto: Claudio Belli/Valor

 

Imagine ruas que pulsam com vida, onde os deslocamentos se tornam encontros, onde a natureza se transforma em um refúgio em meio ao concreto, e onde a distância social se encurta em favor de laços pessoais. Em meio ao ritmo alucinado das metrópoles, quando o crescimento costuma atropelar o planejamento, arquitetos e urbanistas criam propostas que poderiam enriquecer os espaços públicos. As soluções variam, mas um ponto comum emerge como essencial: a chave para cidades mais agradáveis e resilientes está na humanização e na reconexão entre as pessoas.

 

Pianista de formação, ex-diplomata e sócio de uma empresa de óleo e gás, o paulistano “nascido na avenida Paulista” Philip Yang tem entre seus muitos interesses o urbanismo e a melhoria das cidades. Com dinheiro levantado na venda de parte dos ativos da Petra Energia, ele fundou em 2011 o Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem), que idealiza projetos principalmente em habitação social, com foco em trazer mais população para áreas que já contam com infraestrutura.

 

São Paulo está se tornando uma “rosca”, afirma ele. As bordas, que representam a região metropolitana, estão inchando, enquanto o centro se esvazia, e isso ocorre mesmo com o boom de construção nas áreas mais centrais da cidade dos últimos anos. Há mais prédios, mas não necessariamente mais população. Dados do IBGE, levantados pela professora da FAU-USP Susana Pasternak e pelo professor da Unifesp Anderson Kazuo Nakano, mostram que 22,2% dos imóveis no anel central da cidade estão ociosos. A população na área caiu 0,36% de 2010 até 2022, enquanto o número de domicílios na cidade cresceu 2,9%.

 

"Daqui a pouco não teremos mais universos em comum para compartilhar, isso é muito preocupante” — Philip Yang

 

Reanimar a região central também seria uma forma de unir as diferentes classes sociais que compõem a cidade. “Há um distanciamento na formação de gostos e de objetos culturais que está fazendo com que, cada vez mais, as pessoas não se reconheçam”, afirma Yang. “Daqui a pouco não teremos mais universos em comum para compartilhar, isso é muito preocupante”.

 

O centro é a origem da metrópole, o passado que se torna um ponto comum entre todos os moradores. É também um jeito de reduzir os longos deslocamentos entre casa e trabalho.

 

Os problemas da maior metrópole do país são extensos, mas não são exclusivos da capital paulista. A experiência pessoal da professora Yara Baiardi, uma paulista de Tatuí, ecoa um sentimento comum em várias cidades: a imprevisibilidade do transporte público pode ser um fator limitante da liberdade e da qualidade de vida. Sua vivência em São Paulo, marcada pela espera infindável por ônibus, a levou a uma decisão pragmática, mas que contraria seu ideal de mobilidade.

 

Docente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Baiardi cresceu fazendo tudo a pé no interior paulista. Depois, morou por 20 anos em São Paulo, onde também “andava muito” e “pegava muito ônibus”. Até que, certa vez, ficou mais de uma hora no ponto, às 22h, aguardando o coletivo, que não chegava. “Para mim, deu, comprei um carro”, lembra.

 

Casaril em frente à Estação das Docas, em Belém — Foto: Fabio Lucena/Valor

 

Em Recife, onde mora desde 2020, a realidade não é diferente. A falta de infraestrutura cicloviária segura e um sistema de transporte público que não atende às necessidades dos estudantes revelam a urgência de uma transformação radical. A pandemia, paradoxalmente, parece ter reforçado o individualismo no transporte, uma oportunidade perdida de investir em alternativas coletivas e sustentáveis.

 

Na capital pernambucana, também precisa usar o carro - contra a sua vontade. A universidade fica à beira da BR-101 e foi projetada para deslocamentos em automóvel. Baiardi gostaria de poder ir de bicicleta, o que “já mataria a academia”, mas sente que não há segurança para isso.

 

Seus alunos, futuros urbanistas, recorrem ao carro particular, a caronas ou ao serviço de moto-táxi de aplicativos, mais rápido e mais barato do que outras formas de transporte. “Eles dizem que não pegam ônibus com o laptop na bolsa, e estão se colocando em risco no Uber Moto”, afirma. Muitos têm sua primeira experiência no metrô de Recife - um trem de superfície - na aula de Baiardi.

 

" As cidades morrem quando você tira o sujeito do espaço público, vimos isso quase acontecer na pandemia” — Miguel Pinto Guimarães

 

A situação da mobilidade está tão crítica no país que apenas uma “ruptura” daria espaço para a transformação, diz ela. Se a pandemia foi um momento de quebra, esta serviu para privilegiar ainda mais o transporte individual. “Falavam para não pegar transporte público, mas por que não discutimos colocar mais ônibus? Ou, como aconteceu na Europa e em Bogotá, fazer mais ciclovias”, questiona a professora. “Todos os municípios perderam a oportunidade de implementar ciclovias.”

 

Em seu doutorado, ela pesquisou como a falta de um plano unificado de mobilidade, que envolvesse as três instâncias de poder (federal, estadual e municipal), prejudica o desenvolvimento do sistema de transporte público.

 

“Não conseguimos fazer um planejamento de mobilidade, porque é cada um pensando em uma caixinha”, diz. Ela defende a criação do Sistema Unificado de Mobilidade (SUM), que poderia funcionar de forma análoga ao SUS, com uma atribuição clara dos deveres de cada poder, e também da adoção de outros modais de transporte, como o VLT (veículo leve sobre trilhos).

 

Hoje, a maior “novidade” em mobilidade parece ser o carro elétrico. Baiardi lembra, no entanto, que por mais sustentável que seja a matriz energética desses veículos, o lugar que eles ocupam nas cidades é o mesmo do carro a gasolina, assim como os carros de aplicativo. “Isso não resolve o problema do uso do espaço”, ressalta.

 

O arquiteto carioca Miguel Pinto Guimarães, por sua vez, acalenta o sonho de uma cidade onde a vida transcenda o binômio casa-trabalho. Ele visualiza moradores que se apropriam do espaço público, que encontram prazer nos trajetos, nas interações cotidianas, nos pequenos comércios de rua.

 

A revitalização do Jardim de Alah, ligação entre Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro, projetada por seu escritório Opy, é um exemplo dessa visão. Por meio de um modelo de concessão à iniciativa privada, inspirado em casos internacionais de sucesso como o Highline em Nova York e a Praça Lisboa no Porto, busca-se transformar um espaço degradado em um ponto de encontro vibrante, com comércio, lazer e áreas verdes. “O morador não pode sair do metrô e subir para o seu apartamento. Tem que ficar no espaço público por mais tempo, ir ao mercado, comprar pão, encontrar um amigo no bar no caminho, chamar a esposa, voltar para casa à meia-noite”, diz.

 

Vista aérea da Praça do Marco Zero no Recife — Foto: Getty Images/Istock Photo

 

Sua empresa, que também tem como sócios os arquitetos Sérgio Conde Caldas e João Souza Machado, idealiza e constrói casas e trabalha com urbanismo, como o projeto de remodelação do Jardim de Alah. “O poder público tem uma função muito importante de regrar e fiscalizar, mas o eixo catalisador [das mudanças] tem que ser a iniciativa privada”, afirma.

 

Machado cita a Praça Lisboa, no Porto, como um espaço “degradado” que floresceu com a intervenção da arquitetura e da iniciativa privada. “Hoje tem uma das livrarias mais bonitas de Portugal, a Lello, voltou a ser um espaço de convívio, com jardim em cima, comércio embaixo e estacionamento abaixo [de tudo]”, diz.

 

No caso do Jardim de Alah, há ainda um valor nostálgico, já que os três sócios moraram no Leblon e frequentam a área desde crianças - o que não significa que as lembranças são boas. “Eu ia ao [clube] Monte Líbano jogar vôlei quando era garoto, era uma aventura, tinha que ir em bando, porque era um lugar onde as pessoas eram assaltadas”, lembra Caldas. “E assim segue”.

 

Para ter mais segurança nas cidades, é preciso ter ruas mais “vivas”, e projetos urbanísticos podem colaborar para isso. “As cidades morrem quando você tira o sujeito do espaço público, vimos isso quase acontecer na pandemia, inclusive no Rio”, afirma Guimarães.

 

O trio de arquitetos da Opy afirma que o projeto trará mais verde e equipamentos públicos, desmitificando a ideia de privatização do espaço. Para eles, a iniciativa privada, com a devida regulação e fiscalização do poder público, pode ser a força motriz para a requalificação urbana. Ruas vivas, com movimento constante, são também sinônimo de mais segurança para todos.

 

Em Belém, os arquitetos Luis Guedes e Pablo do Vale, do escritório Guá, buscam inspiração nas soluções engenhosas das comunidades ribeirinhas da Amazônia. Suas casas, construídas com materiais locais e adaptadas ao ritmo das águas e ao clima equatorial, oferecem lições valiosas de sustentabilidade e conforto.

 

A parceria do escritório com os “carpinteiros-arquitetos” da Ilha do Combú, nos arredores de Belém, resultou na coleção de móveis Pallas, um reconhecimento da expertise local e um impulso para a economia da comunidade. A pesquisa com argilas da Amazônia e outros materiais regionais reforça o valor da ancestralidade e a urgência de adaptar a arquitetura urbana a esses conhecimentos.

 

A influência europeia na arquitetura de Belém, herança do ciclo da borracha, por vezes ofuscou a riqueza das soluções vernaculares. No entanto, um movimento de valorização da identidade nortista ganha força, impulsionado também pela proximidade da COP 30.

 

Projeto de remodelação do Jardim de Alah, ligação entre Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro, projetada pelo escritório Opy, de Miguel Pinto Guimarães — Foto: Divulgação

 

A dupla questiona a adoção de soluções inadequadas ao clima local, como telhados de cerâmica ou amianto, em detrimento do conforto térmico proporcionado pelo tradicional telhado de palha. A arquitetura ribeirinha, com seus beirais generosos e casas elevadas, oferece um manual de adaptação bioclimática que merece ser revisitado.

 

O paisagista Benedito Abbud defende a importância do planejamento e da manutenção do espaço público, citando Curitiba e Maringá como exemplos de excelência. Ele também aposta no desenvolvimento de espaços de uso público dentro de empreendimentos privados, como no Brascan Century Plaza e no futuro Cidade Matarazzo, que seriam fontes de “gentilezas urbanas”, promovendo a convivência e o bem-estar.

 

Para Abbud, o contato com a natureza nas cidades proporciona uma “sustentabilidade pessoal”, um momento de pausa e reconexão consigo mesmo. A arborização urbana, além de embelezar, contribui para o conforto térmico e a qualidade do ar. Ele sugere a criação de maquetes urbanas interativas para que a população possa compreender e participar do planejamento da cidade do futuro.

 

O incentivo às fachadas ativas é apontado pelo arquiteto Arthur Casas como uma medida inteligente para revitalizar áreas próximas a corredores de transporte público, aumentando a circulação de pessoas e a sensação de segurança. Essa política resgata o espírito do urbanismo modernista, presente em ícones como o Copan e o Conjunto Nacional, que integravam comércio, trabalho e moradia.

 

Casas ressalta a importância de uma curadoria cuidadosa dos estabelecimentos que ocupam essas fachadas ativas, para que agreguem valor aos empreendimentos e ao entorno. Ele enxerga nessas fachadas uma oportunidade de valorização imobiliária e de fortalecimento do comércio de rua. Se mal empregadas, no entanto, podem ter o efeito inverso.

 

A busca por cidades mais agradáveis passa também pela resiliência climática e pela adaptação das moradias ao seu entorno. Para o Guá, a arquitetura amazônica tradicional oferece soluções bioclimáticas eficazes e sustentáveis.

 

Arthur Casas lamenta o abandono de conhecimentos básicos de conforto térmico em favor do arcondicionado, uma solução que, apesar de difundida, contribui para o consumo excessivo de energia e a emissão de poluentes. Seu escritório resgata tecnologias modernistas como os brises. Ele defende, ainda, as construções pré-fabricadas, como aquelas que usam madeira engenheirada, como alternativas mais sustentáveis e eficientes.

 

A Opy também aposta na madeira engenheirada, um material com apelo estético e sustentável, e na integração de áreas de convivência nas residências, buscando resgatar os laços familiares em um mundo cada vez mais digital.

 

As próprias moradias estão em transformação, com a redução do tamanho dos imóveis e a integração de espaços. Casas aponta a necessidade de repensar a obrigatoriedade de um banheiro por quarto em apartamentos menores, priorizando a funcionalidade e o bem-estar.

 

O futuro das cidades passa também pela prevenção de desastres naturais. Philip Yang destaca o conceito de “cidades-esponja” adotado na China, com soluções baseadas na natureza para a gestão de águas pluviais. Abbud defende a modernização dos sistemas de drenagem urbana. Para Yang, um planejamento urbano mais inteligente é uma ferramenta poderosa para reduzir a desigualdade social, por meio da oferta de bens coletivos de qualidade.

 

Em um futuro onde a sofisticação se traduz em bem-estar, em conexões humanas genuínas e em respeito ao meio ambiente, o novo olhar sobre o urbanismo nos convida a reimaginar nossas cidades como espaços de vida plenos e inspiradores.

 

Fonte: Valor Econômico


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