Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Opinião

Novo Marco Legal do Licenciamento Ambiental. E agora?

por Karin Kassmayer

quinta-feira, 04 de setembro de 2025, 16h25

Após 21 anos, finaliza a tramitação do Marco Legal do Licenciamento Ambiental no Congresso, com a sua aprovação, no dia 17 de julho , na Câmara dos Deputados, por 267 a 116 votos, e 130 ausentes.

 

 

Originário do Projeto de Lei (PL) nº 3.729/2004, a proposição tinha por objeto dispor sobre o licenciamento ambiental e regulamentar o inciso IV do § 1º da Constituição, que trata do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA). Embora o objeto tenha se mantido o mesmo — trata-se de instituir norma geral para disciplinar o procedimento do licenciamento ambiental —, o PL nº 2.159/2021 (numeração após sua remessa ao Senado) se distancia em muitos aspectos de sua versão original. Entre outros fatores, a aprovação da Lei Complementar (LCP) nº 140/2011, ao fixar normas para a cooperação entre os entes federativo em matéria ambiental, com regulamentação dos incisos III, VI e VII, do caput do artigo 23 da Constituição, tornou a discussão sobre a competência do licenciamento ambiental obsoleta.

 

Além disso, na longa trajetória na Câmara dos Deputados, foram apensadas 23 proposições ao PL. Nesse tempo, o texto foi arquivado e desarquivado a cada mudança de legislatura, discutido em inúmeras oportunidades no plenário da Casa, com apresentações de versões de substitutivos em várias comissões, até sua aprovação, em 13 de maio de 2021. Na Casa Iniciadora, o ano de 2019 foi emblemático, com o impulsionamento do debate pela criação de um Grupo de Trabalho (GT) sobre o Licenciamento Ambiental [1], e coordenado, à época, pelo deputado Kim Kataguiri. A 4ª versão do GT, de 8 de agosto de 2019 [2], não apreciada, já apresentava semelhança estrutural e de conteúdo com a Subemenda Substitutiva Global apresentada pelo relator deputado Neri Geller e definitivamente aprovada na Câmara dos Deputados.

 

No Senado, o PL nº 2.159/2021 tramitou por quatro anos, tendo sido distribuído para análise simultânea nas Comissões de Meio Ambiente (CMA) e Agricultura e Reforma Agrária (CRA), com a realização, em 2023, de audiências públicas para instrução da matéria, compondo o corpo de oradores representantes governamentais, organizações da sociedade civil e academia. [3] Aprovado em 20 de maio de 2025 nas comissões, o projeto foi a plenário no dia seguinte, onde recebeu 46 emendas, de um total de 174 emendas apresentadas.

 

O relatório final aprovado acatou diversas emendas apresentadas em plenário e resultou em 32 emendas no parecer final. [4] Portanto, o Senado realizou substanciais alterações ao projeto da Câmara, algumas, inclusive, nos últimos momentos de sua discussão, já em fase de Plenário, o que acarretou o retorno do PL à Casa Iniciadora, para esta acatar, ou não, as alterações propostas pela Casa Revisora, conforme determina o parágrafo único do artigo 65 da Constituição.

 

Por fim, retornado à Câmara, houve a discussão e votação das emendas do Senado ao PL nº 2.159/2021, no dia 17 de julho. Em que pese requerimento de adiamento da proposição, este fora rejeitado. O parecer da Câmara aprovou as emendas do Senado, com exceção do inciso IV do artigo 8º da Emenda nº 9 (dispensa do licenciamento para obras e intervenções emergenciais ou realizadas em casos de estado de calamidade pública ou situação de emergência decretados por qualquer ente federativo), da expressão “em até 24 horas” da Emenda nº 32, que se refere ao novo artigo 65 do PL e estabelece regras sobre a atuação dos demais órgãos ambientais face ao órgão competente para licenciar. Ainda, foram aprovadas subemendas de redação a outras emendas. A matéria foi à sanção presidencial em 18 de junho pela Mensagem nº 24/2025 [5].

 

Avanços ou retrocessos?

A longa tramitação do PL do Licenciamento no Congresso, o número expressivo de emendas apresentadas, o descontentamento com o resultado da minuta elaborada pelo GT quando a proposição ainda tramitava na Câmara, os debates e posições antagônicas defendidas nas audiências públicas refletem a difícil e complexa tarefa de o Parlamento legislar sobre o principal instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente, criado pelo artigo 9º, IV, da Lei nº 6.938/1981, e envolto por polêmicas.

 

Tendo por objetivo assegurar a qualidade de vida da população por meio de um controle prévio e de um continuado acompanhamento das atividades humanas capazes de gerar impactos sobre o meio ambiente, conforme leciona Talden Farias [6], o licenciamento ambiental se propõe a concretizar o desenvolvimento nacional sustentável, além de materializar a atuação prévia estatal de controle de atividades de risco, com amparo nos artigos 225, caput, e §1º, V, e 170, VI, da Constituição.

 

A versão que vai a sanção, todavia, ou é completamente rechaçada como inconstitucional por veicular retrocessos ambientais, tendo a denominação PL da Devastação, ou é festejada como a norma que garantirá desburocratização e eficiência do procedimento, e combaterá a sua morosidade atual [7]. De quem é a razão?

 

Com 67 artigos, subdivididos em três capítulos, o PL busca preencher lacuna legislativa no ordenamento jurídico referente ao procedimento do licenciamento. Excesso de judicialização, anomia, ampla discricionariedade dos órgãos licenciadores, demora do procedimento, insegurança jurídica, cipoal normativo de regramentos, são alguns dos argumentos mais frequentes, aceitos por ambientalistas e pelos setores econômicos, que justificam de modo uníssono a necessidade de uma norma geral do licenciamento ambiental e maior agilidade no procedimento, para alavancar o desenvolvimento sustentável do país.

 

Por um lado, o PL nº 2.159/2021 veicula regras desburocratizantes, propondo-se a garantir maior eficiência e agilidade procedimental, e segurança jurídica. Entre outros, traz diretrizes ao licenciamento ambiental (artigo 2º); define conceitos, base para uniformizar a aplicação da norma no território nacional (artigo 3º); define estudos técnicos pertinentes a cada tipo de licenciamento (artigo 5º); cria o licenciamento ambiental e urbanístico integrado (artigo 11); estatui normas para fixação de condicionantes (artigo 14); estabelece normas sobre o EIA (artigos 28 a 30); permite a utilização de estudos ambientais para o conjunto da mesma área de estudo e aproveitamento de estudos já realizados (artigos 32 e 33); cria subsistema integrado de informação sobre licenciamento ambiental no Sistema Nacional de Informação Ambiental (Sinima) (artigos 35 a 37); e define novas modalidades de participação pública (artigos 39 a 41). No Senado, houve a exclusão de um preocupante § 3º do artigo 1º, que excluía da aplicação da futura lei a empreendimentos minerários, o que poderia gerar a deturpação da intenção da lei em tornar-se uma norma geral.

 

Pontos sensíveis

No entanto, a proposição está repleta de dispositivos controversos. Razão assistem aqueles que alertam sobre os riscos futuros de judicialização dos procedimentos de licenciamento ambiental e debate sobre a inconstitucionalidade (parcial) no Supremo Tribunal Federal (STF), caso o PL seja sancionado. Desde 2019, o texto, já eivado de polêmicas, não alcançou consenso e ganhou versões com dispositivos sensíveis, eivados de vícios de inconstitucionalidade e que podem, sim, representar retrocessos na proteção ambiental. Tratemos de alguns desses pontos:

 

Licença por Adesão e Compromisso (LAC)

Amplamente regulamentada por estados, a LAC não ficou restrita a empreendimentos de baixo impacto ambiental, conforme jurisprudência do STF [8], mas sim a atividades ou empreendimentos de pequeno ou médio porte e baixo ou médio potencial poluidor (artigo 22). Um futuro veto do dispositivo, ao excluir a LAC, ensejaria necessidade de nova regulamentação para empreendimentos exclusivamente de pequeno porte e baixo potencial poluidor.

 

Dispensa do licenciamento ambiental

A total dispensa do licenciamento ambiental, cabível em hipóteses de ausência de impacto ou dada sua tipologia (como os de caráter militar, cuja legislação já os dispensa) [9], foi ampliada para empreendimentos que comprovadamente causam impacto ambiental, como serviços e obras direcionados à manutenção e melhoramento da infraestrutura em instalações preexistentes ou em faixas de domínio e de servidão, incluídas rodovias já pavimentadas e dragagens de manutenção, além de atividades e empreendimentos de abastecimento de água e esgotamento sanitário até o atingimento das metas de universalização (artigos 8º, VII, e 10, § 2º).

 

Em outras palavras, uma estação de tratamento de esgoto poderá ser instalada sem controle prévio ambiental, sem definição de condicionantes, sem monitoramento e fiscalização da licença. Tais empreendimentos devem se sujeitar ao controle estatal prévio. Obras de infraestrutura são necessárias para o desenvolvimento do País, e a desburocratização pode ocorrer com procedimentos simplificados, mas não com a total dispensa da atuação prévia estatal.

 

Participação das autoridades envolvidas

Outro ponto polêmico diz respeito à limitação da participação de autoridades envolvidas, como a Funai e a Fundação Palmares, em terras indígenas homologadas e áreas tituladas de remanescentes das comunidades de quilombos, o que representa retrocesso institucional dado que a Portaria Interministerial nº 60/2015, que estabelece procedimentos administrativos que disciplinam a atuação dos órgãos em processos de licenciamento ambiental de competência do IBAMA, não estabelece tal restrição (arts. 42 a 44). [10]

 

Alterações na Lei nº 9.985/2000 (Snuc) e na Lei nº 11.428/2006 (Lei da Mata Atlântica)

Sem a pretensão de esgotar a análise dos artigos do PL, importa citar a preocupante alteração do § 3º do artigo 36 da Lei nº 9.985, de 2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), ao excluir a exigência da autorização prévia do órgão gestor das unidades de conservação, no caso de licenciamento ambiental que afete unidade de conservação ou sua zona de amortecimento.

 

O PL excluiu importante função desses órgãos na tutela das áreas protegidas, sob sua gestão e fiscalização (artigo 61). Ainda, pretende revogar os §§ 1º e 2º do artigo 14 da Lei nº 11.428/2006 (Lei da Mata Atlântica), dispositivos que preveem a autorização no caso de supressão de vegetação de Mata Atlântica. Além de matéria estranha à Lei do Licenciamento, trata-se de medida que contraria o interesse público e os ditames constitucionais de proteção ambiental, configurando-se desproporcionais à efetiva tutela do direito fundamental ao meio ambiente.

 

Conclusão

Após 21 anos de tramitação do PL do Licenciamento, o texto final enviado à sanção presidencial está envolto de celeumas e fragilidades e representa, nos pontos apontados, vícios de constitucionalidade. A sanção ou veto (parcial, a nosso ver) ao novo Marco Legal do Licenciamento Ambiental representará um marco decisivo na definição das prioridades governamentais em matéria de proteção ambiental.

 

Sua análise será fundamental não apenas para sinalizar o grau de compromisso do Executivo com os princípios constitucionais ambientais, mas também para indicar os caminhos futuros da controvérsia jurídica sobre a sua constitucionalidade, que certamente chegará ao Supremo Tribunal Federal. Trata-se de uma decisão que, mais do que formal, terá profundas repercussões institucionais, ambientais e políticas.

 

[1] Ato do Presidente da Câmara dos Deputados de 3 de junho de 2019 (criação do GT) e de 6 de junho de 2019 (designação dos Parlamentares a comporem o GT).  Disponível aqui.

[2] Disponível aqui.

[3] Composição completa dos oradores das audiências públicas disponível na informação sobre a tramitação do PL nº 2.159/2021. Disponível aqui.

[4] Parecer nº 64, de 2025 – Plen/SF disponível aqui.

[5] Disponível aqui.

[6] Aspectos gerais do licenciamento ambiental. 10ª ed. São Paulo: Ed. JusPodivm, 2025, p. 26.

[7] Conforme reportagem da Folha de S.Paulo. Disponível aqui.

[8] Vide ADI 6.618/RS e ADI 5.014/BA

[9]  Vide art. 7º, alínea f da LC nº 140/2011.

[10] Art. 2º, XII e XIII da Portaria Interministerial nº 60/2015.

 

Karin Kassmayer é professora de Direito do mestrado profissional do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa). Mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), tendo realizado doutorado sanduíche na Universidade de Tübingen, Alemanha (2007-2008), sob orientação do professor Otfried Höffe.

 

Fonte: Conjur


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