Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Considerações sobre o Direito Processual Penal Ambiental no Brasil

quinta-feira, 18 de setembro de 2025, 17h08

A Constituição vigente dispensou especial proteção ao meio ambiente ao longo de seu texto, reconhecendo o macro bem ambiental como  um direito de todos, essencial à sadia qualidade de vida, sendo obrigação do poder público e da coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo, tanto para as presentes, quanto para as futuras gerações.

 

Assim, o meio ambiente, em seu sentido lato, segundo a ordem constitucional vigente, tem natureza difusa, indisponível e intergeracional.

 

Na dicção do Supremo Tribunal Federal:

“Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que atende a todo o gênero humano. Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, obrigações especiais de defesa e preservação, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual. O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõem, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral” [1].

 

A fim de contribuir para o alcance da manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Constituição estabeleceu ainda, de maneira expressa, no artigo 225, § 3º, que  as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

 

De tal sorte, para além da responsabilidade nas searas administrativa e civil, nosso ordenamento constitucional estabeleceu um verdadeiro mandado de criminalização no que pertine às condutas lesivas ao meio ambiente, instituindo a obrigação estatal de criação, não revogação e efetiva aplicação do direito penal ambiental.

 

Dando cumprimento ao mandado de criminalização contido no texto constitucional, em 12 de fevereiro de 1998 adveio ao ordenamento jurídico brasileiro a Lei nº 9.605, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências.

 

Apesar de ser popularmente conhecida como “Lei de Crimes Ambientais”, o referido diploma normativo possui espectro  muito mais abrangente, incluindo disposições de Direito Civil, Direito Administrativo Sancionador e Direito Internacional Público.

 

Para além de dispositivos de Direito Penal material, o diploma carrega em seu bojo diversos artigos relacionados ao processo penal ambiental, que reclama normas específicas, capazes de efetivar, adequadamente, a tutela dos bens ambientais prevista no direito penal ambiental substantivo. Com efeito, as enormes especificidades do Direito Penal Ambiental impõem a necessidade de que o correspondente Direito Processual Penal Ambiental preveja as “normas de trabalho” [2]  necessárias ao exercício conjugado da jurisdição, da ação e da defesa pelos diversos atores que participam da relação jurídica processual.

 

Em razão disso, entendemos a Lei nº 9.605/98 como norma geral de responsabilização criminal na área do meio ambiente, servindo de matriz especializada para orientar a aplicação do Direito Penal e Processual Penal Ambiental em nosso país, como  um sistema autônomo, destacado das regras penais e processuais penais clássicas.

 

Essa independência mostra-se fundamental em razão das peculiaridades relacionadas aos crimes cometidos o meio ambiente, cuja proteção adequada não se consegue efetivar com o a utilização dos velhos instrumentos relacionados ao Direito Penal convencional, vocacionado, sobretudo, para a tutela de direitos individuais e, não raras vezes, disponíveis, com persecução passível de ser iniciada até mesmo por iniciativa privada.

 

Sistema próprio

Em razão da sua natureza de norma geral de tutela do meio ambiente, que prepondera sobre as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal (artigo 79 da Lei 9.605/98), as disposições especializadas da Lei de Crimes Ambientais constituem um sistema próprio de processamento e responsabilização ambiental criminal, que, inclusive, se estende aos delitos ambientais tipificados em outros diplomas, como a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979), a Lei que estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGM) e seus derivados (Lei 11.105, de 24 de março de 2005) e a Lei de Agrotóxicos (Lei 14.785, de 27 de dezembro de 2023), entre outras.

 

Uma das marcas características da Lei 9.605/98 é a busca, para além da imposição dos reflexos penais decorrentes da violação da ordem jurídica, seja pela via das medidas despenalizadoras, seja por meio da sentença penal condenatória, da composição civil dos danos causados ao bem jurídico ambiental.

 

Ou seja, busca-se no bojo do processo penal ambiental, não somente punir criminalmente a ação delituosa, mas, sobretudo, assegurar a proteção concreta do bem jurídico ambiental, tanto por meio da reparação de danos já causados, quanto pela prevenção de novas condutas lesivas.

 

E não poderia ser de outra maneira, pois os princípios da prevenção e da reparação de danos são pilares essenciais do Direito Ambiental e eles se projetam sobre todos os sub-ramos  dessa matéria, incluindo o criminal.

 

O doutrinador Alex Fernandes Santiago [3] constata que o Direito Penal Ambiental brasileiro foi concebido como um Direito Penal em que a viga mestra é a reparação do dano, pois como bem destaca o doutrinador, de “nada servirá um Direito Penal que pretenda proteger o meio ambiente e não se ocupe da reparação do dano ambiental. A reparação é essencial, imanente a qualquer discussão sobre meio ambiente” [4]

 

Dentro de tal contexto, a Lei 9.605/98 estabelece como condição para a aplicação do instituto da transação penal, cabível nos crimes de menor potencial ofensivo, a prévia composição civil dos danos ambientais (artigo 27). No âmbito do instituto da suspensão condicional do processo, a extinção da punibilidade do agente somente pode ocorrer após a constatação pericial da reparação dos danos (artigo 28). Ademais, a sentença penal condenatória sempre deverá fixar valor mínimo para a reparação dos danos ambientais (artigo 20).

 

Inovação

No campo da destinação dos instrumentos da prática delituosa, a Lei 9.605/98  inova muito em relação ao previsto no direito penal e processual clássicos, determinando a perda e alienação mesmo daqueles que não consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito (artigo 25, § 5º).

 

Os produtos dos crimes, de natureza perecível, devem ser avaliados e doados a instituições científicas, culturais ou educacionais, não se aplicando o tradicional perdimento em favor da União (artigo 25, § 3º).

 

Em matéria probatória, a Lei 9.605/98 também traz novidades e, inclusive,  flexibiliza a instrução processual, permitindo, por exemplo,  que a  perícia produzida no inquérito civil ou no juízo cível possa ser aproveitada no processo penal, instaurando-se o contraditório (artigo 19, parágrafo único).

 

A Lei de Crimes Ambientais estabelece expressamente, ainda, que a ação penal versando sobre crimes contra o meio ambiente será sempre pública (artigo 26), assegurando ao Ministério Público a legitimidade para a persecução penal em todas as hipóteses.

 

Outro ponto de destaque é a possibilidade de figurar no polo passivo das ações penais ambientais as pessoas jurídicas (artigo 3º), para quem, além de se prever sanções específicas (artigos 21 a 23), pode ser aplicada até mesmo a sua extinção (artigo 24).

 

Para viabilizar a aplicação de todas essas novidades,  um Direito Penal comprometido com as futuras gerações não pode prescindir de mecanismos processuais aptos e eficazes à efetiva proteção dos bens ambientais concretamente considerados,  propiciando a adequada tutela jurídica.

 

Cabe ao legislador captar as particularidades do direito material e prever, abstratamente, as regras processuais que com elas sejam consentâneas para a obtenção do acesso à ordem jurídica justa [5].

 

Foi bem isso que fez a Lei 9.605/98, dando  início, em nosso país, à positivação de regras específicas que compõem o que denominamos Direito Processual Penal Ambiental, disciplina que começa a conquistar novos olhares da doutrina jus ambientalista brasileira.

 

[1] ADI 3540 MC, Relator Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 01-09-2005, DJ   03-02-2006.

[2] Expressão utilizada por CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiro. 15. ed.  1999. p. 40.

[3] Fundamentos de Direito Penal Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey.  2015. p. 89.

[4] Fundamentos de Direito Penal Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey.  2015. p. 349.

[5]  RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo Civil Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008. p. 53.

 

Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça e professor de Direito do Patrimônio Cultural.

 

Fonte: Conjur


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