Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Cadastro de estupradores' de SP: inconstitucionalidade, ilegalidade e ineficácia

quinta-feira, 03 de julho de 2025, 15h51

No último dia 30, o governo de São Paulo sancionou a Lei nº 18.157/2025, que cria cadastro de condenados por estupro. Embora aparentemente bem-intencionada, a lei que já passou por diversos vetos, na parte remanescente, levanta sérias dúvidas sobre sua constitucionalidade, eficácia e alinhamento com os princípios que regem o direito penal brasileiro.

 

Reprodução

Desembargadores apontaram contradições no testemunho da vítima e falta de provas robustas para absolver o acusado

 

Longe de se apresentar como uma solução definitiva para a violência sexual, a medida parece servir, na verdade, para desviar o foco de ações mais eficazes e urgentes, além de configurar uma clara violação de institutos da lei penal e usurpação de competência legislativa.

 

 

Primeiramente, é fundamental questionar o real compromisso do estado de São Paulo com a redução da violência contra a mulher, principal vítima dos crimes contra a dignidade sexual, quando a criação de um cadastro punitivo se sobrepõe ao investimento, por exemplo, em educação de gênero.

 

A prevenção da violência sexual passa, inevitavelmente, pela desconstrução de padrões socioculturais, pela promoção da igualdade e pelo respeito às diferenças desde a base educacional. Sem um esforço genuíno e contínuo nessa área, medidas como o cadastro mostram-se paliativas e populistas, não abordando as raízes do problema.

 

A ausência de políticas públicas robustas de educação de gênero no estado sugere uma inversão de prioridades, onde a punição e — pior — a estigmatização, se sobrepõem à prevenção, que deveria estar no foco principal das políticas públicas.

 

Pena perpétua

 

Um dos pilares do direito penal brasileiro é o princípio da não previsão de penas de caráter perpétuo. A Constituição, em seu artigo 5º, inciso XLVII, proíbe expressamente que penas se estendam indefinidamente. Um cadastro de condenados por estupro, que mantém o indivíduo rotulado e publicamente identificado por tempo indeterminado, mesmo após o cumprimento da pena, assemelha-se a uma pena de caráter perpétuo, pois se apresenta como efeito da condenação.

 

O cadastro também pode ser lido como uma punição que transcende a sanção imposta pela condenação e impõe uma nova forma de punir, ferindo um direito fundamental do indivíduo e a própria essência do sistema penal, o que também acarreta na violação da competência para legislar.

 

A lei estadual ignora o instituto penal da reabilitação criminal, previsto no artigo 93 e seguintes do Código Penal. Este instituto visa a reinserção social do condenado após o cumprimento da pena, apagando os efeitos secundários da condenação e permitindo que o indivíduo retome sua vida em sociedade sem o estigma eterno do crime.

 

O cadastro permanente contraria essa premissa fundamental, perpetuando o estigma e impedindo a ressocialização, função precípua da aplicação da sanção penal.

 

A lei ainda viola frontalmente o conceito da reincidência criminal. Prevista no artigo 63 do Código Penal, a reincidência é instituto jurídico que determina o agravamento da sanção penal aplicada a um novo crime após condenação transitada em julgado por crime anterior. Contudo, o artigo 64 do mesmo diploma legal limita a aplicação da reincidência ao prazo de 5 anos “contados do cumprimento ou da extinção da pena do crime anterior”.

 

O cadastro estadual, ao expor continuamente os dados de condenados, cria uma “reincidência” social, para além da jurídica, prejudicando a própria finalidade da reabilitação e da compreensão penal da reincidência.

Por fim, e talvez o ponto mais crítico, a lei de São Paulo viola frontalmente as normas de competência para legislar sobre matéria penal. A Constituição atribui à União a competência privativa para legislar sobre direito penal, conforme previsto no artigo 22, inciso I.

 

A criação e manutenção de um cadastro de condenados por estupro, com atribuição à Secretaria de Segurança Pública do Estado, a quem caberá definir regras de acesso e divulgação (artigo 3º da Lei nº 18.157/2025), escancara a usurpação de competência legislativa da União.

 

Isto porque a criação e manutenção do cadastro figura como efeito da condenação criminal transitada em julgado, sendo, portanto, de natureza eminentemente penal, sendo certo que o estado de São Paulo não possui competência para legislar sobre o tema, invadindo uma prerrogativa exclusiva da União.

 

Políticas públicas que visem a combater os índices alarmantes de práticas de crimes contra a dignidade sexual são sempre louváveis. Entretanto, a lei paulista se mostra uma medida inconstitucional, ilegal e, mais grave, ineficaz.

 

 

FONTE CONJUR


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