Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

A paternidade socioafetiva e a retificação de registro civil após exame de DNA negativo

terça-feira, 15 de julho de 2025, 17h10

Inicialmente, cumpre salientar que a paternidade socioafetiva constitui uma forma de estabelecimento da filiação que se fundamenta na convivência familiar, na afeição e no reconhecimento mútuo entre pai e filho, independentemente da existência de vínculo biológico. 

 

Essa forma de filiação decorre da função social da parentalidade e está diretamente relacionada aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), do melhor interesse da criança (art. 227, CF/88) e da afetividade como elemento fundante das relações familiares. 

 

Art. 1º  A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: 

 

III - a dignidade da pessoa humana; 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 

 

Dessa forma, a doutrina moderna do Direito das Famílias reconhece a parentalidade como fenômeno plural, que abrange a filiação biológica, civil (por adoção) e também a socioafetiva.A afetividade, antes considerada um mero valor moral, passou a ser juridicamente relevante, assumindo status de princípio jurídico implícito, especialmente a partir do advento da Constituição Federal de 1988 e da evolução jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. 

 

A parentalidade socioafetiva representa, portanto, o reconhecimento do pai ou da mãe de criação, aquele que assume, voluntária e publicamente, o papel de genitor, estabelecendo com o filho laços afetivos contínuos e duradouros. 

 

O caso julgado: exame de DNA e pedido de retificação de registro Civil 

 

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 1.873.495, analisou uma situação delicada e cada vez mais comum no Direito de Família: um homem, que havia reconhecido voluntariamente uma criança como seu filho e constava como pai no registro de nascimento, anos depois realizou um exame de DNA que comprovou a inexistência de vínculo biológico entre eles. 

 

Com base nesse resultado, ele pediu à Justiça para cancelar sua paternidade e retirar seu nome do registro civil. 

 

Logo, a relatora, Ministra Nancy Andrighi, ressaltou que a verdade biológica, embora relevante, não é absoluta, e que a filiação registral só pode ser desconstituída judicialmente quando ausente o vínculo socioafetivo. 

 

Segundo a Ministra, a mera ausência de consanguinidade não basta para invalidar o ato jurídico do reconhecimento voluntário da paternidade, conforme dispõe o artigo 1.604 do Código Civil

 

Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro. 

 

É necessário demonstrar vício de consentimento ou ausência de relação afetiva efetiva.

 

 

A Corte concluiu, portanto, que, se existente uma convivência familiar pública, contínua e duradoura, e se formada a relação paterno-filial ao longo do tempo, a paternidade socioafetiva deve prevalecer, impedindo-se a exclusão do nome do pai registral do assento de nascimento. 

 

A Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, é clara ao determinar que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos, sendo vedadas quaisquer designações discriminatórias. Tal norma assegura a isonomia entre os filhos, reforçando que o afeto, e não apenas o sangue, pode ser elemento legitimador da relação de filiação. 

 

 

 

Além disso, o artigo 1.593 do Código Civil estabelece que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Essa “outra origem” vem sendo interpretada pelo STJ como fundamento para a filiação socioafetiva. 

 

Já o artigo 1.604, também do Código Civil, prevê que o reconhecimento de filhos é irrevogável, exceto se viciado (erro, dolo, coação etc.), o que exige análise de caso concreto. 

 

A jurisprudência tem ainda reforçado o entendimento de que o reconhecimento voluntário de paternidade, mesmo que desacompanhado de vínculo genético, gera efeitos jurídicos plenos, sobretudo se estiver aliado a uma convivência familiar real e afetiva. Assim, a possibilidade de retificação do registro civil deve ser excepcional, e não automática. 

 

A decisão do STJ se ancora, especialmente, em três pilares constitucionais: 

 

● Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art.1º, III, CF): fundamento essencial para a proteção das relações afetivas genuínas, confere proteção à personalidade e identidade da criança ou adolescente.

 

● Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente (art. 227, CFart. 4º e 5º, ECA): exige que a interpretação das normas e decisões judiciais priorize a proteção integral da infância, garantindo-lhe um ambiente estável, afetuoso e seguro. 

 

● Princípio da Segurança Jurídica: impede que relações familiares sejam desconstituídas arbitrariamente, exigindo estabilidade nas relações parentais, sobretudo quando fundadas na convivência afetiva e no reconhecimento público da paternidade. 

 

A decisão do STJ no caso em comento, REsp 1.873.495, representa um avanço na consolidação da paternidade socioafetiva no Direito de Família brasileiro. 

 

Ao condicionar a retificação do registro civil à inexistência de vínculo afetivo, a Corte reafirma que a filiação não pode ser tratada como um contrato com cláusula de revogação unilateral, mas sim como uma relação humana, afetiva e jurídica revestida de proteção constitucional. 

 

O Direito, assim, afasta-se da rigidez biológica e aproxima-se da realidade social das famílias contemporâneas. 

 

Em consonância com os princípios constitucionais e com a doutrina da proteção integral da criança, o Judiciário reafirma seu compromisso com uma leitura humanista e protetiva da parentalidade, onde o afeto, a convivência e a responsabilidade pesam mais que o DNA.

 

MARCOS ROBERTO HASSE – OAB/SC 10.623. Advogado com mais de 30 anos de atuação e sócio da Hasse Advocacia e Consultoria, onde exerce papel essencial na liderança e estratégia jurídica do escritório, atuando ativamente em todas as áreas e assegurando soluções eficazes, seguras e personalizadas para os clientes.

 

 

Sua trajetória no Direito começou na Faculdade de Direito de Curitiba – PR, concluindo sua graduação na FURB – Universidade Regional de Blumenau – SC (1995).

 

É especialista em Direito Tributário e Processual Tributário pela UNIVILLE – Universidade da Região de Joinville/SC e em Direito Tributário pela UniBrasil – Centro Universitário Autônomo do Brasil, em Curitiba/PR. Também compartilhou seu conhecimento como professor de Direito na UNERJ – atual Centro Universitário Católica de Santa Catarina.

 

Ao longo de sua carreira, consolidou uma atuação jurídica multidisciplinar, com sólida experiência nas áreas de Direito Bancário, Empresarial, Civil, Tributário, Previdenciário, Trabalhista, Ambiental, entre outras. Seu trabalho se destaca pelo compromisso ético, visão estratégica e dedicação à excelência no atendimento e na defesa dos interesses dos clientes.

 

 

FONTE: JORNALJUD


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