CONJUR: Apenas crianças e adolescentes podem ser ouvidos em depoimento especial?
segunda-feira, 28 de julho de 2025, 15h06
O depoimento especial (DE), instituído pela Lei nº 13.431/2017, representa um marco civilizatório no sistema de justiça brasileiro. Trata-se de um procedimento de oitiva humanizado e tecnicamente orientado, desenhado para a escuta de crianças e adolescentes que foram vítimas ou testemunhas de violência.
Sua gênese está no reconhecimento de que o modelo tradicional de inquirição, com sua formalidade, ambiente intimidatório e perguntas diretas e comumente sugestivas, frequentemente impunha um novo sofrimento a quem já havia sofrido uma violação, fenômeno conhecido como revitimização.
As finalidades do depoimento especial são duplas e indissociáveis: de um lado, proteger a integridade psíquica e emocional do depoente e, de outro, viabilizar a produção de uma prova oral de maior qualidade, com mais credibilidade, confiabilidade e acurácia, ao criar condições para que o relato flua de maneira mais espontânea e fidedigna.
Regra: âmbito de incidência obrigatória da Lei nº 13.431/2017
A legislação de regência é categórica ao definir o público-alvo prioritário do procedimento do DE. A regra geral é sua aplicação obrigatória para a oitiva de crianças (pessoas com até doze anos de idade incompletos) e adolescentes (aquelas entre doze e dezoito anos de idade incompletos), conforme as balizas etárias previstas no ECA. A razão dessa obrigatoriedade não é um mero capricho legislativo, mas uma imposição decorrente da condição peculiar de desenvolvimento em que esses sujeitos se encontram.
Como já tive a oportunidade de detalhar em artigo anterior nesta ConJur, a oitiva de uma criança ou adolescente demanda necessárias adaptações. Eles não são “miniadultos”. Sua percepção do tempo, sua capacidade de verbalizar emoções complexas, sua memória e sua suscetibilidade a sugestões são fundamentalmente diferentes. Submetê-los ao rigor formalista de uma audiência tradicional é expô-los a um ambiente hostil que pode gerar bloqueios, imprecisões e, pior, aprofundar o trauma. O DE, ao contrário, respeita essas particularidades, utilizando técnicas de entrevista que favorecem a narrativa livre e reduzem o impacto de perguntas indutoras ou sugestivas, o que, ao fim e ao cabo, resulta em uma prova mais robusta e confiável.
A aplicação da Lei nº 13.431/2017 não é mera opção discricionária do juiz nesses casos. Não cabe ao juiz decidir se aplicará ou não essa lei aos casos em que vítimas ou testemunhas são crianças ou adolescentes. A incidência da lei é cogente. Aliás, não por outra razão, a Resolução 299/2019 do CNJ obriga os Tribunais brasileiros a instalarem salas de depoimento especial em todas as comarcas (artigo 7º). A recusa injustificada em aplicar o procedimento macula o ato de nulidade absoluta e expõe o agente público à responsabilização por violência institucional, conduta hoje tipificada como crime de abuso de autoridade (artigo 15-A da Lei nº 13.869/2019, incluído pela Lei nº 14.321/2022).
Exceção: aplicação facultativa da Lei nº 13.431/2017
A própria lei, contudo, demonstra sensibilidade ao fato de que a vulnerabilidade não se dissipa magicamente no aniversário de 18 anos. O parágrafo único do seu artigo 3º abre uma porta para a extensão do procedimento, ao dispor expressamente:
“A aplicação desta Lei é facultativa para as vítimas e testemunhas de violência entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos, conforme disposto no parágrafo único do art. 2º da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).”
Nessa hipótese (por exemplo: uma moça de 20 anos vítima de violência sexual), a aplicação da lei deixa de ser um dever para se tornar uma faculdade judicial. A decisão pela sua realização dependerá da análise do caso concreto.
O juiz deverá sopesar as particularidades da vítima ou testemunha, como seu estado de saúde mental e psicoemocional, a existência de relatos de traumas severos nos autos, sua condição geral de saúde e de vulnerabilidade, bem como as características da própria violência sofrida (a gravidade e a natureza do ato).
Trata-se de um juízo de ponderação, que reconhece que a transição para a vida adulta é um processo dinâmico e gradual, e não um evento instantâneo, e que a proteção do Estado deve acompanhar essa realidade.
E se a vítima ou testemunha tiver idade superior a 21 anos?
Aqui adentramos o território mais desafiador e, a meu ver, mais relevante para o avanço da proteção às vítimas no Brasil. Se nos apegarmos à estrita literalidade da lei, a resposta é negativa: a Lei nº 13.431/2017 não se aplicaria, nem obrigatória nem facultativamente, a pessoas com mais de 21 anos. A oitiva, portanto, seguiria o procedimento de inquirição tradicional previsto no Código de Processo Penal.
Ocorre que, nada obstante a ausência de previsão legal expressa, entendo que uma interpretação meramente literal se mostra insuficiente e, por vezes, injusta. O magistrado, como gestor do processo e principal garantidor dos direitos fundamentais dos envolvidos, tem o poder-dever de zelar pela dignidade e integridade física e psicológica da vítima.
Isso pode implicar, em situações excepcionais e devidamente justificadas, a aplicação analógica e extensiva do rito adaptado e protetivo da Lei nº 13.431/2017 a pessoas adultas com mais de 21 anos de idade. Nesse exato sentido, em texto publicado nesta ConJur, o juiz Rodrigo Foureaux argumentou pela necessidade de alteração legislativa para estender o depoimento especial às vítimas adultas de violência sexual.
De fato, há situações em que a experiência da audiência pode ser devastadora para qualquer pessoa, independentemente da idade. Duas situações (que podem coexistir no caso concreto) são particularmente eloquentes: vítimas de crimes sexuais e mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.
O caso da jovem Mariana Ferrer, que chocou o país e acabou por impulsionar a aprovação da Lei nº 14.245/2021, é um exemplo paradigmático. Ela foi ouvida pelo rito tradicional justamente porque a alegada violência teria ocorrido em dezembro de 2018, quando a jovem tinha 21 anos, sendo que a audiência judicial foi realizada em 2020, quando já tinha 23 anos, portanto, acima do limite etário previsto na lei. O que aconteceu na audiência foi amplamente repercutido na imprensa nacional.
A Lei nº 13.431/2017, em sua redação literal, atrela o DE à condição de criança ou adolescente, e não à natureza da violência. Logo, uma vítima do crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A do CP) só será ouvida por depoimento especial se for criança ou adolescente. Se for uma pessoa maior de 14 anos tornada vulnerável por enfermidade ou deficiência mental ou porque não tinha o necessário discernimento para a prática do ato ou não pode oferecer resistência (artigo 217-A, §1º), por exemplo, por ter sido entorpecida com “boa noite, Cinderela”, a lei, a rigor, não a alcança.
No campo da violência doméstica e familiar, convém salientar que a Lei Maria da Penha contém um dispositivo muito relevante e por vezes desconhecido ou ignorado. Trata-se do artigo 10-A, incluído pela Lei nº 13.505/2017, norma editada logo após a Lei nº 13.431/2017. O artigo determina que a inquirição da mulher vítima ou testemunha deve primar pela “não revitimização da depoente” (§1º, inciso III). Para tanto, seu §2º detalha como essa oitiva deve ocorrer:
I – a inquirição será feita em recinto especialmente projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida;
II – quando for o caso, a inquirição será intermediada por profissional especializado em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial;
III – o depoimento será registrado em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrar o inquérito.
Como se vê, o procedimento é muito próximo àquele disposto na Lei nº 13.431/2017. E a semelhança não é mera coincidência: “em novembro do mesmo ano, a Lei 15.305/2017, de certo modo, estendeu às mulheres, vítimas e testemunhas de violência, regras que se aproximam nitidamente desses modelos (escuta especializada e depoimento especial)” (Nicolitt; Burd, 2019, p. 262).
A escolha legislativa por uma escuta diferenciada e protegida nos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres “se baseia no reconhecimento de como a natureza constitutiva de comportamentos considerados por uma dada sociedade como machistas se traduz na vitimização desproporcional de mulheres. Considerando, pois, o marcador gênero como uma variável de extrema relevância para a construção de soluções de prevenção, intervenção e cuidado” (Scarpati et al., 2023, p. 1.285).
Entretanto, e isto posso dizer à luz do que vejo na prática profissional, não é comum a aplicação desse procedimento protetivo para a oitiva de mulheres adultas. Isso se deve, principalmente, à presença do advérbio “preferencialmente” no §2º, que enfraquece o comando normativo do artigo 10-A, tornando sua aplicação facultativa e bastante rara.
De toda forma, o art. 10-A abre ao magistrado a porta para, analisando o caso, determinar a aplicação de um procedimento protetivo. Corroborando essa linha de pensamento, o Fonavid editou o Enunciado nº 57:
De acordo com a gravidade das diversas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher e/ou da vulnerabilidade da vítima, poderá ser utilizada a modalidade de depoimento especial, por aplicação analógica da Lei n° 13.431/2017, com base no Art. 10-A da Lei Maria da Penha, nos arts. 3°, “f”, 4° e 7°, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) e Recomendação (Cedaw), a fim de assegurar forma humanizada de coleta de depoimentos e preservação da dignidade da pessoa humana, evitando retraumatizações.
O Enunciado é bastante revelador e se alinha com o nosso entendimento: a nosso ver, não é obrigatória a aplicação de um procedimento de oitiva adaptado à semelhança do DE em todo e qualquer caso de violência doméstico-familiar contra a mulher, sob pena de assoberbar a pauta de audiências e inviabilizar as varas e juizados de violência doméstica.
Afinal, não se pode olvidar que o DE é um procedimento mais moroso, que exige um planejamento rigoroso (basta ver, por exemplo, que ao depoente é garantida a livre narrativa dos fatos, sem interrupção, com respeito ao seu tempo, além disso não é possível a designação de muitas audiências de DE com curto intervalo entre uma e outra).
A solução, como indica a parte inicial do Enunciado, é a análise da gravidade concreta (e não meramente abstrata) da violência, associada à vulnerabilidade da vítima. Assim, para casos ordinários de ameaças, vias de fato e lesões corporais leves, quiçá não seja necessário (porém, a análise deve ser casuística: como juiz, lembro-me de um caso que julguei crime de ameaça na qual a vítima adulta estava demasiadamente abalada e traumatizada com a situação). Para casos mais graves como violência psicológica, stalking e estupro, pode ser. Caberá à autoridade judiciária decidir, à vista das características de cada caso concreto e diante das condições pessoais de cada vítima, pela pertinência (ou não) do depoimento especial.
A necessidade de ampliação do DE para além dos casos que envolvem crianças e adolescentes já ecoou no Congresso Nacional. Ao menos três projetos de lei foram apresentados no Parlamento com esse escopo: o PL 5.219/2020 (depoimento especial da mulher vítima ou testemunha de violência), o PL 5535/2020 (inquirição de vítima de crimes contra a dignidade sexual) e o PL 159/2021 (depoimento especial para vítima de violência sexual). Contudo, até o momento nenhum projeto se tornou lei.
Nessa medida, embora muitas decisões judiciais já estendam a aplicação do procedimento do DE para outros casos (recentemente, um amigo magistrado aplicou a escuta protegida para ouvir vítimas adultas com deficiência), tais decisões são tomadas de lege ferenda, porquanto, segundo a literalidade da Lei nº 13.431/2017, o depoimento especial só se destina à oitiva de crianças e adolescentes (e, facultativamente, adultos até os 21 anos).
Vítima que se tornou adulta
Um colega magistrado me trouxe uma situação concreta que ilustra a complexidade do tema: uma vítima foi ouvida, quando criança, sob o rito do DE. Contudo, anos depois, o processo foi anulado pelo Tribunal de Justiça, que determinou a colheita de novo depoimento. Ocorre que, agora, a depoente já possui mais de 21 anos. A questão que se coloca é: qual procedimento adotar para a nova oitiva, o depoimento especial ou o tradicional?
Minha reflexão se desenvolve em três passos:
- o critério legal é a idade do depoente ao tempo do ato (e não ao tempo da realização da audiência). Se a lei se destina à oitiva de crianças e adolescentes, e a pessoa a ser ouvida agora é uma adulta com mais de 21 anos, a interpretação literal levaria à conclusão de que o novo depoimento deveria seguir o rito comum do Código de Processo Penal.
- entretanto, como defendi ao longo deste artigo, o juiz pode ir além da literalidade. No caso concreto, considerando que a vítima não apenas vivenciou o trauma original quando criança, mas também já passou pela experiência de um DE, submetê-la, agora, a um procedimento tradicional, mais hostil e direto, sobre os mesmos fatos, pode redundar em sua revitimização. Assim, sempre analisando as circunstâncias do caso concreto, o magistrado pode decidir, fundamentadamente, com a finalidade de zelar pela dignidade da vítima, pela realização de um novo DE.
- caso o magistrado opte pela realização de um novo DE, deve atentar para um requisito crucial. A repetição do ato, ainda que determinada pela instância superior, submete-se ao que dispõe o art. 11, §2º, da Lei nº 13.431/2017. A norma exige dois requisitos cumulativos: a justificação da imprescindibilidade (atendida pela decisão do Tribunal) e a concordância da vítima ou testemunha. Portanto, a depoente, agora adulta, deve consentir expressamente em ser ouvida novamente nesse formato.
Conclusão
A resposta à pergunta que titula este artigo revela uma incômoda tensão entre a letra fria da lei e o espírito da justiça. Formalmente (de lege lata), a Lei nº 13.431/2017 restringe o depoimento especial a crianças e adolescentes, com uma exceção facultativa para jovens de 18 a 21 anos. Contudo, a lógica protetiva que anima a lei clama por uma aplicação mais ampla que alcance outras pessoas em condição de especial vulnerabilidade, como as vítimas de violência sexual e doméstica.
____________________________________
FONTE: CONJUR