Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

CONJUR:O direito da criança vítima de constituir um advogado ou defensor

terça-feira, 30 de setembro de 2025, 17h26

Certa vez, no início de minha carreira na magistratura, ouvia uma testemunha em uma audiência previdenciária que tremia descontroladamente. Era um senhor com os seus cinquenta e poucos anos e estava muito nervoso. Ao final do ato, ele me perguntou bastante preocupado: “acabou? Eu não serei preso?”

 

Respondi-lhe que não, que ele era apenas uma testemunha em um processo cível. Ele me disse, então, que quando foi intimado a comparecer no fórum ficou com medo porque não sabia exatamente o que poderia lhe acontecer.

 

Esse episódio me faz pensar no depoente criança ou adolescente: com ainda mais razão, diante da sua pouca experiência, o depoente infantojuvenil, ao ser convidado para ir ao fórum, pode se sentir assustado, ansioso e repleto de dúvidas: afinal, o que esperam de mim nesse lugar?

 

Esses sentimentos tendem a se agudizar ainda mais quando se trata de uma criança ou adolescente que foi vítima de uma violência e, portanto, chega àquele lugar (digo: ao fórum, à sala de audiência) ferido, vitimizado.

 

O depoimento especial (DE) previsto na Lei nº 13.431/2017 é um procedimento adaptado que visa justamente tornar a experiência da criança e do adolescente que entra em contato com o sistema de justiça mais acolhedora, menos traumática e não-revitimizante. Porém, a adaptação do rito processual, por si só, é insuficiente.

 

Não basta tornar a oitiva em si mais empática e humanizada. A criança tem dúvidas e tem direitos. Há fatos importantes que se sucedem antes da audiência e poderão ser necessários atendimentos após o ato. Em outras palavras: o direito à participação não se esgota apenas na audiência do depoimento especial, mas repercute antes e depois desse ato processual.

 

Durante todo esse percurso, isto é, antes, durante e depois da audiência judicial, a criança ou o adolescente que depõe em juízo tem o direito de receber informação e aconselhamento jurídico, bem como de ter as suas pretensões representadas perante o Poder Judiciário. Para defender especificamente os direitos da criança vítima e possibilitar o seu exercício, inclusive zelando pelo respeito de sua dignidade, é que entra em cena um importante personagem: o advogado (ou defensor) da criança (no inglês: child’s lawyer).

 

A transição paradigmática que elevou crianças da condição de meros objetos de tutela para a de sujeitos de direitos foi, sem dúvida, um dos maiores avanços civilizatórios dos últimos anos. Um dos pilares desta nova arquitetura jurídica é o direito à participação, consagrado no artigo 12 da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, que garante a toda criança a oportunidade de ser ouvida em processos judiciais que lhe afetem.

 

O depoimento especial, instituído pela Lei nº 13.431/2017, é uma sofisticada ferramenta processual que materializa esse direito. Contudo, para que a participação seja efetiva e não meramente simbólica e figurativa, a voz da criança precisa ser qualificada por uma representação técnica, autônoma, comprometida e capacitada: um defensor que atue como o seu advogado.

 

Este artigo se debruça sobre o direito fundamental da criança vítima de ter os seus próprios interesses defendidos por um profissional jurídico habilitado e capacitado, que lute exclusivamente pela defesa de seus direitos. A assistência jurídica à criança vítima ou testemunha de violência não é uma faculdade discricionária, mas um mandamento legal indeclinável.

 

Defendemos que essa função, por sua natureza protetiva e sua base na vulnerabilidade, cabe primordialmente à Defensoria Pública, de forma universal e incondicionada. Analisaremos, por fim e mais uma vez, o paradoxal cenário do estado de São Paulo, onde, apesar da existência de uma proposta institucional avançada e corajosa vinda de seu próprio núcleo especializado, entraves burocráticos ainda impedem a plena efetivação desse direito, em um descompasso que reclama por correção.

 

Representação jurídica como condição para uma efetiva participação

 

O direito de ser ouvido em procedimento adaptado, o depoimento especial, é a materialização processual do direito à participação. Contudo, a participação não se esgota no ato de falar. Para ser genuína, ela pressupõe a integral compreensão e a real capacidade de influência. Uma criança, por mais articulada que seja, não possui o conhecimento técnico para navegar a complexidade de um processo judicial, compreender o alcance de seus direitos ou as implicações de cada ato.

 

Nem mesmo os adultos leigos (aqueles sem formação superior em Direito) possuem tais competências (vide o exemplo citado no início da testemunha na audiência previdenciária). É aqui que a figura do advogado da criança (child’s lawyer) se torna indispensável. Ele atua como um “tradutor” técnico e um guardião dos direitos processuais, garantindo que a voz da criança não apenas ecoe, mas ressoe de forma eficaz perante o juízo no qual tramita um processo judicial de seu interesse e cuja decisão pode lhe afetar.

 

A Lei nº 13.431/2017 é inequívoca ao prever, em seu artigo 5º, incisos V e VII, o direito de a criança “receber informação adequada (…) sobre (…) representação jurídica” e de “receber assistência qualificada jurídica e psicossocial especializada”. Ou seja: a lei prevê, expressamente, o direito da criança a ter um profissional que a represente e lhe dê assistência na acepção jurídica. Esse profissional é o advogado.

 

Resolução nº 299/2019 do Conselho Nacional de Justiça, em seu artigo 18, §1º, reforça que “o magistrado deverá velar pela assistência jurídica por defensor público ou advogado conveniado ou nomeado, se assim desejar a criança e/ou adolescente”. Este robusto plexo normativo estabelece um direito subjetivo da criança, e não uma liberalidade do sistema.

 

Como tive a oportunidade de sustentar em artigo científico, essa assistência jurídica é autônoma e específica, pertencendo à criança independentemente da representação de seus pais ou responsáveis adultos, o que é essencial em casos de violência intrafamiliar, onde o conflito de interesses entre pais e filhos pode ser patente. Vale dizer: trata-se de um advogado da criança (dela e só dela) e não de um advogado dos pais que também atuará, cumulativamente, a favor do filho menor.

 

O papel deste advogado é distinto daquele exercido pelo promotor de justiça, membro do Ministério Público, que representa o interesse da sociedade; do defensor do réu, que representa o acusado; e até mesmo dos advogados dos pais. Sua lealdade é exclusiva para com seu cliente: a criança. Sua função não é a de um tutor que age segundo o que entende ser o “melhor interesse”, mas a de representar a vontade singular manifestada pela criança, após orientá-la em linguagem acessível sobre as opções e consequências. Ele deve se fiar preponderantemente pelo “interesse manifesto” da criança.

 

Nesse mister, no bojo do procedimento do depoimento especial, ele fiscaliza a legalidade dos atos (p.ex. verificando se o entrevistador forense utiliza as diretrizes técnicas do PBEF e denunciando quando faz questionamentos sugestivos), zela pelo respeito absoluto ao direito ao silêncio, formula perguntas pertinentes (ele participa do ato, estando presente na sala de audiências, ao lado do juiz, do promotor e do advogado do réu e pode, no tempo oportuno, fazer perguntas ao seu cliente, por intermédio do entrevistador forense) e, fundamentalmente, assegura que a opinião de seu cliente seja devidamente considerada pelo juízo, transformando a participação de um ato formal figurativo em um exercício real de cidadania e participação.

 

‘Paradoxo paulista’: entraves burocráticos que dificultam cumprir a lei

 

O juiz não decide se cabe ou não a representação jurídica da criança vítima. Este é um direito dela: da criança. Um direito que está previsto em lei, repito: no artigo 5º, incisos V e VII, da Lei nº 13.431/2017. E secundado em atos infralegais, inclusive resolução do CNJ. Ocorre que, apesar da clareza da legislação, a efetivação do direito à assistência jurídica autônoma da criança vítima em São Paulo tem sido uma jornada marcada por avanços e recuos que configuram um verdadeiro paradoxo.

 

Na prática, a função de advogado da criança deve ser exercida pela Defensoria Pública. Os incisos XI e XVIII do artigo 4º da Lei Complementar nº 80/1994 prescrevem que é atribuição da Defensoria Pública “exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente” e atuar na preservação e reparação dos direitos de vítimas, incluindo o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas vulneráveis. No mesmo sentido dispõe o artigo 5º, inciso VI, letra “c”, da Lei Complementar nº 988/2006 quanto à Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

 

Portanto, nas localidades em que há defensoria já instalada caberá ao defensor público o exercício da defesa das crianças e adolescentes vítimas. Nas comarcas nas quais não há defensoria instalada, por sua vez, a função deve ser exercida por advogados dativos, nomeados nos termos de convênio celebrado pela defensoria com a respectiva OAB, ou por núcleos de prática jurídica de universidades conveniadas com a defensoria. Contudo, em qualquer situação, seja ou não diretamente por Defensor Público, é inegociável que haja um profissional jurídico especializado atuando em favor da criança vítima.

 

LEIA NA INTEGRA EM CONJUR


topo