CONJUR: Obrigatoriedade de fornecimento de fármacos a pacientes do SUS
segunda-feira, 03 de novembro de 2025, 16h27
O Sistema Único de Saúde, instituído pelo legislador constituinte de 1988, é ferramenta primordial para a consecução do princípio da dignidade da pessoa humana. Não há como pensar em existência digna sem saúde, e não há como pensar em saúde sem a existência de uma rede de apoio para obtê-la ou restaurá-la quando diversos fatores (genéticos, biológicos, ambientais, sociais etc.) a comprometem.
A questão é que o Estado, aqui compreendido como a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, possui o dever de garantir atendimento universal, integral e com equidade à população (artigo 196/CF 1988), o que exige orçamento equilibrado. O financiamento do SUS ocorre por meio da arrecadação de impostos e tributos, dentre esses, cita aqui, as contribuições sociais recolhidas pelo empregador e pela empresa (artigo 195, inciso I, da CF/1988).
A efetivação de políticas públicas voltadas ao SUS é muito debatida no âmbito do Poder Judiciário pelas inúmeras ações com pedido dos mais diversos tipos de medicamentos, cirurgias, dentre outros atendimentos. O fenômeno é conhecido como “judicialização da saúde”, que, até o julgamento do Tema 1.234 [1] do STF, a leitura que se fazia do artigo 196, era que a responsabilidade solidária para a prestação dos atendimentos facultava ao paciente escolher o ente federado em face do qual litigaria.
A regra mudou. Agora existem requisitos a serem observados de acordo com o tipo e o valor do tratamento de saúde. Mas essa era uma questão muito debatida pelos entes federados nas defesas feitas nas ações judiciais. Sempre era arguida as competências pactuadas na esfera administrativa para o atendimento da população na área da saúde, sendo renegada pelo Poder Judiciário por força do princípio da solidariedade.
Impossibilidade de adquirir medicamento
Mas o ponto inovador é a impossibilidade de o medicamento ser adquirido em valor superior ao teto do PMVG” (Preço Máximo de Venda ao Governo). Nas palavras do relator do acórdão, Ministro Gilmar Mendes [2], “(…) Sob nenhuma hipótese, poderá haver pagamento judicial às pessoas físicas/jurídicas acima descritas em valor superior ao teto do PMVG, devendo ser operacionalizado pela serventia judicial junto ao fabricante ou distribuidor.”
Não há como negar que a implementação de regras mais rígidas para a obtenção de medicamento por meio de ordem judicial tem o intuito de equilibrar o direito fundamental à saúde com a sustentabilidade financeira do SUS. Por inúmeras vezes, os entes federados foram obrigados a arcar com valores de medicamentos com preço superinflacionado, causando imprevisibilidade e desestrutura orçamentária aos cofres públicos.
Banda outra, a nova sistemática gera impactos econômicos para a indústria farmacêutica. Tanto que o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores (Gaets) opôs embargos de declaração do acórdão argumentando, dentre outras questões operacionais, que as vendas de acordo com o PMGV geralmente são realizadas por “laboratórios e distribuidores atacadistas, que operam com margens de lucro menores, focando em compras em grande escala, onde os custos totais por unidade podem ser diluídos”. [3]
A embargante defendeu ainda que, ao estender indevidamente a aplicação do Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG) a todos os agentes da cadeia de fornecimento — inclusive ao comércio varejista —, o Poder Judiciário estaria instaurando uma hipótese excepcional não prevista no ordenamento jurídico vigente, o que poderia comprometer a viabilidade econômica de farmácias e distribuidores de pequeno e médio porte, os quais já atuam com margens de rentabilidade reduzidas.
Dignidade da pessoa humana
Para quem não opera na área jurídica, é indispensável esclarecer que um dos fundamentos da República é a dignidade da pessoa humana, bem como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, incisos III e IV, da CF/1988).
Dada essas premissas normativas, a reflexão que se propõe é a (i)legitimidade em determinar que as farmácias e distribuidores consideradas microempresas e de pequeno porte, principalmente nas regiões com baixo índice populacional, tenham que fornecer medicamento ao SUS pelo PMVG, por meio de ordem judicial, sob pena de multa ou busca e apreensão do produto.
Se o SUS deve ser financiado por toda a sociedade, é preciso que se criem parâmetros de equidade para tanto, na busca de evitar distorções econômicas a inviabilizar a liberdade de iniciativa e a competitividade empresarial. É arriscado tecer interpretações que deem margem para desconfiar do papel do Estado na organização da livre concorrência. Aliás, nas palavras do professor Calixto [4], “ausente o Estado para dirimente prover o interesse público, o direito, com sua supremacia valorativa, é chamado a imprimir tais valores à vida dos particulares”.
Critérios para disponibilização de medicamentos ao SUS
A ideia é deixar que o Estado, com sua função de “engenheiro socioeconômico” [5], estabeleça os critérios e requisitos para que as empresas do ramo farmacêutico disponibilizem medicamentos ao SUS de acordo com a capacidade operacional. Sabe-se que o Estado falhou por muitos anos nesse aspecto, pois medidas de contenção para evitar o crescente número de ações judiciais na área da saúde deveriam ter sido implantadas e concomitantemente uma política de incentivo, com noções de equidade, para as empresas farmacêuticas reduzirem o custo de medicamentos para o SUS, sem perder a competividade.
Esse tipo de omissão, faz com que o Poder Judiciário exalte “a força e até o dever transformador do direito” [6] voltado à efetivação de políticas públicas, na área da saúde, destinadas à consecução do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a fim de evitar grave retrocesso social.
O que se depreende do Tema 1.234 (RE 1.366.243): há uma linha tênue entre o dever de garantir o bom funcionamento do SUS e o livre exercício da atividade econômica. Compete ao Estado ditar as bases para equilibrar os interesses que permeiam a sútil separação dos direitos constitucionais referidos, sem perder de vista que o direito à saúde, bem como os demais direitos fundamentais, depende de uma ordem econômica menos volátil para se autofinanciar.
FONTE: CONJUR