Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL

ARTIGO - Há lugar para o federalismo cooperativo na crise de epidemia da Covid-19?

segunda-feira, 04 de maio de 2020, 14h49

 

4 de maio de 2020, 8h13

 

Por Marco Túlio Reis Magalhães

 

A pandemia da Covid-19 tem se revelado um enorme desafio para a humanidade e os países do mundo. A sua rápida propagação, gravidade e letalidade atingem em cheio aquilo que é mais valioso para todos: a vida e a saúde das pessoas. Ao mesmo tempo, as medidas de seu enfrentamento impactam fortemente nosso modo de viver, abalam nossos sistemas socioeconômicos e estimulam a reflexão sobre nossas convicções de vida e sobre tudo à nossa volta.
 

Em um olhar geral, não faltam perplexidades e paradoxos nesse processo. De um lado, há excesso de informações (precisas e imprecisas) que nos desorienta e afeta até mesmo nossa saúde psicológica. De outro lado, há insuficiência de dados e estudos conclusivos sobre o vírus, a sua origem, as suas consequências, as suas formas de transmissão e combate. O excesso e a insuficiência de informações são simultaneamente catalisados em alta velocidade pela interconectividade mundial, especialmente pelos meios de comunicação, pela internet e pelas redes sociais. Como acentua Boaventura de Sousa Santos em recente ensaio sobre a crise da pandemia e a reflexão sobre uma pedagogia do vírus, “o tempo político e mediático condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre”.1
 

Além disso, diariamente, ao ouvirmos e lermos notícias sobre a pandemia, ficamos alternando a todo momento o nosso raciocínio entre microanálises (o vírus e a sua força bruta, invisível e microscópica) e macroanálises (os impactos econômico-sociais graves no Brasil e no mundo) que muitas vezes sugerem falsos antagonismos entre vida e economia —– o que potencializa incertezas e encurta uma visão de horizonte futuro e próspero. Soma-se a isso o impacto de histórias e imagens fortes que absorvermos e que refletem sofrimento, angústia e pesar. Ainda que racionalmente esperado e imaginado, o novo cenário é sensivelmente impactante para todos nós. Percebemos ainda que a pandemia pode não ser necessariamente uma onda única e sim várias ondas com ressacas — o que também dilui a ideia de “pós-pandemia” como um horizonte próximo. Em suma, o cérebro e o espírito ficam atordoados.
 

A própria linguagem que foi se normalizando entre nós evidencia esse estado de perplexidades. Somos sugeridos a adotar expressões variadas — isolamento social, distanciamento social, lockdown — sem muito nos apercebermos e refletirmos sobre a adequação e a força simbólica dessas distintas formas de manifestar nossa compreensão sobre a interação social nesse momento. Isso porque elas nos remetem à ideia de reclusão, de confinamento e de afastamento de todos. De modo diverso, nada impediria qualificar nossas atitudes de cuidado próprio e com o próximo, para fins de enfrentamento da pandemia, por meio da adoção de outros signos linguísticos mais promotores de solidariedade e de coesão social — e.g. medidas de compromisso social, medidas de mobilidade e convivência segura.
 

A par dessas considerações mais gerais, há também desafios e perplexidades no plano jurídico-constitucional, pois a pandemia causa impactos em direitos fundamentais (individuais e coletivos) e em deveres estatais de sua proteção. Não se quer dizer, por óbvio, que o vírus seja responsável pela violação de direitos e normas constitucionais.
 

Ainda que o momento atual nos ajude a questionar a suposta centralidade do ser humano em detrimento dos demais seres da Terra e nos ajude a refletir sobre a própria experiência da relação psíquica e concreta entre homem e natureza, fato é que os atuais exemplos de reconhecimento jurídico da natureza e de seres vivos não humanos como sujeitos de direitos (e.g. Equador, Bolívia, Colômbia, Nova Zelândia) ainda não chegaram ao ponto de impor-lhes restrições, obrigações ou mesmo imputar-lhes a condição de réus em ações judiciais.
 

O que se quer dizer é que enfrentar os efeitos concretos e potenciais da pandemia exige de todos nós — cidadãos, coletividades, Estados, humanidade — respostas e esforços comuns e mediados pela solidariedade e institucionalidade que nos une como comunidade política e humana. Nesse contexto, torna-se evidente que a gestão pública é parte integrante e central da solução de enfrentamento e mitigação da pandemia e de seus efeitos deletérios.
 

No Brasil, tendo em conta a nossa estrutura federativa, a gestão pública da epidemia depende da atuação conjunta de todos os entes federados (União, estados, Distrito Federal e municípios) por imperativo da competência constitucional executiva comum de cuidar da saúde e da assistência pública (art. 23, CF/88), bem como em razão de ser a saúde preceito fundamental, direito de todos e dever do Estado, que se garante por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196, CF/88).
 

Ademais, a Constituição de 1988 adotou um modelo de Sistema Único de Saúde (SUS), considerado doutrinariamente como verdadeira garantia institucional fundamental,2 guiado pelas diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação social, sendo custeado pela Federação e dirigido por diversas atribuições constitucionalmente estabelecidas (arts. 198 a 200, CF/88).
 

A gestão pública da epidemia também pode se socorrer da competência constitucional legislativa concorrente (União, estados e Distrito Federal) sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CF/88) e da legislação municipal suplementar e de interesse local (art. 30, CF/88).
 

Nesse contexto, deve haver atuação comum e coordenada em ações e serviços de saúde não apenas em razão dos referidos dispositivos constitucionais, mas também em função do princípio do federalismo cooperativo que, segundo a doutrina e a jurisprudência, é subjacente à toda a nossa lógica federativa. Como relembra a doutrina, demarcou-se aqui “atribuições materiais ou de execução exercitáveis, em parceria, por todos os integrantes da Federação, convocados para uma ação conjunta e permanente, (...), a demandar uma soma de esforços.”3
 

A despeito de o senso comum imaginar que em situações extraordinárias e de impacto internacional, como ocorre com a pandemia da Covid-19, fosse esperada ampla cooperação federativa, o que se viu no cenário federativo brasileiro foi algo bem diferente. De maneira geral, houve muitas divergências de posicionamento entre o governo federal e os governos estaduais sobre a gravidade da crise, sobre as medidas de enfrentamento a serem adotadas e sobre as medidas de mitigação dos impactos causados.
 

No campo estritamente sanitário, as orientações do Ministério da Saúde se chocavam, por vezes, com posicionamentos do Presidente da República, criando uma imagem imprecisa da posição efetiva do governo federal. Além disso, as divergências evidenciadas entre manifestações do Presidente da República e dos governadores estaduais se intensificaram em relação a medidas executivas e administrativas de enfrentamento da epidemia, em razão do impacto direto no setor econômico e no setor de serviços públicos e privados — o que acendeu a discussão sobre o que seriam atividades essenciais. Outro vetor de desentendimentos decorreu de proposições legislativas federais (via medidas provisórias) que encontraram resistência junto à opinião pública e a governadores estaduais.
 

Não há dúvida de que desentendimentos podem existir e que as referidas divergências têm forte conotação política e podem estar carregadas de oportunismos e excessos por quaisquer dos governos envolvidos — inclusive para fins político-partidários e eleitoreiros. Independentemente disso, para o que aqui interessa, o importante é destacar que essa divergência política pode até existir, mas ela não pode se sobrepor ao mandamento constitucional maior de cooperação executiva comum imposto a todos os entes federados (art. 23, CF/88).
 

Em outras palavras, a eventual desunião política e político-partidária não se sobrepõe à institucionalidade da união federativa que exige o cumprimento do pacto de cooperação comum decorrente da Constituição e dirigido a todos os entes federados.
 

O desentendimento não pode levar a um impensável e inconstitucional “federalismo de isolamento”, em que cada um resolve os problemas à sua maneira, culpando os demais pelos impactos negativos. Muito menos se pode pensar em um “federalismo de sobreposição”, em que se decide pensando ser possível passar por cima ou ao largo dos demais gestores públicos. O que se espera e se exige, como comunidade política que somos, é o federalismo de equilíbrio e de cooperação. Essa é a premissa maior. A maneira de resolver é a maneira da união federativa!
 

Nesse sentido, dois exemplos — surgidos no decorrer da “crise federativa” agregada à crise da epidemia — ajudam a enxergar a importância da premissa acima indicada e a oportunidade que existe, inclusive, para o desenvolvimento de nosso modelo federativo a partir de novas experimentações e aprendizados.
 

Em primeiro lugar, a premissa constitucional de cooperação e união federativa foi reafirmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6341, ocorrido em 15.04.2020, em que o Plenário do STF, por maioria reunida na primeira sessão por videoconferência da sua história (em face da epidemia da Covid-19), referendou a medida cautelar deferida anteriormente pelo Ministro Marco Aurélio, acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo (art. 198, I, CF/88), o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais.4
 

Em síntese, o STF buscou esclarecer e apaziguar parte das divergências aqui já mencionadas, confirmando o entendimento de que as medidas adotadas pela União sobre serviços públicos e atividades essenciais não afastam nem inibem tanto a competência concorrente legislativa dos estados e Distrito Federal, quanto as medidas executivas (normativas e administrativas) dos estados, Distrito Federal e municípios.
 

Em segundo lugar, é interessante pensar nas respostas que o Poder Legislativo pode dar para fortalecer a premissa constitucional de cooperação e união federativa em termos de enfrentamento da epidemia.56 No Senado Federal, merece destaque o interessante Projeto de Lei Complementar (PLP n° 39/2020, de 24.03.2020) apresentado pelo Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), Vice-Presidente da referida Casa Legislativa, durante o período de epidemia.
 

De forma muito pertinente, o referido projeto de lei complementar tratou, em sua redação originária, sobre a cooperação federativa na área de saúde e assistência pública em situações de emergência de saúde pública de importância nacional ou internacional (como o atual caso de pandemia), que exijam a atuação coordenada de todos os entes da Federação. Nesse sentido, buscou-se regulamentar mecanismo de cooperação ainda pouco explorado em nosso ordenamento jurídico e previsto no parágrafo único do art. 23 da Constituição, aplicando-o ao tema da saúde pública (art. 23, II, CF/88).7
 

O referido projeto legislativo captou a necessidade de garantir maior institucionalidade às formas de cooperação federativa nesses momentos de crise, bem como propôs mecanismos de estímulo à atuação coordenada, que devem se guiar por princípios de cooperação multinível, planejamento comum e maximização de esforços, conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos, preservação de ampla participação pública e integração das decisões tomadas ao Sistema Único de Saúde.
 

Em sintonia com o debate teórico-doutrinário do direito público sobre a necessidade de fomento de medidas de consensualidade também no âmbito político-estatal, o projeto cria o instituto denominado de “decisão coordenada federativa”. Ele estimula que os representantes dos entes federados se reúnam constantemente (inclusive com o auxílio de mecanismos virtuais) para discutir propostas, ações e medidas administrativas e legislativas e para criar decisões comuns e coordenadas – tanto quanto possível e sem prejuízo do espaço reservado à autonomia federativa e à responsabilidade de cada ente federado.
 

Em síntese, esse projeto legislativo estimula o caráter institucional e constitucional da cooperação federativa e fomenta que os gestores públicos sentem à mesa e discutam, ainda que não cheguem a um consenso sobre tudo. Ele reforça a união federativa, como adicional arena de debate, de pensamento, de reflexão e também de discordâncias naturais do processo de gestão pública. Trata-se de interessante engenharia legislativa e institucional que pode promover união institucional e coesão federativa e se colocar como alternativa possível a eventuais divergências políticas, produzindo respostas mais claras e menos ruidosas para a sociedade — especialmente em tempos de emergências de saúde pública.
 

Também vale destacar que o referido projeto de lei complementar passou a tramitar no Senado Federal em conjunto com outro projeto legislativo oriundo da Câmara dos Deputados (PLP 149/2019), o qual sofreu adaptação para tratar da ajuda financeira aos entes federados nesse momento de epidemia.
 

Nesse sentido, não há dúvida de que o aspecto de auxílio financeiro é intrínseco à cooperação federativa e essencial em momentos de crise – o que torna natural a sua proeminência no debate político e a sua priorização, que foi absorvida em substitutivo aprovado no dia 2 de maio de 2020 pelo Senado Federal no âmbito do PLP n° 39/2020. De todo modo, ao lado do aspecto financeiro, o debate referido ao instituto da decisão coordenada federativa merece ser levado adiante e aprofundado no Parlamento pelos méritos que a proposta contém para fortalecer ainda mais a institucionalidade da cooperação federativa brasileira.
 

Como visto, os exemplos indicados reforçam a premissa de que o princípio constitucional do federalismo cooperativo brasileiro exige atuações comuns, coordenadas, concertadas e que privilegiem uma resposta institucional firme e coesa. Liderança e compromisso institucional devem ser antídotos contra desunião política e oportunismos na gestão pública de emergências de saúde pública.
 

No caso atual, a epidemia não deve ser um trilema de gestão pública em três níveis federativos, nem um dilema entre União e estados. A epidemia deve ser enfrentada como um problema comum a todos, respeitando-se assimetrias e complexidades inerentes à cada situação e realidade geográfica.
 

Em suma, pensando juntos sobre problemas comuns certamente pensamos melhor a sua solução no plano social e no plano institucional (político e estatal). E se ainda não há vacina para o vírus, há bons remédios institucionais e constitucionais à disposição e que passam pela posologia constitucional da união federativa cooperativa. Afinal de contas, não custa lembrar ao leitor que a própria designação de “União Federal” é bastante relevadora do que aqui se quer dizer: a união deve ser a síntese agregadora da ação comum daqueles que se unem como Federação e como comunidade política.
 


1 SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, abril 2020.

2 SARLET, Ingo W. Art. 198 (Comentário). In: CANOTILHO, José J. G. et al. (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1938-1939.

3 ALMEIDA, Fernanda D.M.. Art. 23 (Comentário). In: CANOTILHO, op. cit., p. 747.

4 ADI 6341 MC, Rel. p/o acórdão Min. Edson Fachin, Pleno, julgado em 15.04.20, pendente de publicação até a presente data.

5 <https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2020/04/coronavirus-propostas-de-enfrentamentro-aprovadas-no-senado>.

6 <https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/procorona/index.html>.

7 Até hoje, apenas uma lei complementar foi criada com base no art. 23, parágrafo único, da Constituição (LC 140/2011), fixando normas de cooperação federativa em matéria de proteção ambiental.

 

 é doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

 

FONTE: Revista Consultor Jurídico, 4 de maio de 2020, 8h13


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