Reflexões sobre o Júri por Walfredo Campos, Promotor de Justiça do MPSP
quarta-feira, 30 de junho de 2021, 15h46
Walfredo Cunha Campos, promotor de Justiça do Estado de São Paulo. Atualmente, ocupa a Promotoria do Júri da capital de São Paulo (Júri de Santo Amaro). Autor de Nos Tribunais do Júri e O Novo Júri Brasileiro. Veiculado no site Genjuridico.com.br
Foro privilegiado e julgamento pelo Júri
Pelo princípio da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal), todos os acusados da prática de um crime doloso contra a vida deveriam ser julgados pelo Júri, juiz natural de tais delitos (art. 5º, XXXVIII, d, da CF).
Mas aquelas autoridades que ocupem um cargo ou função pública de especial relevância, mesmo que pratiquem um crime doloso contra a vida, poderão ser julgados pelos Tribunais, e não pelo Júri, desde que a Constituição preveja expressamente essa competência originária.
É o chamado foro privilegiado ou foro por prerrogativa de função.
Na Ação Penal 937, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que, quanto aos deputados federais e senadores- que possuem a prerrogativa de serem julgados perante o próprio Supremo, só se fixará essa competência se o crime eventualmente praticado pelo parlamentar tiver sido cometido após a diplomação e se relacionar com o exercício do mandato.
Como normalmente o homicídio não se vincula ao exercício do mandato, o deputado federal (e estadual também), e o senador serão julgados pelo Júri, e não pelo Supremo, se cometerem um crime doloso contra a vida.
E quanto ás demais autoridades que também são detentoras do chamado foro privilegiado previsto na Constituição serão julgadas pelo Júri ou pelos Tribunais superiores?
No caso das demais autoridades, como promotores, juízes, desembargadores, diplomatas, e outros, se cometerem um crime doloso contra a vida, serão julgados pela instância superior, e não pelo Tribunal do Júri, uma vez que o Supremo, quando decidiu restringir o foro por prerrogativa de função, tratou apenas dos deputados federais e dos senadores (e não daqueles que exerçam outras funções públicas).
No julgamento de Arne Cheyenne Johnson, em um primeiro processo judicial conhecido nos Estados Unidos, em 1981, a defesa tentou sustentar, perante o Júri, que o acusado era inocente da prática do homicídio contra Alan Bono, porque estaria possuído pelo demônio. O juiz togado, porém, rejeitou essa defesa, argumentando que, devido à falta de evidências, e por não ser científica tal sustentação, não se poderia admiti-la; a defesa, então, requereu a absolvição com base na legítima defesa, mas o réu, ao final, foi condenado.
Essa tese poderia ser postulada pela Defesa no Júri brasileiro?
Como a tese absolutória genericamente apenas indaga ao jurado se absolve o acusado, sem especificar os motivos para tanto (art. 483, § 2º, do CPP), não haveria empecilho na sustentação, e mesmo acolhimento, de tal tese por parte dos jurados.
Essa tese deveria constar da ata de julgamento pelo Júri (art. 495, XIV, do CPP), e, interposta apelação pela acusação (MP ou assistente da acusação), a absolvição provavelmente seria cassada por se considerar que proferida manifestamente ao arrepio das provas dos autos (art. 593, III, d, do CPP), que pressupõem, para o seu acolhimento ou refutação, argumentos racionais e verificáveis (como a oitiva de testemunhas, realização de perícias, etc), e não questões referentes à fé religiosa, como a crença em forças demoníacas.
Todavia, se vingado o entendimento de ambas as Turmas do Supremo no sentido de que a acusação (MP e Assistente da Acusação) não podem recorrer dos veredictos absolutórios, por mais discrepantes que sejam das provas dos autos, não haveria mais nada a se fazer, a não ser, sem trocadilho, culpar-se o capeta.
Pode o pai de uma vítima de homicídio ser assistente da acusação?
O engenheiro Leniel Borel de Almeida, pai da vítima Henry Borel Medeiros, requereu à juíza titular do II Tribunal do Júri sua nomeação como assistente da acusação no processo criminal instaurado em que constam como réus sua ex-mulher Monique Medeiros da Costa e Silva e o namorado dela, o médico e vereador Jairo Souza Santos Júnior, o Dr. Jairinho, acusados de terem assassinado seu filho.
O que é o assistente da acusação, e como é sua atuação no rito do Júri?
É um sujeito processual que possua interesse em auxiliar a acusação patrocinada pelo Ministério Público, no caso de homicídios tentados ou consumados, seja porque é a própria vítima do delito, ou por ter relações íntimas ou consanguíneas com o ofendido.
Quem pode ser assistente da acusação? De acordo com o art. 268 do CPP, pode ser o ofendido ou o seu representante legal, cônjuge (ou companheiro), ascendente (pai, mãe, avô ou avó da vítima), descente (filho, neto, bisneto da vítima) ou irmão (irmã da vítima).
No caso em tela, o pai de uma vítima de homicídio tem plena legitimidade para constar como assistente da acusação, de acordo com o artigo 268 do CPP.
O assistente da acusação, quando não é advogado, exerce suas funções no processo, como a de requerer meios de provas, dirigir perguntas às testemunhas, participar dos debates, arrazoar os recursos, por meio de profissional habilitado, ou seja, por meio de advogado constituído (ou nomeado) para tanto, e não por atuação própria.
Perceba-se, então, que o assistente da acusação propriamente dito é a vítima, seu cônjuge (ou companheiro), ascendente, descendente ou irmão, mas sua atuação no processo- necessariamente- ocorrerá por intermédio de advogado que representa seus interesses.
O que é desaforamento? Entenda o conceito
O desaforamento é a transferência do julgamento de um crime doloso contra a vida pelo Tribunal do Júri, da comarca, no caso da Justiça Estadual, ou seção ou subseção judiciária, em se tratando de Justiça Federal, onde se consumou, para outra, com jurados dessa última, derrogando-se a regra geral de competência (art. 70 do CPP), em razão de interesse da ordem pública, por haver suspeita de parcialidade dos juízes leigos, por existir risco à segurança pessoal do acusado, ou, em razão do comprovado excesso de prazo, se o julgamento não puder ser realizado no prazo de seis meses do trânsito em julgado da decisão de pronúncia.
Esse instituto, próprio do Júri, é previsto nos arts. 427 e 428 do CPP. Pelo fato de o instituto do desaforamento constituir uma norma que excepciona a regra geral territorial de competência, sua interpretação deve ser restritiva (1); em outras palavras, apenas as hipóteses legais, que são taxativas, autorizam a mudança de competência, não se admitindo analogia ou interpretação extensiva nesse tema.
Tal medida excepcional pode ser postulada, perante o Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, pelo Ministério Público, pelo assistente, pelo querelante ou pelo defensor do acusado; pode, ainda, o juiz representar pelo desaforamento. Concedido o desaforamento, a comarca onde se realizará o julgamento deverá ser da mesma região daquela de onde foi derrogada a competência territorial, preferindo-se, sempre, as comarcas mais próximas onde não houver os motivos ensejadores daquela medida, obviamente. Se for indeferido o desaforamento, é cabível a impetração de habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, se o pleito tiver sido sustentado pela defesa do acusado (art. 105, I, c, da CF), ou ainda, perante o STF (art. 102, I, i, da CF).
Conforme entendimento do STF (2), o desaforamento, por se tratar de causa derrogatória da competência territorial do Júri, é tido como medida excepcional, só sendo deferido, se ocorrer qualquer dos pressupostos taxativamente referidos no art. 424 do CPP.
Um dos princípios motivos de desaforamento é a de dúvida a respeito da imparcialidade dos jurados: para que o processo seja desaforado, a postulação deve se basear em fatos concretos que desabonem a conduta deles, por flagrante parcialidade a favor ou contra o réu. Meras conjecturas em tal sentido, pelo puro e simples fato de ter havido repercussão pela imprensa, não justificam a medida, até porque todos os dias, literalmente, há pelo menos um escândalo policial na televisão, em programas policialescos, não se podendo concluir que todo e qualquer cidadão que o assistiu tornou-se parcial.
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1 - STJ- HC 374.713/RS (2016/0270076-0). Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro
2 - STF: HC 91.617, 2a T., Rel. Min. Celso de Mello, DJe 9.12.2011.
Lesões ocasionados em vida ou após a morte?
O estudo da medicina legal é a base de um trabalho técnico eficaz no Tribunal do Júri: uma prova pericial bem interpretada derruba dezenas de testemunhas pré-fabricadas.
Sempre aconselhamos aos tribunos o estudo aprofundado da medicina legal (e também da balística e criminalística, dentre outras matérias) para bem atuar em plenário.
Respondendo à pergunta: as lesões, quando atingem um corpo vivo, provocam retração do tecido e sangramentos; se os ferimentos não ocasionarem retração ou sangramento, comprova-se que não reação vital, logo, foram produzidos após a morte.
Com esse entendimento, em um cadáver que ostente várias lesões, pode-se apurar quais delas foram produzidas, durante a vida, ou após a morte.
O acusado pode recusar ser julgado pelo júri?
É costume se dizer que o réu de um crime doloso contra a vida tem o direito de ser julgado pelo Júri: é o direito ao devido processo legal do Júri, ou seja, de ser julgado por seus pares, quando lhe pese a acusação da prática de tais delitos.
Indaga-se: se é um direito do réu ser julgado pelo Júri, então o acusado poderia renunciar a esse direito, dizendo que prefere ser julgado pelo juiz togado e não pelo Júri?
Não lhe assiste esse direito de opção: mesmo que não queira, deverá ser- obrigatoriamente- julgado pelo Júri, que não pode ser recusado.
Diante desse fato, conclui-se que o julgamento pelo Júri, além de ser um direito individual do acusado, é- também- o direito social à participação popular nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida: em outras palavras, o direito de o cidadão de bem sentar-se na cadeira do juiz e exercer o poder de decidir, no lugar do magistrado técnico.
É o que legitima a nossa democracia.
Aproveitamento do mesmo Conselho para julgar mais de um processo
Pode ser realizado mais de um julgamento pelo mesmo Conselho? O art. 452 do CPP expressamente abre essa possibilidade, contanto que se renove o compromisso dos jurados a cada julgamento, e que as partes, acusação e defesa, estejam de acordo, lavrando-se uma ata para cada um deles.
Desse modo, o mesmo Conselho de Sentença, ou seja, os sete jurados sorteados para atuarem no julgamento anterior, poderão ser aproveitados para julgar o novo processo. A vontade das partes, nesta hipótese, é pesquisada porque, ao aproveitar-se o mesmo Conselho de julgamento, elas estarão impedidas de recusar imotivadamente os jurados, como poderiam fazê-lo nos demais julgamentos.
Essa concordância das partes deve ser buscada, findo o primeiro julgamento, e antes do segundo, evidentemente por parte dos profissionais que atuarão no segundo processo.
O permissivo legal de realização de mais de um julgamento pelo mesmo Conselho de Sentença pode ser utilizado, de maneira extremamente útil, especialmente pelo promotor de justiça, na medida em que selecione os casos em que pedirá absolvição e solicite ao presidente do tribunal para que designe uma única sessão de julgamento de todos os processos escolhidos, poupando-se esforços, e ganhando-se tempo (quiçá meses), à pauta de julgamentos.
Você sabe o que é cláusula de plenário, no rito do júri?
Quando do julgamento pelo Tribunal do Júri, as agravantes e atenuantes, que não são decididas pelos jurados, deverão ser consideradas exclusivamente pelo juiz presidente, quando da prolação de eventual sentença condenatória. Mas, para tanto, necessário que sejam expressamente alegadas pelas partes quando dos debates (art. 492, I, b, do CPP). Essa é a denominada cláusula de plenário. Quanto às atenuantes, o juiz presidente deverá analisar a pertinência daquelas alegadas pelo advogado, bem como a tese exposta pelo próprio acusado, em seu interrogatório.
Essa compreensão do tema se pacificou junto ao STJ[1].
A agravante da reincidência reconhecida pelo juiz presidente, sem que tenha havido pedido expresso da acusação nesse sentido quando dos debates em plenário, é ilegal e pode ser afastada, em grau recursal, ou até em sede de habeas corpus, caso a 2ª instância tenha confirmado referida causa de exasperação[2].
A consequência lógica desse dispositivo legal é que, mesmo se estiverem comprovadas nos autos as agravantes e as atenuantes, mas se não tiverem sido sustentadas pelos tribunos, o juiz estaria impossibilitado, de ofício, de reconhecê-las, aumentando ou minorando a sanção em razão de sua existência.
Essa interpretação não pode ser tão rigorosa, sob pena de consagrarem-se clamorosas injustiças. É perfeitamente cabível a exigência de a acusação sustentar a existência de agravantes perante o juiz presidente, pois esse pedido é mera consequência do pedido de condenação postulado aos jurados; obrigar-se, entretanto, a defesa, depois de ter pedido a absolvição aos jurados, a requerer ao juiz presidente o reconhecimento de uma atenuante, é colocá-la em uma situação de incontornável contradição frente aos jurados, violando o princípio constitucional da plenitude de defesa.
O mais adequado é que o juiz presidente possa reconhecer as circunstâncias atenuantes comprovadas nos autos, independentemente de solicitação do defensor do acusado em plenário, quando o advogado pedir a absolvição.
Diferente situação ocorrerá se o defensor tiver requerido aos jurados a condenação de seu cliente, apenas tendo sustentado a diminuição de sua carga (v. g., afastamento de qualificadoras, reconhecimento de privilégio), pois caberá a ele postular ao juiz o reconhecimento da atenuante que julgar cabível, o que não trará qualquer prejuízo à imagem de coerência de sua atuação frente aos jurados. Se não o fizer, não poderia, em tese, o magistrado, nos termos da lei processual, reconhecê-la.
[1] STJ-5ª T. AgRg no HC 580.498/PR, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 18/8/2020, DJe 24/8/2020; STJ- 6ª T. HC 507.883/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 6/6/2019, DJe 10/06/2019; STJ- 5ª T. HC 243.571/MG, Rel. Min. Laurita Vaz. J. 11/4/2013, DJe 17/4/2013.
[2] STJ- HC 602.802/PR. Rel. Min. Ribeiro Dantas.