Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Dever Fundamental

sexta-feira, 04 de setembro de 2020, 15h30

O aclamado escritor norte-americano Stephen King já vendeu cerca de meio bilhão de livros ao redor do mundo e é um dos dez autores mais traduzidos no globo terrestre. Uma de suas obras é “Escuridão Total e Sem Estrelas”, que abarca quatro contos, cada qual mais tenebroso que o outro, em que retratam a natureza humana em sua pior forma: a maldade sanguinária. Falam sobre assassinatos[1].

No Brasil, a ficção kinguiana parece ter se tornado real. O país ostenta um dos maiores índices de assassinatos no mundo[2]. Nem parece que cada ser humano, e todo ser humano, tem o direito de existir, viver e não ter sua vida arbitrariamente interrompida.

A vida é a base estrutural de toda a comunidade humana e pilar fundamental do ordenamento jurídico. Por isso, a tutela da vida humana é o principal fim do Estado e razão de sua existência.

Na linha do pensamento de Frederic Bastiat, não é porque os homens promulgaram leis, que a vida existe, mas, ao contrário, é porque a vida preexiste que os homens fazem as leis[3].

O direito à vida, portanto, é a fonte de todos os interesses, direitos e deveres humanos. Consiste na possibilidade fática e jurídica de estar e permanecer vivo no mundo, independentemente de posição geográfica, idade, raça, cor, sexo, credo, nacionalidade, ideologia, classe social, estado de saúde física ou mental etc.

No entanto, conforme os indicadores de violência e criminalidade, esse superdireito está longe de ser respeitado e protegido no país.

A chegada ao fundo da tragédia, onde há pilhas de cadáveres, exige uma mudança de perspectiva: chega de falar em direito à vida! É preciso falar em dever de respeitar e proteger a vida. A afirmação do óbvio “todos têm direito à vida” não tem sido o suficiente para aplacar o alto índice de assassinatos. É preciso mudar o discurso e a estratégia. Tentar algo diferente. Alterar a comunicação social e a mentalidade das pessoas quanto à reverência pela vida.

E isso incumbe a todos: indivíduo, família, sociedade e poder público. Não deve haver espaços para necropolítica[4], necrodireito[5] e necro-hermenêutica[6], nem por ação nem por omissão.

Fala-se muito em direitos humanos. Talvez seja preciso cambiar o discurso e falar em deveres humanos. Na realidade, como já afirmado outrora, “a palavra ‘direito’ é apenas uma forma eufemística de designar o dever dos demais. Direito sem obrigação é um nada"[7].

Segundo o princípio da reciprocidade jurídica, onde há direito também existe obrigação ou, noutro dizer, a cada direito corresponde um dever.

Não por outra razão que o direito à vida é uma moeda de duas faces: de um lado, o direito de não ser morto; e, doutro lado, o dever de não matar.

Então, de certo modo, afirmar que todos têm direito à vida é como afirmar que todos têm o dever de respeitar e proteger a vida. Por consequência, de nada adianta ter-se o direito à vida se o outro não tiver o dever de não matar. Mais que isso: o dever de respeitar e proteger a existência de si e de outrem.

Em uma sociedade que pretenda ser minimamente civilizada é necessário que haja um primeiro e inafastável dever imposto a todos: o dever de respeitar e proteger a vida.

Esse é o dever fundamental a ser observado e devidamente cumprido pelas pessoas, família, sociedade e pelo poder público.

Na linha do pensamento de Robert Alexy, a vida, como direito fundamental, reclama um complexo de posições subjetivas de cunho negativo (defensivo) – dever de abstenção e respeito por parte de todos - e positivo (prestacional) – dever de proteção por parte de todos, inclusive por meio de medidas ativas[8].

Assim, não é admissível que a ficção do terror tenha se entranhando no seio da sociedade brasileira a ponto de convertê-la em realidade.

Vale dizer, não há nenhuma importância termos um oceano de direitos inscritos no ordenamento jurídico brasileiro, sem que haja ao menos uma ilha para acolher e proteger o náufrago, qual seja, o dever fundamental de respeitar e proteger a vida.

A bem de ver, tudo isso leva a concluir que o atual cenário de extermínio de vidas no Brasil impõe, a título simbólico de comunicação social, uma nova Constituição Federal, extremamente sintética, com apenas dois dispositivos, quais sejam: artigo 1º - toda pessoa tem o dever de respeitar e proteger a vida; e artigo 2º - revogam-se as disposições em contrário.

A partir daí será possível a busca obstinada por uma sociedade minimamente civilizada para que o terror fique preso nas obras de Stephen King e não em livre circulação no território nacional.

Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.

 

[1]KING, Stephen. Escuridão total e sem estrelas. Trad. Viviane Diniz. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

[4]MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

[5]HERNÁNDEZ, José Ramón Narváez. Necroderecho. Cidade de México: Editorial Libitum, 2007.

[6]NOVAIS, César Danilo Ribeiro. Necro-hermenêuticahttp://promotordejustica.blogspot.com/2020/07/necro-hermeneutica.html

[7]NOVAIS, César Danilo Ribeiro. A defesa da vida no tribunal do júri. 2ª ed. Cuiabá: Carlini & Caniato 2018, p. 21

[8]Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 196 e ss.

 
 


topo