O jurado quebrou o compromisso. E agora?
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021, 17h19
No Tribunal do Júri, definido o Conselho de Sentença com a seleção pelas partes do sétimo, e último, jurado segue-se o momento solene do compromisso. Objetivamente, este impõe que o cidadão examine a causa com imparcialidade e a decida com consciência e justiça.
É o que dispõe o artigo 472 do CPP: “Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação: Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça. Os jurados, nominalmente chamados pelo presidente, responderão: Assim o prometo”.
A partir desse momento, o cidadão está investido nas funções de juiz de fato. Sem ter lado previamente definido, examinará a causa e os debates entre as partes e, quando da votação dos quesitos, elegerá o monossílabo sim ou não, segundo sua íntima convicção. Mas isso não é o bastante. É imprescindível que decida também conforme os ditames da justiça. Se assim não for, o compromisso estará quebrado, e, então, convertido em descompromisso.
Isso significa dizer que não há lugar para decisão desprovida de justiça. É inadmissível que haja solução injusta na causa. Ou seja, se pelas provas do processo e a ordem jurídica estiver manifesta e indubitável (1) a inocência ou (2) a culpa do acusado, respectivamente, haverá manifesta injustiça no caso de (1) condenação ou (2) absolvição.
É importante então indagar: qual o significado de ditames da justiça?
Grosso modo, é a decisão ditada, desenhada ou informada pela justiça. E o que é justiça?
Sem prejuízo de conceitos e reflexões filosóficos em torno do vocábulo em questão, é preciso ter em mente sua concepção jurídica. E, nesse sentido, justiça é o que se apresenta em consonância com o direito.
Os romanos ensinaram que justiça consiste em dar a cada um o que é seu. Em complemento, e melhor explicando, é oportuno citar o ensinamento, muito didático, de Maria Helena Diniz: “Como, em regra, o dever de dar a cada um o que é seu vem imposto por norma jurídica, pode-se afirmar que o justo é o que exige o direito. Daí ser a justiça o próprio ordenamento jurídico e o ideal a que deve tender o direito”[1].
“Governo de leis e não de homens” foi o lema da reação de colonos ingleses na América do Norte e da insurreição do terceiro estado na França, no século XVIII. Os ideais revolucionários inspiraram, e ainda inspiram, os princípios básicos do Estado Democrático de Direito contemporâneo.
Assim, a decisão de qualquer juiz, togado ou leigo, deve se pautar pela legalidade, que exprime o justo. “Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação”[2], disse, com genialidade e sabedoria, o polímata Ruy Barbosa.
Um dos pilares do Tribunal do Júri é a soberania dos veredictos, segundo o qual a última e definitiva palavra nos crimes dolosos contra a vida e conexos, pertence ao Tribunal do Júri. E a sua palavra não pode ser substituída ou alterada por qualquer juiz, desembargador ou ministro. Significa também que os veredictos ostentam eficácia imediata: absolveram, liberdade; condenaram, prisão. Mas, por óbvio, o Judiciário tem o poder-dever de analisar, em grau recursal, se o julgamento popular está ou não eivado de nulidade e/ou de grosseiro error in judicando.
As hipóteses legais de absolvição estão gizadas nos artigos 386 e 415 do Código de Processo Penal. Fora de tais dispositivos não há possibilidade jurídica para a absolvição.
Muitos afirmam que o jurado é soberano e, por isso, pode absolver por qualquer - até mesmo sem - motivo. Pode, então, condenar por qualquer ou sem motivo? Ou essa falácia só vale para livrar assassino da prisão?
É preciso ter coerência e seriedade no discurso, ainda que isso custe interesses corporativos. Afinal, o grau de civilização de um povo também é medido pelo grau de proteção do direito à vida, que inclui a seriedade e a gravidade da punição estatal ao assassino. O sistema jurisdicional deve olhar não apenas para os injustos, mas também (e principalmente) para os injustiçados.
Não existe poder incontrolável em um Estado Democrático de Direito. “(...) trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites”[3].
Em um país com cerca de 60 mil assassinatos por ano, não há espaço para criação ou admissão de doutrina, teoria, tese ou norma com o objetivo de livrar ou mitigar a responsabilidade penal de assassino. Nenhuma invencionice jurídica pode favorecer caçadores de pessoas, em um país minimamente civilizado.
A propósito, é importante não esquecer que a vida é a base estrutural de toda comunidade humana e pilar fundamental do ordenamento jurídico. Logo, o dever de defesa e proteção do direito à vida é o principal fim do Estado e razão de sua existência.
Por tudo isso, a tese da irrecorribilidade do veredicto absolutório injusto (manifestamente contrário à prova ou à lei), pregada por defensores, públicos e privados, em que o assassino sai impune, apesar de ter atacado a fonte de todos os direitos humanos, é inconstitucional, ilegal e injusta porque desprotege e mitiga a vida humana. Na realidade, essa tese demonstra claramente ter compromisso apenas com quem atacou a existência alheia, com o erro e a injustiça. Não há nela um fiapo sequer de respeito à vida, à sociedade, à família pranteada e à vítima.
Como assinalou o ministro Edson Fachin, “júri é participação democrática, mas participação sem justiça é arbítrio”[4].
Desse modo, detectado erro grosseiro no julgamento popular pela instância recursal, é necessário que haja novo julgamento, ocasião em que a soberania dos veredictos estará preservada e os jurados poderão reafirmar ou modificar os veredictos.
É bom lembrar que, segundo os anais da assembleia nacional constituinte de 1987[5], tentaram subtrair do Ministério Público o direito de apelar contra absolvições do Tribunal do Júri. Como exemplo, foi a emenda apresentada pelo deputado federal Nyder Barbosa (PMDB/ES): “Seja mantida a instituição do júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, sendo irrecorríveis suas decisões absolutórias”. Tal emenda, como é óbvio, foi rejeitada.
Prevaleceu então, o duplo grau de jurisdição nos casos em que a decisão dos jurados for manifestamente contrária às provas dos autos ou se houver alguma nulidade insuperável. Isso porque a Constituição Federal remeteu ao legislador ordinário a organização do Tribunal do Júri e, na linha do inciso LV do artigo 5º, o Código de Processo Penal estabeleceu a apelação contra decisões manifestamente contrárias à prova dos autos (artigo 593, III, “d”).
Logo se vê que soberania dos veredictos não significa arbítrio ou poder ilimitado. Ainda que possa muito, o jurado não pode tudo. Não detém poder absoluto para atuar como artífice de um julgamento injusto, qual seja, contrário à lei ou à prova do processo.
Noutras palavras, não deve condenar contra as provas dos autos. Não deve condenar contra os ditames legais. Não deve fazer favor com o sangue alheio (clemência). Não deve absolver contra as provas dos autos. Não deve absolver contra os ditames legais, sob pena de julgamento injusto (contra a prova ou a lei), que é incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Daí a previsão de Recurso de Apelação contra condenação ou absolvição injusta, em busca de justiça em novo julgamento popular. Soberania e onipotência injusta e sem limites não se confundem.
O compromisso firmado pelo jurado deve ser fiscalizado pelas partes - sobretudo pelo Ministério Público diante de absolvições teratológicas[6] -, pelas instâncias recursais e pelo novo Conselho de Sentença. A quebra de tal compromisso, produtor de injustiça, também. A sociedade tem direito à justiça, como tem a família enlutada, a comunidade indignada e a pessoa vitimada.
Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.
[1] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 365.
[2] http://www.casaruibarbosa.gov.br. Acesso em 09/02/2021.
[3] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 166.
[4] STF, Agravo Regimental n. 1.225.185.
[5] https://www2.camara.leg.br/. Acesso em 09/02/2021.
[6] Como já escrevemos, “a experiência demonstra que, em regra, a decisão popular manifestamente contrária à prova dos autos ocorre no caso de absolvição arbitrária, uma vez que, para fins de julgamento pelo Tribunal Júri, o mesmo foi devidamente filtrado pelo Judiciário, tanto pelo recebimento da denúncia como pela pronúncia (prova da existência do crime e de indícios suficientes de autoria/participação) - muitas vezes com sua confirmação pela instância recursal -, o que torna raro que um processo sem lastro probatório mínimo para a condenação seja submetido à apreciação dos jurados. Assim, no Tribunal do Júri, há maior risco de absolver o culpado do que condenar o inocente, em razão de todo o processamento dos crimes dolosos contra a vida”. (http://promotordejustica.blogspot.com/2019/10/julgamento-soberano.html)
Fonte: Blogspot Promotor de Justica