Necropaís
quinta-feira, 29 de abril de 2021, 16h17
NECROPAÍS
Toda ideia falsa acaba em sangue e esta é a justiça desta terra. Mas é sempre o sangue dos outros, e é esta a injustiça de nossa condição. Albert Camus
Na mitologia grega, Tânato é quem tira a vida das pessoas. É o deus da morte, responsável por levar os finados ao submundo, onde reina Hades, o deus dos mortos.
Da Grécia antiga vem o prefixo necro, cuja etimologia reside em nékros (morto), que significa morte. A verdade factual demonstra o quanto tal prefixo está presente no Brasil, convertendo-o em um necropaís, em que Tânato opera de forma incansável. É uma nação de cadáveres.
Basta ver que o país ocupa o pódio infame dos campeões de homicídios[1]. Grande parte dos assassinatos cometidos no globo terrestre se encontra no Brasil. Para se ter uma ideia do caos, só em 2017, segundo o Mapa da Violência, ocorreram cerca de 65 mil assassinatos. O cenário fica ainda pior ao se constatar a inexistência de formulação e, por consequência, execução de políticas públicas aptas ao enfrentamento desse gravíssimo problema. É a naturalização de assassinatos.
Ao que tudo indica, os principais responsáveis pela existência do necropaís são a necropolítica, o necrodireito e a necro-hermenêutica. Estes são pais daquele.
Necrodireito é o direito que mata[2]. Não tem compromisso com a fonte de todos os direitos, interesses e deveres humanos: a vida. Advém do Estado, sobretudo em sua função legislativa, que, direta ou indiretamente, desprotege e atenta contra a vida humana[3].
Esse termo foi cunhado por José Ramón Narvaez Hernandez, professor da Universidade Nacional Autônoma do México. Na realidade, ele se inspirou na ideia do filósofo camaronês Achille Mbembe, que a denominou como necropolítica[4]. O Poder Público, principalmente pela função executiva, por seus diversos entes, instituições, órgãos e agentes, decide quem vive e quem morre, pela via da ação ou omissão. É a política que discrimina e mata pessoas.
Não bastasse isso, há, na função judiciária, a necro-hermenêutica que é a eleição de interpretação do direito que desvaloriza a vida a favor de quem injustamente a atacou. É o laxismo penal misturado com a síndrome de Pilatos[5]. Nas possibilidades quase infinitas de interpretação da norma jurídica, o julgador lança mão de exegese em franco desprezo à vítima, a seus familiares e, principalmente ao direito à vida[6]. Não pune o assassino como deveria punir[7]. Afinal, como ensina Valério de Oliveira Mazzuoli, professor da Universidade Federal de Mato Grosso, punir quem viola direitos é também um standard de direitos humanos[8].
Nessa linha, faz sentido dizer que a punição séria e grave aos assassinos é necessária para que eles e outros como eles sejam desencorajados de fazer o que fizeram, fazem e farão.
A propósito, há um consenso geral de que a vida é a base estrutural de toda a sociedade e pilar fundamental do ordenamento jurídico. Não depende de criação legislativa, uma vez que o direito positivo não o constitui, mas o declara. Logo, a defesa e proteção da vida humana é o principal fim do Estado e razão de sua existência.
Por isso, o Executivo, Legislativo e Judiciário, através de seus agentes, devem adotar todas as medidas necessárias para assegurarem a defesa e a proteção do direito à vida.
O princípio da primazia da proteção integral da vida, que impõe a filtragem "pro vita", nas ações estatais reclama isto: a) a biopolítica: a política da vida em detrimento da política da morte; b) o biodireito: o direito que protege e defende a vida humana; e c) a bio-hermenêutica: a interpretação das normas do ordenamento jurídico que busca a máxima tutela da vida[9].
Enfim, em todas as esferas do Poder Público, deve-se concretizar todas a ações que garantam a melhor defesa e a melhor proteção do direito à vida, que é o epicentro axiológico do universo jurídico e a razão de todas as coisas.
Assim, qualquer ação ou omissão que não tutele, ou tutele de forma deficiente, a vida humana consistirá em necropolítica, necrodireito ou necro-hermenêutica.
É preciso então transformar o necropaís em um biopaís, com a defesa e a proteção intransigente por parte de todos os entes, instituições, órgãos e agentes públicos. E isso só ocorrerá quando todos, sem exceção, abandonarem ações e omissões que flertam com a necropolítica, o necrodireito e a necro-hermenêutica.
Portanto, para que esse terrível estado de coisas seja alterado é preciso, na linha do pensamento de Ronald Dworkin, saudoso professor da Universidade de Nova York, levar o direito à vida a sério[10]. A sociedade brasileira deve exigir que o Estado, por todas as suas frentes, leve a sério o direito de viver que cada uma das pessoas possui. Deve exigir que haja defesa e proteção integral do direito de existir ínsito a todos os seres humanos. É um bom começo para tentar neutralizar a ação de Tânato em terras brasileiras.
Por fim, é importante lembrar as palavras de Albert Camus, na conferência "O Tempo dos Assassinos", em 1949 no Rio de Janeiro: "Toda ideia falsa acaba em sangue e esta é a justiça desta terra. Mas é sempre o sangue dos outros, e é esta a injustiça de nossa condição"[11].
Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri.
[1] Basta uma rápida pesquisa no Google para encontrar inúmeros documentos que corroboram essa assertiva.
[2] HERNÁNDEZ, José Ramón Narváez. Necroderecho. Cidade de México: Editorial Libitum, 2007.
[3] Exemplo claro de necrodireito é o PL 8045/2010 (Novo Código de Processo Penal), ao formatar o procedimento dos crimes dolosos contra a vida com inúmeros obstáculos à punição de assassinos (cf. “Juricídio” - http://promotordejustica.blogspot.com/2021/04/juricidio-o-juri-no-novo-cpp.html - Acesso 28 abr.2021.
[4] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
[5] Bíblia, Mateus 27:24.
[6] NOVAIS, César Danilo Ribeiro de. Necro-hermenêutica. http://promotordejustica.blogspot.com/2020/07/necro-hermeneutica.html Acesso 28 abr. 2021.
[7] Exemplo claro de necro-hermenêutica é a vedação de recurso do Ministério Público contra absolvições injustas pelo Júri em busca de novo julgamento, bem como a concessão do direito de recorrer em liberdade contra a condenação do Júri.
[8] Cf. aula ministrada no “Minicurso de Controle de Convencionalidade pelo Ministério Público” na Escola Superior do Ministério Público do Paraná, em 28 abr. 2021.
[9] Cf. LOUREIRO, Caio Márcio. O princípio da plenitude da tutela da vida no tribunal do júri. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017.
[10] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[11] CAMUS, Albert. O viajante. Rio de Janeiro: Record, 2019.
Fonte: Blog Promotor de Justiça