Jurisprudência TJRS - Curatela. Submissão à curatela que afeta tão somente aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. Impossibilidade de extensão aos demais atos da vida civil
segunda-feira, 02 de maio de 2022, 09h00
EMENTA
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE CURATELA. SUBMISSÃO À CURATELA QUE AFETA TÃO SOMENTE AOS ATOS RELACIONADOS AOS DIREITOS DE NATUREZA PATRIMONIAL E NEGOCIAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXTENSÃO AOS DEMAIS ATOS DA VIDA CIVIL. De acordo com o art. 85 da Lei nº 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), ?a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial?, sendo descabida, portanto, a extensão da curatela aos demais atos da vida civil.DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.(TJRS - AC: 70085049658 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 20/08/2021, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 27/08/2021).
Nº 70085049658 (Nº CNJ: 0018518-96.2021.8.21.7000)
2021/Cível
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE CURATELA. submissão à curatela que afeta tão somente aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. impossibilidade de EXTENSÃO aos DEMAIS ATOS DA VIDA CIVIL.
De acordo com o art. 85 da Lei nº 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, sendo descabida, portanto, a extensão da curatela aos demais atos da vida civil.
DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.
Apelação Cível
Oitava Câmara Cível
Nº 70085049658 (Nº CNJ: 0018518-96.2021.8.21.7000)
Comarca de Novo Hamburgo
R.L.P.S.
..
APELANTE
T.A.C.
..
APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento à apelação.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Rui Portanova (Presidente) e Des. Ricardo Moreira Lins Pastl.
Porto Alegre, 19 de agosto de 2021.
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS,
Relator.
RELATÓRIO
Des. Luiz Felipe Brasil Santos (RELATOR)
Trata-se de apelação interposta por R.L. P. S. em face da sentença que julgou procedente a ação de curatela promovida por M.A. V., a qual veio a falecer no curso da demanda, sendo posteriormente substituída por T. A. C., com retificação do polo ativo (fls. 77/ e v. e 93/94v.).
A requerida/apelante, por meio da Defensoria Pública, atuando na qualidade de curadora especial, sustenta que (1) o juízo de origem, ao declarar a curatela para todos os atos da vida civil, extrapolou os limites previstos no art. 85 da Lei nº 13.146/2015; e (2) a lei prevê expressamente que a curatela abrange apenas os direitos patrimoniais e negociais. Pede a reforma da sentença, a fim de serem impostos limites à curatela (fls. 95/96v.).
Contrarrazões nas fls. 100/102.
O Ministério Público opina pelo desprovimento (fls.104/107).
É o relatório.
VOTOS
Des. Luiz Felipe Brasil Santos (RELATOR)
A autora ingressou com a presente ação, para ver declarada a curatela da irmã, Rosa L. P. S., de 83 anos de idade (fl. 16).
A prova pericial psiquiátrica concluiu que a requerida apresenta demência não especificada - CID F030 e é incapaz para todos os atos da vida civil de forma permanente e irreversível (fls. 86/87).
A sentença julgou procedente o pedido, para declarar a curatela definitiva da requerida para todos os atos da vida civil (fl. 94v.).
Adianto que merece reforma o julgado.
Com efeito, a partir da entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Estatuto da Pessoa com Deficiência -, houve drástica alteração da legislação no que tange à capacidade civil.
O art. 1º da mencionada lei esclarece ser ela destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.
Já o art. 2º, caput, traz a definição da pessoa com deficiência:
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Em razão de o art. 6º do referido Estatuto preconizar que ?a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa?, agora, somente os menores de 16 anos são considerados absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil (art. 3º do CC).
Igualmente, houve mudanças na lei civil acerca da incapacidade relativa (art. 4º do CC), sendo retiradas as previsões de incapacidade relativa quanto aos que tivessem discernimento reduzido por deficiência mental e quanto aos excepcionais, sem desenvolvimento mental completo. A par disso, aqueles que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade que anteriormente eram considerados absolutamente incapazes , agora são considerados relativamente incapazes.
Em suma, as definições de capacidade civil foram reconstruídas para dissociar a deficiência da incapacidade. Assim, em virtude das alterações provocadas na lei civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, não se cogita de incapacidade absoluta de pessoas maiores de 16 anos, mas somente de incapacidade relativa.
O art. 84, caput, do Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece que ?a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas?, apresentando os parágrafos 1º e 2º do mesmo artigo as formas para o exercício da capacidade legal: a tomada de decisão apoiada e a curatela.
Em relação à curatela, o referido Estatuto é bem claro quanto ao seu alcance, assim dispondo em seu art. 85, caput, e § 1º:
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§ 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. (grifei e sublinhei)
Especificamente quanto ao tema do MATRIMÔNIO, não bastasse a clareza do texto legislativo, a doutrina é uniforme no sentido de que estão revogadas todas as disposições anteriores impeditivas de sua celebração por pessoas dotadas de limitações intelectivas.
A propósito, veja-se o que diz JONES FIGUEIREDO ALVES:
Nos termos do artigo 1.548, inciso I, do Código Civil, é nulo o casamento contraído pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil? e do artigo 1550, inciso I do Código Civil, é \anulável o casamento do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento\.
Agora, o artigo 144 da recente Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, revoga expressamente o inciso II do artigo 3º e o inciso I do artigo 1.548, ambos do Código Civil, e introduz parágrafo 2º, ao artigo 1.550 do CC, dispondo que ?a pessoa com deficiência mental ou intelectual, em idade núbil, poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador.
Importa assinalar, antes de mais, que deficiência (retardo) mental não significa enfermidade, a representar causa de impedimento ao casamento e, designadamente, a proibição legal de pessoa absolutamente incapaz contrair casamento (ou constituir união estável) antagoniza a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova York, EUA/2007) incorporada ao nosso sistema jurídico sob promulgação do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, após aprovação pelo Decreto Legislativo 186, de 9 de julho de 2008, com o ?status? de Emenda Constitucional.
De fato. A doutrina formulada por Maximiliano Roberto Ernesto Führer (2014) intervém a dizer que a proibição imposta ao doente mental para se casar atenta frontalmente contra Dignidade da Pessoa Humana, princípio diretor da República Brasileira (artigo 1º, inciso III, da CF) e, destarte, é inconstitucional, além de desumana. Com efeito, a negação ao status familiar e amoroso afronta diretamente a natureza humana. O deficiente mental e o doente mental não podem ser considerados menos humanos ou portadores de uma ?humanidade condicionada ou restrita(...). (Processo 0055593-54.2012.8.26.0564 ? SP).
(...)
Com efeito, portadores de moléstia mental permanente (revogado o artigo 1.548, I, CC) poderão contrair núpcias ou conviver em união estável, reconhecido o direito de constituírem família.
Como observado, o casamento é aspecto relevante no processo de inserção social que portadores de doenças e deficiências mentais devem obter. Mais que simples exercício de um direito, constitui uma afirmação de suas individualidades.
Que assim seja, por dignidade de sua condição humana, para que se concretizem como pessoas. Suficiente entender que a expressão da vontade começa pelo permissivo da nova lei.
Não é diferente a opinião de FLÁVIO TARTUCE
:
Em matéria de casamento também podem ser notadas alterações importantes engendradas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. De início, o art. 1.518 do Código Civil teve sua redação modificada, passando a prever que, até a celebração do casamento, podem os pais ou tutores revogar a autorização para o matrimônio. Não há mais menção aos curadores, pois não se decreta mais a nulidade do casamento das pessoas que estavam mencionadas no antigo art. 1.548, inciso I, ora revogado. Enunciava o último diploma que seria nulo o casamento do enfermo mental, sem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, o que equivalia ao antigo art. 3º, inciso II, do Código Civil, que também foi revogado, como visto. Desse modo, perdeu sustentáculo legal a possibilidade de se decretar a nulidade do casamento em situação tal. Em resumo, o casamento do enfermo mental, sem discernimento, passa a ser válido. Filia-se totalmente à alteração, pois o sistema anterior presumia que o casamento seria ruim para o então incapaz, vedando-o com a mais dura das invalidades. Em verdade, muito ao contrário, o casamento é via de regra salutar à pessoa que apresente alguma deficiência, visando a sua plena inclusão social.
Seguindo no estudo das modificações do sistema de incapacidades, o art. 1.550 do Código Civil, que trata da nulidade relativa do casamento, ganhou um novo parágrafo, preceituando que a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbil poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador (§ 2º). Trata-se de um complemento ao inciso IV da norma, que prevê a anulação do casamento do incapaz de consentir e de manifestar de forma inequívoca a sua vontade. Advirta-se, contudo, que este último diploma somente gerará a anulação do casamento dos ébrios habituais, dos viciados em tóxicos e das pessoas que, por causa transitória ou definitiva, não puderem exprimir sua vontade, na linha das novas redações dos incisos II e III do art. 4º da codificação material.
Como decorrência natural da possibilidade de a pessoa com deficiência mental ou intelectual se casar, foram alterados dois incisos do art. 1.557, dispositivo que consagra as hipóteses de anulação do casamento por erro essencial quanto à pessoa. O seu inciso III passou a ter uma ressalva, eis que é anulável o casamento por erro no caso de ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência (destacamos a inovação).
Em continuidade, foi revogado o antigo inciso IV do art. 1.557 do CC/2002 que possibilitava a anulação do casamento em caso de desconhecimento de doença mental grave, o que era tido como ato distante da solidariedade (\a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado\).
Essas foram as modificações percebidas na teoria das incapacidades, que foi revolucionada, e em sede de casamento.
Em outras palavras, a curatela, como medida excepcional que é, afeta tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. E isso, s.m.j., está bem claro na lei, com a qual pode-se discordar, mas não deixar de cumprir.
Vale destacar que, embora seja permitido o matrimônio, a eventual celebração de pacto antenupcial sempre dependerá de assistência de curador, pois se trata de ato de disposição patrimonial, o que se extrai da leitura conjugada dos artigos 1.772 e 1.782 do CCB.
Logo, mostra-se descabida a ampliação do decreto de curatela, de modo a alcançar todos os atos da vida civil, relacionados a direitos políticos, matrimônio, testamento, sexualidade, condução de veículo automotor, entre outros, diante da restrição/ressalva da própria lei.
Do exposto, DOU PROVIMENTO à apelação.
Des. Ricardo Moreira Lins Pastl - De acordo com o (a) Relator (a).
Des. Rui Portanova (PRESIDENTE) - De acordo com o (a) Relator (a).
DES. RUI PORTANOVA - Presidente - Apelação Cível nº 70085049658, Comarca de Novo Hamburgo: \DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.\
Julgador (a) de 1º Grau: GUSTAVO BORSA ANTONELLO