Jurisprudência TJDFT - Proteção integral. Ampliação. Curatela plena. Possibilidade
quinta-feira, 05 de novembro de 2020, 20h49
APELAÇÃO. INTERDIÇÃO. CURATELA. LIMITES. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CÓDIGO CIVIL. PROTEÇÃO INTEGRAL. AMPLIAÇÃO. CURATELA PLENA. POSSIBILIDADE. 1. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015, deve ser interpretado sistematicamente com o Código Civil e a Constituição Federal para assegurar às pessoas com deficiência um sistema de proteção integral de acordo com as suas necessidades e em prol de sua dignidade. 2. O Juiz deve fixar os limites da curatela de acordo com o estado e o desenvolvimento mental do interdito (CPC, art. 755, I). 3. Comprovado que o curatelado apresenta retardo mental grave e não possui discernimento para gerir a própria vida, nem para tomar quaisquer decisões, deve-se ampliar a curatela para os atos de natureza pessoal, pois a sua limitação a aspectos exclusivamente patrimoniais não assegura a proteção integral aos seus direitos. Precedentes. 4. Recurso conhecido e provido.(TJDF 07141942220198070003 DF 0714194-22.2019.8.07.0003, Relator: Diaulas Costa Ribeiro , Data de Julgamento: 08/10/2020, 8ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe : 23/10/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Segue abaixo colacionado inteiro teor do acórdão:
Poder Judiciário da União
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITÓRIOS
Órgão 8ª Turma Cível
Processo N. APELAÇÃO CÍVEL 0714194-22.2019.8.07.0003
APELANTE (S) MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS
APELADO (S)
Relator Desembargador DIAULAS COSTA RIBEIRO
Acórdão Nº 1291855
EMENTA
APELAÇÃO. INTERDIÇÃO. CURATELA. LIMITES. ESTATUTO DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CÓDIGO CIVIL. PROTEÇÃO INTEGRAL. AMPLIAÇÃO. CURATELA PLENA. POSSIBILIDADE.
1. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015, deve ser interpretado sistematicamente com o Código Civil e a Constituição Federal para assegurar às pessoas com deficiência um sistema de proteção integral de acordo com as suas necessidades e em prol de sua dignidade.
2. O Juiz deve fixar os limites da curatela de acordo com o estado e o desenvolvimento mental do interdito (CPC, art. 755, I).
3. Comprovado que o curatelado apresenta retardo mental grave e não possui discernimento para gerir a própria vida, nem para tomar quaisquer decisões, deve-se ampliar a curatela para os atos de natureza pessoal, pois a sua limitação a aspectos exclusivamente patrimoniais não assegura a proteção integral aos seus direitos. Precedentes.
4. Recurso conhecido e provido.
Acordam os Senhores Desembargadores do (a) 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, DIAULAS COSTA RIBEIRO - Relator, ROBSON TEIXEIRA DE FREITAS - 1º Vogal e MARIO-ZAM BELMIRO - 2º Vogal, sob a Presidência do Senhor
Desembargador ROBSON TEIXEIRA DE FREITAS, em proferir a seguinte decisão: RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. UNÂNIME., de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 08 de Outubro de 2020
Desembargador DIAULAS COSTA RIBEIRO
Relator
RELATÓRIO
1. Apelação cível interposta pelo Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios contra a sentença da 2ª Vara Família e de Órfãos e Sucessões de Ceilândia que, em ação de interdição proposta por (...) (a autora) em desfavor de (...) (o réu), julgou os pedidos iniciais parcialmente procedentes para decretar a incapacidade relativa do réu para a prática dos atos de natureza patrimonial e negocial e nomear a autora como sua curadora com poderes de representação em alguns órgãos e instituições públicos e privados (ID nº 18148254).
2. Diante da sucumbência, o réu foi condenado a pagar as custas processuais e os honorários advocatícios, estes fixados em R$ 1.000,00 (CPC, art. 85, § 2º). A exigibilidade da verba foi suspensa ante o deferimento da gratuidade de justiça.
3. Nas razões (ID nº 18148258), o Ministério Público sustenta, em suma, que a sentença desconsiderou que o interditando apresenta comprometimento intelectual grave, “com prejuízo do discernimento para a realização de atividades de regência de sua pessoa”, como atestou a perícia psiquiátrica.
.4. Afirma que, apesar de o curatelado ser apenas relativamente incapaz do ponto de vista estritamente jurídico, não possui discernimento para expressar sua vontade, razão pela qual a curatela deve ocorrer de forma plena, e não limitada à prática de atos de natureza patrimonial e negocial.
5. Argumenta que embora a Lei nº 13.146/2015 tenha alterado o instituto jurídico da incapacidade, ela deve ser interpretada conforme a Constituição Federal para tutelar adequadamente as pessoas em situação de “incapacidade absoluta de fato”, como o réu.
6. Defende que “em que pese o eufemismo terminológico do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é necessário conferir grau de proteção adequado ao caso concreto” para que a representação do curatelado seja proporcional às suas necessidades, como estabelece o art. 84, § 3º do referido diploma legal.
7. Acrescenta que o art. 723, parágrafo único do CPC autoriza o Magistrado a afastar-se do critério de legalidade estrita, assim como o art. 755, I do mesmo diploma legal possibilita ao Juiz “fixar os limites da curatela segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito”.
9. Preparo dispensado (CPC, art. 1.007, § 1º).
10. A autora informou o desinteresse em apresentar contrarrazões “tendo em vista que a apelação interposta pelo Ministério Público coaduna com os interesses da requerente” (ID nº 18148261).
11. Contrarrazões apresentadas pelo réu (ID nº 18148264).
12. O Ministério Público, em parecer elaborado pela Dra. Olinda Elizabeth Cestari Gonçalves, Exma. Sra. Procuradora de Justiça, manifestou-se pelo conhecimento e provimento do recurso (ID nº
18323805).
13. Cumpre-me decidir.
VOTOS
O Senhor Desembargador DIAULAS COSTA RIBEIRO - Relator
14. Conheço e recebo o recurso apenas no efeito devolutivo (CPC, arts. 1.012, § 1º, VI e 1.013).
15. A controvérsia recursal limita-se a aferir se é possível ampliar a curatela para alcançar, também, os atos de natureza pessoal.
16. O Juiz deve fixar os limites da curatela de acordo com o estado e o desenvolvimento mental do
17. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), uma norma com inúmeros equívocos jurídicos, mas vigente, promoveu grandes alterações que tiveram reflexos na legislação civil,
especialmente nos institutos relacionados à incapacidade civil.
18. Além de restringir a incapacidade absoluta aos menores de 16 anos (CC, arts. 3º e 4º), estabeleceu que a curatela constitui medida protetiva extraordinária e limita-se apenas aos atos de natureza patrimonial e negocial, não afetando os aspectos existenciais referentes à vida, sexualidade, matrimônio, educação, saúde, voto, trabalho, dentre outros (arts. 84, § 3º e 85, caput e § 1º).
19. Apesar dessas restrições, a Lei nº 13.146/2015 deve ser interpretada sistematicamente com o Código Civil e a Constituição Federal para assegurar às pessoas com deficiência um sistema de proteção integral de acordo com as suas necessidades e em prol de sua dignidade.
20. Precedente: Acórdão 1250246, 00046483720178070008, Relator: Getúlio De Moraes Oliveira, 7ª Turma Cível, publicado no PJe: 18/6/2020.
21. O relatório médico de ID nº 18147208 (pág. 9) informa que o réu, atualmente com 19 anos, apresenta quadro compatível com Transtorno Global do Desenvolvimento (CID-10: F84).
23. Ao responder os quesitos, a perita informou que o réu não possui discernimento para entender sobre o seu estado de saúde, seu tratamento, nem para entender adequadamente o significado de casamento (quesitos 3º a 5º).
24. Também esclareceu que a deficiência é permanente, impede o réu de exprimir sua vontade de forma plena e que há restrições em sua capacidade de gerir sua pessoa, administrar seus e bens e praticar todos os atos da vida civil, com “prejuízo do discernimento para tomada de decisão, de modo permanente” (quesitos nº 1 a 4).
25. Especificamente sobre a existência de “discernimento para decidir a respeito de direitos referentes ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação e ao trabalho” e para exercitar livremente seu direito de voto a expert respondeu que “não” (quesitos nº 9 e 10).
26. A conclusão da perícia foi corroborada pela dificuldade do réu em responder adequadamente aos questionamentos formulados na audiência de entrevista, como nome da mãe e onde estuda (ID nº 18148230), e pela certidão do oficial de Justiça, que certificou (ID nº 18148226):
“Certifico que [...] INTIMEI (...), na pessoa de sua mãe (...), de todo o teor da ordem, e esta exarou seu ciente e recebeu sua cópia. Assim procedi, pois o intimando não tem capacidade nenhuma para receber o ato e menos ainda para compreendê-lo. O intimando é um jovem, com características de uma criança pequena, mal fala e
parece mal compreender o que lhe é falado, e ao perceber minha chegada, se aproximou da mãe numa atitude imediata de busca por proteção. Depois de uns minutos no qual eu estava no ambiente e comecei a falar sobre futebol, pois ele estava em frente a televisão assistido à uma partida, ele veio até mim com um bonequinho do Chaves, me "chamando" para brincar. O comportamento irrequieto e de recorrer sempre à mãe a todo o tempo com gestos, e a ausência de palavra inteligíveis muito lembram o comportamento do meu bebê de um ano e cinco meses (essa é a comparação psicológica que consigo descrever com minhas palavras, de "não" perita na área). O intimando também apresenta dificuldade motora, com comprometimento das duas pernas e pés, que possuem alterações anatômicas visíveis”.
27. Ante a comprovação de que o réu depende da ajuda de sua mãe, a autora, para praticar quaisquer atos da vida civil, inclusive cuidados diários com seu corpo e saúde, e não possui discernimento para a tomada de qualquer decisão, seja na esfera patrimonial ou pessoal, a curatela não pode ficar restrita a aspectos exclusivamente patrimoniais e negociais.
28. Precedente: Acórdão 1247291, 07085520520188070003, Relator: Robson Teixeira de Freitas, 8ª
Turma Cível, publicado no PJe: 14/5/2020;
29. A manifestação da Procuradoria de Justiça foi no mesmo sentido (ID nº 18323805):
“No caso, as provas produzidas dão conta que o quadro delineado evidencia que (...) não possui a mínima condição de externar sua vontade, necessitando do auxílio de familiares para reger sua pessoa, de acompanhamento e supervisão para os atos da vida diária, inclusive para decisões que envolvam sua saúde e casamento, razão pela qual deve a curatela abranger, não apenas os atos negociais e patrimoniais, mas também àqueles referentes à sua pessoa”.
30. A sentença deve ser parcialmente ajustada.
Dispositivo
32. Conheço o recurso e dou-lhe provimento para reformar em parte a sentença e ampliar a curatela para os atos de natureza pessoal.
33. No mais, confirmo a sentença.
34. Sem honorários recursais tendo em vista que o recurso foi interposto pelo Ministério Público e não pelas partes.
35. É o voto.
O Senhor Desembargador ROBSON TEIXEIRA DE FREITAS - 1º Vogal
Com o relator
O Senhor Desembargador MARIO-ZAM BELMIRO - 2º Vogal
Com o relator
DECISÃO
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. UNÂNIME.