Jurisprudência TJMG - Pessoa com deficiência. Sequelas de acidente vascular cerebral. Limites da curatela. Atos patrimoniais e negociais
sexta-feira, 06 de novembro de 2020, 15h18
EMENTA: APELAÇÃO - DIREITO DE FAMÍLIA - CURATELA - PESSOA COM DEFICIÊNCIA - SEQUELAS DE ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL - NOVO REGIME INSTITUÍDO PELA LEI 13.146/2015 - ART. 1.767, I, DO CC/02 - EXPRESSÃO DA VONTADE COMPROMETIDA - CONSTATAÇÃO - RESTRIÇÃO DA CURATELA - ATOS PATRIMONIAIS E NEGOCIAIS - RECURSO PROVIDO. - A Lei n. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) consolidou os princípios preconizados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, da ONU, revelando-se um marco regulatório e consolidativo dos direitos das pessoas com deficiência e rompendo com o paradigma da incapacidade, até então, vigente no ordenamento jurídico brasileiro - O instituto da curatela deverá ser adotado de maneira excepcional, somente nas hipóteses em que não for possível a expressão da vontade, aplicando-se o regime da incapacidade relativa; e restrita à prática de atos patrimoniais e negociais, de maneira a preservar, na medida do possível, a autodeterminação para a condução das situações existenciais.(TJMG - AC: 10000204611149001 MG, Relator: Carlos Levenhagen, Data de Julgamento: 29/10/2020, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 04/11/2020).
Segue abaixo colacionado inteiro teor do acórdão:
EMENTA: APELAÇÃO - DIREITO DE FAMÍLIA - CURATELA - PESSOA COM DEFICIÊNCIA - SEQUELAS DE ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL - NOVO REGIME INSTITUÍDO PELA LEI 13.146/2015 - ART. 1.767, I, DO CC/02 - EXPRESSÃO DA VONTADE COMPROMETIDA - CONSTATAÇÃO - RESTRIÇÃO DA CURATELA - ATOS PATRIMONIAIS E NEGOCIAIS - RECURSO PROVIDO.
- A Lei n. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) consolidou os princípios preconizados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, da ONU, revelando-se um marco regulatório e consolidativo dos direitos das pessoas com deficiência e rompendo com o paradigma da incapacidade, até então, vigente no ordenamento jurídico brasileiro.
- O instituto da curatela deverá ser adotado de maneira excepcional, somente nas hipóteses em que não for possível a expressão da vontade, aplicando-se o regime da incapacidade relativa; e restrita à prática de atos patrimoniais e negociais, de maneira a preservar, na medida do possível, a autodeterminação para a condução das situações existenciais.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0000.20.461114-9/001 - COMARCA DE UBERLÂNDIA -
APELANTE (S):
APELADO (A)(S):
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 5ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em DAR PROVIMENTO AO RECURSO.
DESEMBARGADOR CARLOS LEVENHAGEN
RELATOR.
DESEMBARGADOR CARLOS LEVENHAGEN (RELATOR)
V O T O
Trata-se de RECURSO DE APELAÇÃO interposto por (...), representada pela DPMG, contra sentença proferida pela magistrada Maria Elisa Taglialegna (doc. 82) que, nos autos da AÇÃO DE INTERDIÇÃO proposta por (...), julgou procedente o pedido para, reconhecendo a incapacidade absoluta da interditanda, decretar a sua interdição, declarando-a incapaz de exercer pessoalmente todos os atos da vida civil, nomeando como seu curador o requerente.
Em suas razões recursais, a apelante aduz não haver que se falar em incapacidade absoluta no caso em tela. Argumenta que "a interdição, que tradicionalmente implicava na declaração de incapacidade e, consequentemente, na nomeação de curador para representar o interditando em todos os atos de sua vida civil, não mais se aplica aos deficientes, seja de que natureza for esta deficiência" Assim, a reforma da sentença é de rigor, "pois decidiu pela incapacidade absoluta da Apelante, em TODOS OS ATOS DA VIDA CIVIL, contrariando o que a novel legislação preceitua, bem como a prova constante dos presentes autos, quando, na verdade deveria ter reconhecido a incapacidade relativa e poderes ao curador especial tão somente para a assistência da curatelanda" (doc. 86).
Contrarrazões, pugnando pelo provimento do recurso para afirmar o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nos termos da Arguição de Inconstitucionalidade 1.0000.17.034419-6/002, e declarar a incapacidade relativa da apelante, devendo ser representada pelo autor, ora apelado (doc. 89).
Manifestação da d. Procuradoria-Geral de Justiça pelo provimento do recurso (doc. 91).
É o relatório.
Conheço do recurso, porquanto atendidos os pressupostos que regem sua admissibilidade.
Razão assiste à apelante, data venia.
Como cediço, a declaração de "interdição" sempre foi compreendida como medida extrema, que possui como efeito o reconhecimento da incapacidade do "interditado" para a realização dos atos da vida civil, sendo nomeado, assim, um curador.
Sobre o tema, a orientação deste Tribunal de Justiça:
"APELAÇÃO CÍVEL - INTERDIÇÃO - FALTA DE PROVA DA INCAPACIDADE MENTAL DO INTERDITANDO PARA O EXERCÍCIO DOS ATOS DA VIDA CIVIL - CURATELA - DESNECESSIDADE DA MEDIDA - LEI 13.146/15. 1 - Em das gravíssimas conseqüências para o interditando e para terceiros, o deferimento da interdição exige prova da incapacidade mental do interditando; 2 - Quando a prova pericial atestar a capacidade do interditando para gerir os atos da vida civil, porque não sofre de qualquer patologia que afete o seu juízo e discernimento, deve ser confirma a improcedência do pedido de interdição." (TJMG - Apelação Cível 1.0431.12.001072-0/001, Relator (a): Des.(a) Renato Dresch, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 16/02/2017, publicação da sumula em 21/02/2017)
"APELAÇÃO CÍVEL. CURATELA. INTERDIÇÃO. REQUISITOS ESSENCIAIS AUSENTES. INCAPACIDADE DO INTERDITANDO APENAS PARA A VIDA LABORATIVA. DEPRESSÃO ANSIOSA PASSÍVEL DE TRATAMENTO E RECUPERAÇÃO. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. A incapacidade laborativa não implica, necessariamente, a perda da capacidade para gerir sua pessoa e bens. Uma vez consagrado como regra a capacidade das pessoas para serem titulares de direitos e obrigações (art. 1º, CCB/02), a interdição, medida excepcional e extrema, somente será imposta se efetivamente demonstrada a incapacidade do indivíduo reger os atos da vida civil." (Apelação Cível nº 1.0701.05.099.847-7/001, relator o Desembargador Célio César Paduani, DJ de 09/02/07)
Com o advento da Lei n. 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com eficiência), que se destinou, nos termos de seu art. 1º, a "assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, objetivando a sua inclusão social e cidadania", deve o presente caso se submeter ao novo regramento conferido ao regime de incapacidades e ao instituto da curatela, e não mais da interdição, in verbis:
"Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
(...)
§ 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§ 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. (Lei n. 13.146/2015)."
E ainda:
"Art. 4º. São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
(...)
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. (Código Civil de 2002)"
Neste aspecto, o referido regramento consolidou os princípios preconizados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, da ONU, revelando-se um marco regulatório e consolidativo dos direitos das pessoas com deficiência. Assim, o parâmetro utilizado pela recente legislação passou a ser o ambiente em que a pessoa com deficiência está inserida, de maneira que a limitação funcional do indivíduo, por si só, não mais restringe o exercício de seus direitos.
Relevam-se enriquecedores os comentários à Lei n. 13.146, por ANNA PAULA FEMINELLA e LAÍS DE FIGUEIRÊDO LOPES:
"O modelo social propõe uma conceituação mais justa e adequada sobre as pessoas com deficiência, reconhecendo-as como titulares de direitos e dignidade humana inerentes, exigindo um papel ativo do Estado, da sociedade, e das próprias pessoas com deficiência. Tem como fundamento filosófico o princípio da isonomia ou da igualdade, que reconhece o ser humano como sujeito de direitos iguais perante a lei, tanto do ponto de vista formal, quanto material. Nessa perspectiva, afirma-se que a deficiência em si não" incapacita "o indivíduo e sim a associação de uma característica do corpo humano com o ambiente inserido. É a própria sociedade que tira a capacidade do ser humano com suas barreiras e obstáculos, ou com a ausência de apoios. Para garantir a concretização dos direitos das pessoas com deficiência é preciso reconhecer sua identidade própria e prover os recursos necessários para possibilitar sua plena e efetiva participação na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. Nessa esteira, a sociedade é corresponsável pela inclusão das pessoas com deficiência. O modelo social destaca o impacto do ambiente na vida da pessoa com deficiência e que as barreiras arquitetônicas, de comunicação e atitudinais existentes devem ser removidas para possibilitar a inclusão das pessoas com deficiência, e novas devem ser evitadas ou impedidas, com o intuito de deixar de gerar exclusão. A LBI trouxe um conceito muito semelhante ao positivado na Convenção, em seu artigo segundo, trazendo para a aplicação prática a ideia de que a avaliação da deficiência pode ser desnecessária. Será biopsicossocial sempre que for relevante para definir o universo de beneficiários dos direitos garantidos, ou seja, deverá agregar à análise médica, o olhar social, do entorno, para fins de avaliação de deficiência, a partir de equipe multidisciplinar. Em até dois anos da entrada em vigor da LBI esses mecanismos deverão ser criados pelo Poder Executivo Federal." (FUNDAÇÃO FEAC. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Comentada. Org. Joyce Marquezin Setubal e Regiane Alves Costa Fayan. Campinas: 2016. Disponível em: < http://www.feac.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Lei-brasileira-de-inclusao-comentada-baixa-min-2.pdf > Acesso em 06/11/2017 - g.n.).
O Estatuto da Pessoa com Deficiência pretende, portanto, estabelecer aos indivíduos com deficiência condições de verdadeira igualdade em face dos demais cidadãos, rompendo com o paradigma da incapacidade até então vigente no ordenamento jurídico brasileiro.
A propósito:
"Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas."(Lei n. 13.146 de 6 de julho de 2015.)
Sobre o tema, leciona NELSON ROSENVALD:
"A CDPD é o primeiro tratado de consenso universal que concretamente especifica os direitos das pessoas com deficiência pelo viés dos direitos humanos, adotando um modelo social de deficiência que importa em um giro transcendente na sua condição. Por esse modelo, a deficiência não pode se justificar pelas limitações pessoais decorrentes de uma patologia. Redireciona-se o problema para o cenário social, que gera entraves, exclui e discrimina, sendo necessária uma estratégia social que promova o pleno desenvolvimento da pessoa com deficiência. O objetivo da CDPD é o de permutar o atual modelo médico - que deseja reabilitar a pessoa anormal para se adequar à sociedade -, por um modelo social de direito humanos, cujo desiderato é o de reabilitar a sociedade para eliminar os muros de exclusão comunitária. A igualdade no exercício da capacidade jurídica requer o direito à uma educação inclusiva, a vida independente e a possibilidade de ser inserido em comunidade. Por tais razões, reconhece o Preâmbulo da CDPD:"a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas"." (Estatuto da pessoa com deficiência: Perguntas e respostas. Disponível em: < http://genjuridico.com.br/2015/10/05/em-11- perguntaserespostas-tudo-que-voce-precisa-para-conheceroestatuto-dapessoa-com-deficiencia/ >. Acesso em 06/11/2017).
Neste aspecto, considerando a amplitude das possibilidades de deficiências mentais ou físicas, revela-se inviável e ineficaz a tentativa de homogeneizá-las através da dualidade dos institutos de incapacidade absoluta ou relativa, de maneira a categorizar todos os indivíduos portadores de deficiência, intrinsecamente distintos entre si, numa só situação jurídica. O Estatuto da Pessoa com Deficiência buscou, portanto, descontruir a percepção da deficiência como determinante da incapacidade cível, retirando da esfera jurídica incumbência que nem mesmo a ciência médica é capaz de desempenhar.
Excepcionalmente, o Estatuto previu a possibilidade de se submeter a pessoa com deficiência à curatela, devendo constituir, contudo, medida protetiva extraordinária e proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, com a menor duração possível (art. 84). Determinou, ainda, que o instituto afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, sem alcançar o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (art. 85).
Desse modo, o art. 1.767, do Código Civil de 2002, foi alterado, passando a prever, como sujeitos a curatela, apenas aqueles que não podem, por causa transitória ou permanente, exprimir sua vontade.
A saber:
"Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela:
I - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
II - (Revogado);
III - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
IV - (Revogado);
V - os pródigos."
A incapacidade jurídica e a deficiência, portanto, não são mais compreendidas de maneira correlata, de forma que o indivíduo deficiente, desde que possa manifestar sua vontade, será considerado plenamente capaz e, quando excepcionalmente submetido ao regime de curatela, relativamente incapaz.
Conclui-se, assim, que o legislador optou por desconstituir o sistema de regras estáticas vigente até então, devendo o instituto da curatela ser aplicado conforme os contornos de cada caso concreto, analisando, de maneira específica, os limites do indivíduo portador de deficiência e, para tanto, exigindo instrução probatória ampla e conclusiva.
Desse modo, a deficiência deixou de ser compreendida como um fator limitante da capacidade de exercício dos atos da vida cível, sendo tal ônus transferido ao Estado, que deverá garantir os meios necessários para que esses indivíduos não tenham seus direitos e deveres inviabilizados.
Nesse aspecto, também se revela esclarecedor o ensinamento de NELSON ROSENVALD:
"O Estatuto da Pessoa com Deficiência admite em caráter excepcional o modelo jurídico da curatela, porém, sem associá-la à incapacidade absoluta. A Lei 13.146/2015 nos remete a dois modelos jurídicos de deficiência: deficiência sem curatela e deficiência qualificada pela curatela. A deficiência como gênero engloba todas as pessoas que possuam uma menos valia na capacidade física, psíquica ou sensorial - independente de sua gradação -, sendo bastante uma especial dificuldade para satisfazer as necessidades normais. O deficiente desfruta plenamente dos direitos civis, patrimoniais e existenciais. Porém, se a deficiência se qualifica pelo fato da pessoa não conseguir se autodeterminar, o ordenamento lhe conferirá proteção ainda mais densa do que aquela deferida a um deficiente capaz, demandando o devido processo legal.
(...)
Equivocam-se os que creem que a partir da vigência do Estatuto todas as pessoas que forem curateladas serão consideradas plenamente capazes. Dispõe o art. 6º que" A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa ". Com efeito, a deficiência é um impedimento duradouro físico, mental ou sensorial que não induz, em princípio, a qualquer forma de incapacidade, apenas a uma vulnerabilidade, pois a garantia de igualdade reconhece uma presunção geral de plena capacidade a favor das pessoas com deficiência. Excepcionalmente, através de relevante inversão da carga probatória, a incapacidade surgirá, se amplamente justificada. Por conseguinte, a Lei 13.146/2015 mitiga, mas não aniquila a teoria das incapacidades do Código Civil. As pessoas deficientes submetidas à curatela são removidas do rol dos absolutamente incapazes do Código Civil e enviadas para o catálogo dos relativamente incapazes, com uma renovada terminologia. A nova redação do inciso III, do art. 4 (Lei 13.146/2015) remete aos confins da incapacidade relativa" aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade ". Aqui se revela a intervenção qualitativamente diversa do Estatuto da Pessoa com Deficiência na teoria das incapacidades: Abole-se a perspectiva médica e assistencialista de rotular como incapaz aquele que ostenta uma insuficiência psíquica ou intelectual. Corretamente o legislador optou por localizar a incapacidade no conjunto de circunstâncias que evidenciem a impossibilidade real e duradoura da pessoa querer e entender - e que portanto justifiquem a curatela-, sem que o ser humano, em toda a sua complexidade, seja reduzido ao âmbito clínico de um impedimento psíquico ou intelectual. Ou seja, o divisor de águas da capacidade para a incapacidade não mais reside nas características da pessoa, mas no fato de se encontrar em uma situação que as impeça, por qualquer motivo, de conformar ou expressar a sua vontade. Prevalece o critério da impossibilidade de o cidadão maior tomar decisões de forma esclarecida e autônoma sobre a sua pessoa ou bens ou de adequadamente as exprimir ou lhes dar execução.
(...)
O Estatuto da Pessoa com Deficiência não eliminou a teoria das incapacidades, porém, adequou à Constituição Federal e a CDPD. Tratando-se a incapacidade de uma sanção normativa excepcionalíssima, que afeta o estado da pessoa a ponto de restringir o exercício autônomo de direitos fundamentais, o que corretamente a Lei 13.146/2015 impôs foi a necessidade da mais ampla proteção ao direito fundamental à capacidade civil. Resumidamente: a) haverá intenso ônus argumentativo por parte de quem pretenda submeter uma pessoa à curatela em razão de uma causa permanente; b) sendo ela curatelada, a incapacidade será apenas relativa, pois a incapacidade absoluta fere a regra da proporcionalidade; c) a curatela, em regra, será limitada à restrição da prática de atos patrimoniais, preservando-se, na medida do possível a autodeterminação para a condução das situações existenciais. (Estatuto da pessoa com deficiência: Perguntas e respostas. Disponível em: < http://genjuridico.com.br/2015/10/05/em-11- perguntaserespostas-tudo-que-voce-precisa-para-conheceroestatuto-dapessoa-com-deficiencia/ >. Acesso em 06/11/2017)
No caso específico dos autos, constata-se que a curatelada apresenta sequelas de acidente vascular cerebral e, por ocasião da inspeção judicial realizada," não soube responder a nenhuma pergunta, pois apenas repetia a palavra "tanto" e fazia gestos, o que demonstra que entendia as perguntas".
No Termo carreado à ordem 51, a d. magistrada registra que a curatelada" demonstrou ter entendimento da realidade que a cercava "e que o requerente informou que a requerida"apresenta evolução em seu quadro, e atualmente está consciente de tudo, tendo dificuldade apenas em se expressar. Informou que ela joga domino e bingo e consegue informar quando quer dormir ou trocar a fralda"
Por sua vez, a perícia judicial constatou a total incapacidade da interditanda e, em resposta ao quesito nove, afirmou que a paciente possui condições de discernir ou entender apenas sobre situações simples, concretas e objetivas da vida cotidiana (doc. 76).
É preciso pontuar, contudo, que, conforme discorrido, a nova legislação estabelece que, nesses casos, o regime a ser aplicado deve ser o de incapacidade relativa, devendo a curatela restringir-se à prática de atos patrimoniais, de maneira a preservar, na medida do possível, a autodeterminação para a condução das situações existenciais.
Merece reforma parcial, portanto, a r. sentença, que, além da representação nos atos negociais e patrimoniais, determinou também a extensão da curatela para os atos existenciais, de maneira ampla e irrestrita, dando cumprimento, assim, a letra do art. 85 e §§ do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Por fim, esclareço que a decisão que decreta a curatela e seus limites é meramente declaratória e não faz coisa julgada. Nesse sentido, segundo dispõe o art. 756, do CPC,"levantar-se-á a curatela quando cessar a causa que a determinou".
Com estas considerações, DOU PROVIMENTO AO RECURSO, apenas para restringir a curatela aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
Sem honorários, diante da atuação da Defensoria Pública como curadora especial.
Custas, ex lege.
DESA. ÁUREA BRASIL - De acordo com o (a) Relator (a).
DES. MOACYR LOBATO - De acordo com o (a) Relator (a).
SÚMULA:"DERAM PROVIMENTO AO RECURSO"