TJRN: Município do Natal deve abrigar jovem com deficiência mental em unidade adequada à sua condição
quinta-feira, 01 de abril de 2021, 16h04
Postado em 19 de Abril de 2021 - 15:17 - Lida 35 vezes
Em caso de descumprimento da decisão, o município terá que pagar multa diária de R$ 200,00 (duzentos reais), até o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Fonte: TJRN
SENTENÇA
AUTOS Nº 0849151-38.2019.8.20.5001
NATUREZA DO FEITO: AÇÃO ORDINÁRIA
PROMOVENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE. DO NORTE.
PROMOVIDO: MUNICÍPIO DO NATAL.
ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL. DIREITO À SAÚDE. ART. 196, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. PROTEÇÃO INSTITUCIONAL. DIREITO À MORADIA. . ABRIGO EM RESIDÊNCIA TERAPÊUTICA OU INCLUSIVA. LEI 10.216/2001. EXTREMA VULNERABILIDADE SOCIAL. COMPLETA INCAPACIDADE DE EXPRESSÃO DA VONTADE E PRÁTICA DOS ATOS DA VIDA CIVIL ATESTADA POR MÉDICOS. NÚCLEO FAMILIAR INEXISTENTE. INTERNAÇÃO EM LEITO EMERGENCIAL POR LONGO PRAZO. NECESSIDADE DE INCLUSÃO NA REDE MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E SAÚDE MENTAL. ART. 8º, DA LEI Nº 13.146/2015. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. EXTINÇÃO DO PROCESSO COM RESOLUÇÃO DE MÉRITO.
Vistos.
Trata-se de ação ordinária com pedido de tutela de urgência movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, em face do MUNICÍPIO DO NATAL/RN, ambos qualificados regularmente, em que se requer a condenação da parte demandada na obrigação de fazer consistente em viabilizar o acolhimento da pessoa com deficiência L. M., em instituição adequada à sua condição físca e pessoal, no Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos em Residência Terapêutica ou outra instituição adequada, com custos arcados pelo Município.
Narra a petição inicial, em suma, que: (a) foi instaurando procedimento administrativo com o escopo de apurar reclamação advinda do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Oeste, de que o jovem L. M., com deficiência e transtorno mental, estaria em situação de risco; (b) o aludido possui retardo mental leve, enfermidade classificada sob o CID 10 F. 70, decorrente de esquizofrenia (CID 10 F20.0) e é completamente incapaz de exprimir sua vontade e praticar atos da vida civil; (c) o núcleo familiar de L. M. era composto apenas por ele e sua mãe, sendo que esta faleceu em fevereiro de 2019 e o jovem ficou desamparado e sem familiares no Estado; (d) como medida emergencial, L. M. foi instalado em uma vaga temporária no CAPS III, todavia, necessita de acolhimento num dos serviços da rede de assistência social; (e) em diligências extrajudiciais, a Secretaria Municipal de Assistência Social negou o abrigamento em Residência Inclusiva e a Secretaria Municipal de Saúde informou não existir vagas em Residência Terapêutica e que o paciente não se enquadraria nos parâmetros dos usuários; e (f) o jovem permanece em situação de vulnerabilidade social e ocupando, de modo emergencial, leito no CAPS III.
Acostou documentos.
Deferida a tutela provisória de urgência para determinar ao MUNICÍPIO DO NATAL/RN o acolhimento institucional de L. M. (ID 50006652).
O MUNICÍPIO DO NATAL/RN não apresentou contestação e encaminhou ofício com as informações prestadas pelo Departamento de Atenção Especializada (DAE), no qual verifica-se que L. M. continua, de forma irregular, no CAPS III Leste (ID 53273274) e foi determinado o cumprimento da decisão, sob pena de multa (ID 53303135).
É o relatório.
DECIDO:
O feito comporta julgamento no estado em que se encontra, sendo cabível o julgamento antecipado da lide, nos termos do art. 355, inciso I, do Código de Processo Civil, considerando que, nos termos do art. 434, do mencionado Diploma, toda prova documental deve ser acostada à petição inicial e/ou contestação e, no caso vertente, é desnecessária a produção de prova testemunhal, pericial ou inspeção judicial.
De início, decreto a revelia do Município do Natal/RN, tendo em vista que o ente foi citado e não apresentou contestação no prazo legal. Saliente-se, no entanto, que devem ser aplicados apenas os efeitos formais e, não, materiais, em face do interesse indisponível de interesse público.
No mérito, a pretensão autoral merece prosperar.
O art. 196, da Constituição da República de 1988, embora de caráter programático, é claro ao dispor que a saúde é direito de todos e dever do Estado, sendo garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, assegurando-se o atendimento integral, nos termos do art. 198, II do diploma constitucional, de forma que é dever do Poder Público propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde pelos cidadãos.
Ressalte-se que o direito à saúde é corolário ao direito à vida, previsto no art. 5°, caput, da Constituição da República, e por meio de sua proteção, concretiza-se o princípio da dignidade da pessoa humana, cuja importância recebeu especial atenção do constituinte original, sendo elencado no art. 1°, do diploma constitucional, dado o seu caráter de fundamentalidade.
Por evidente, tendo em vista que o Poder Constituinte Originário no art. 196 da Constituição da República se refere ao Estado, não como ente federativo, mas sim como o Poder Público, é entendimento pacífico dos Tribunais Superiores que há responsabilidade solidária de todos os integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS), composto pela União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, na efetivação e concretização do direito à saúde.
O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, sendo responsabilidade solidária dos entes federados, podendo figurar no polo passivo qualquer um deles em conjunto ou isoladamente (In. RE 855178 RG/SE, Tribunal Pleno, Rel. Min. LUIZ FUX, j. 05/03/2015).
Por outro lado, os arts. 8º e 31, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, prevê que é “dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.” (grifos acrescidos)
A proteção dos direitos à saúde, moradia, família, alimentação — primordiais para a sociedade e para o próprio Poder Público – devem ser assegurados, sendo obrigação do Município de Natal o acolhimento institucional do substituído processual.
A Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que representa o marco da reforma psiquiátrica no Brasil, e dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental, assim prevê sobre a responsabilidade estatal no desenvolvimento da política de saúde mental e assistência a pessoas com transtornos mentais:
Art. 3º É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.
Art. 5º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.
Consigne-se que, na linha da novo paradigma de tratamento psiquiátrico instituído por este diploma, a internação só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, devendo o tratamento em regime de internação ser estruturado de forma a reinserir o paciente em seu meio, e oferecer assistência integral à pessoa com transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer etc, a teor dos art. 4º da lei retromencionada.
No caso dos autos, restou demonstrado que L. M. foi diagnosticado com retardo mental leve, enfermidade classificada sob o CID 10 F. 70, decorrente de esquizofrenia (CID 10 F20.0) e é completamente incapaz de exprimir sua vontade e praticar atos da vida civil (ID 49978401). Além disso, o jovem contava com os cuidados exclusivos de sua genitora, considerando a ausência de notícias sobre outros membros do grupo familiar, e passou à condição de vulnerabilidade social com o falecimento desta, ocupando por prazo indefinido leito emergencial de um dos Centros de Atenção Psicossocial do Município do Natal, devendo ser acolhido no serviço de proteção adequado, garantindo-lhe moradia e os atendimentos médicos necessários.
Considerando a situação de extrema vulnerabilidade social de L. M. decorrente da (i) necessidade de cuidados médicos; (ii) completa incapacidade de exprimir sua vontade e praticar atos da vida civil; e (iii) ausência de familiares, conclui-se que o seu acolhimento na rede de serviços de saúde mental do Município de Natal é medida que se impõe.
DISPOSITIVO:
POSTO ISSO, e por tudo mais que dos autos consta, julgo por sentença, para que produza seus jurídicos e legais efeitos, PROCEDENTES os pedidos formulados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO em ação ajuizada em desfavor do MUNICÍPIO DO NATAL/RN, para, confirmando a decisão de deferimento da tutela de urgência (ID 50006652), DETERMINAR ao MUNICÍPIO DO NATAL/RN que viabilize, no prazo máximo de 10 (dez) dias, o acolhimento institucional da pessoa com deficiência L. M., devendo o local específico se tratar de instituição adequada à sua condição física e pessoal, seja pública, filantrópica ou privada com fins lucrativos, sendo escolhido a critério da Municipalidade, custeando-se eventuais despesas necessárias para manutenção.
Transcorrido o prazo e não se demonstrando o cumprimento obrigacional, FIXO, desde logo, multa diária no valor de R$ 200,00 (duzentos reais), até o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a ser paga pessoalmente pelos Secretários de Saúde e do Trabalho e Assistência Social do Município do Natal/RN, bem como a qualquer agente público que tem o dever atender à determinação judicial, mas permanecer inerte considerando lapso temporal transcorrido, a ser revertida em favor do Fundo Municipal da Pessoa com Deficiência, respeitado o contraditório e a ampla defesa.
Custas na forma da lei. Sem condenação em honorários advocatícios.
Sentença sujeita à remessa necessária
No caso de interposição de recurso, intime-se a parte recorrida para apresentar contrarrazões no prazo legal e, em seguida, independentemente de juízo de admissibilidade (art. 1.010, § 3], do Código de Processo Civil), certifique-se acerca da tempestividade do recurso e remetam-se os autos ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.
Intimem-se, pessoalmente os Secretários de Saúde e do Trabalho e Assistência Social do Município do Natal/RN, para que comprovem o cumprimento da obrigação de fazer determinada neste feito, em até 10 (dez) dias, constando no mandado de intimação a advertência de que o descumprimento da decisão é ato atentatório a dignidade da justiça que importará em multa a incidir pessoalmente, e também sobre qualquer servidor que criar embaraços à efetivação da decisão judicial, a contar a partir da intimação e do decurso do prazo estabelecido na decisão, sem prejuízo de adoção de outras sanções cabíveis de natureza criminal, cível ou processual, respeitado o devido processo legal.
Anotações necessárias.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Natal/RN, data registrada no sistema.
FRANCISCO SERÁPHICO DA NÓBREGA COUTINHO
Juiz de Direito
(documento assinado digitalmente na forma da Lei n°11.419/06)
FONTE: www.jornaljurid.com.br