Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Consciência Negra exige outro desenho de segurança pública

por Thaisi Bauer e Rosa Menezes - Brasil de Fato

segunda-feira, 10 de novembro de 2025, 13h09

 

 

Em ato contra o genocídio da juventude negra, manifestantes protestam pelas ruas de Madureira contra a morte de cinco jovens por PMs em 2015 - Costa Barros Tomaz Silva/Agência Brasil

 

mês da Consciência Negra foi instituído como marco de reconhecimento da centralidade da população negra na formação do país. Não é um mês de celebração, mas um convite a observar como o Estado brasileiro continua estruturando suas políticas a partir da desigualdade racial. A cada novembro, essa disputa reaparece: entre memória e presente, o país que celebra Zumbi é o mesmo que naturaliza a administração da morte, do encarceramento da juventude negra e de suas famílias. 

 

O Rio de Janeiro se consolidou como laboratório de políticas de segurança que expandem a força letal em territórios periféricos. Em 2023, o estado gastou R$ 10,1 bilhões com suas polícias — o segundo maior investimento do país, atrás apenas de São Paulo. No primeiro semestre de 2024, enquanto o país registrou queda nas mortes violentas, o Rio teve aumento de 6% e crescimento de 34,4% na letalidade policial. A política de segurança é conduzida pela lógica da guerra: a operação realizada nos complexos do Alemão e da Penha, que resultou em mais de 130 mortos, é a expressão direta dessa lógica. 

 

Essa lógica, porém, não se limita ao momento da operação policial. Ela se estende ao sistema socioeducativo. A juventude negra que sofre com incursões armadas é a mesma que compõe, majoritariamente, o perfil de adolescentes em privação de liberdade no Brasil. 

 

Os efeitos dessas trajetórias marcadas por desigualdades, violências e privações de liberdade podem ser observados na pesquisa Vidas por um Fio, produzida pelo Comitê de Prevenção e Combate à Violência da Assembleia Legislativa do Ceará, que aponta que adolescentes que cumpriram medidas socioeducativas têm alta vulnerabilidade à violência letal. Em apenas seis anos, 502 jovens que passaram pelo sistema no Ceará foram assassinados — a maioria meninos negros, com média de idade de 17 anos. O que chamamos de “ressocialização” tem, na prática, operado como continuidade do ciclo de perda de direitos e de vidas. 

 

É também nesse contexto que, enquanto vidas são retiradas nos Complexos da Penha e do Alemão e em tantos outros territórios do país, que tramita o PL 1473/2025, cuja proposta é ampliar de três para até dez anos o tempo máximo de internação. A medida contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e normas internacionais, que afirmam que a privação de liberdade deve ser excepcional e pelo menor tempo possível.

 

Ao prolongar a internação e reduzir reavaliações judiciais, o projeto aprofunda estigmas, rompe vínculos familiares e comunitários e aumenta o risco de reincidência — reforçando o mesmo ciclo que empurra esses adolescentes para a letalidade. 

 

No caso recente do Rio de Janeiro, a Coalizão pela Socioeducação, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e o Instituto de Estudos da Religião (ISER) solicitaram informações sobre a situação dos adolescentes durante e após a operação. Até agora, não houve resposta. A ausência de informação também é política: ela reduz a possibilidade de controle social e indica a baixa prioridade atribuída à garantia de direitos. 

 

A Consciência Negra, enquanto marco político, exige que observemos essas articulações. A política de segurança e o sistema socioeducativo não são esferas isoladas: compõem a mesma engrenagem de produção e gestão da desigualdade racial no Brasil. Defender a vida da juventude negra é disputar um modelo de Estado. Isso requer outro desenho de segurança pública, outra política urbana e outra compreensão sobre trabalho e educação. 

 

Lembramos ainda, na perspectiva da Marcha que está sendo construída por mulheres negras do Brasil e da diáspora, que estamos na luta por reparação e bem viver. Bem viver para toda a sociedade, sem prisões, com oportunidades, educação, lazer e cultura. Pela população e juventude negra viva! 

 

Consciência Negra, nessa perspectiva, não pode ser apenas um feriado simbólico. Deve ser direção de futuro.

 

*Thaisi Bauer é Advogada, militante, especialista em ciências penais, mestranda em educação, culturas e identidades (UFRPE/Fundaj) e secretária executiva da Coalizão pela Socioeducação.

 

**Rosa Menezes é Comunicóloga, especialista em educação social e direitos humanos e integra a equipe técnica da Coalizão pela Socioeducação.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

 


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