Evento no MPF aborda acolhimento de vítimas e combate ao tráfico de pessoas
quarta-feira, 26 de abril de 2023, 14h51
O Ministério Público Federal (MPF) sediou, no último dia 20, o painel Enfrentamento do Tráfico de Pessoas: como Identificar e Fornecer Assistência às Vítimas?. O debate, promovido pela Organização Círculos de Hospitalidade, em parceria com o MPF e o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, ocorreu na sede do MPF em Santa Catarina e trouxe o relato de quem trabalha com a escuta e o acolhimento de vítimas do tráfico de pessoas e do contrabando de migrantes, além do depoimento de quem já foi vítima desse crime. Também foi abordada a atuação, nessa área, do MPF, do (MJSP) e da Organização Internacional para as Migrações (OIM).
O evento contou com a participação do procurador regional dos Direitos do Cidadão em Santa Catarina, Fábio de Oliveira, da coordenadora-geral de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes do MJSP, Marina Bernardes de Almeida, da coordenadora de projetos da OIM, Carolina Becker Peçanha, da líder do Comitê de Enfrentamento do Tráfico Humano, Swany Zenobini, e da coordenadora da organização Círculos de Hospitalidade, Bruna Kadletz.
Bruna Kadletz abriu o painel, contando que todo mundo que faz escuta já ouviu falar de “coiotes”, que levam pessoas ilegalmente para os Estados Unidos. “Já fiz também escuta de sírios, que fazem a travessia da Turquia para a Grécia. Fui para zonas de fronteira. Conheci jovens da África que passaram por vários países e que foram submetidos a situações análogas à escravidão. Não tem como não ser tocado”. Mas, para ela, nenhuma história foi mais marcante do que a de uma mulher de Uganda. “Ela era menina, tinha 14 anos, quando foi raptada por uma milícia com outras 200 meninas. Foi traficada e explorada sexualmente. Ficou por 10 anos em cativeiro, onde teve quatro filhos. Quando finalmente fugiu, perdeu dois deles na fuga, porque não conseguiram correr o suficiente”. Segundo Bruna, essas são pessoas que carregam traumas e marcas que nunca sairão delas, que têm seus sonhos interrompidos, quando caem no esquema do tráfico.
Falando da atuação do MPF nessa área, o procurador da República Fábio Oliveira destacou que existem duas linhas de atuação na instituição: a cível e a criminal. Na área cível, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão trabalha para garantir o bom desempenho das políticas estatais, voltadas para a população migrante, especialmente por meio da Relatoria Técnica de Migrantes e Refugiados. Segundo ele, “um dos trabalhos mais importantes é a interlocução com outras instituições. Como não cabe ao MPF desenvolver programas de políticas públicas, nosso papel é buscar parcerias para tratar da prevenção, da repressão e do acolhimento”.
Com relação à área criminal, Fábio trouxe levantamento do número de ações penais em tramitação, que tratam do tráfico de pessoas. A maioria delas (647) tem como objeto denúncias de trabalho forçado ou análogo à escravidão, que é o objetivo final de quem trafica essas pessoas. Outras 93 ações tem como objeto o tráfico internacional de pessoas para exploração sexual ou retirada de órgãos. De acordo com o procurador, “a partir desse levantamento, constatamos que a maior parte desse delitos não tinha associação com casos de corrupção. De acordo com o padrão internacional, dificilmente o crime de tráfico de pessoas se realiza sem um desvio no serviço público de migração, sem que haja a cooptação de um servidor público”. Diante dessa constatação, o Grupo de Apoio ao Combate à Escravidão Contemporânea e Tráfico de Pessoas do MPF emitiu nota técnica, orientando os procuradores da República a levarem em conta, nas suas investigações, a possibilidade do envolvimento de servidores públicos nesses crimes.
Atuação do MJSP e da OIM – A coordenadora do MJSP Marina Bernardes destacou que a prevenção e a repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas está disciplinada na lei 13.344, de 6 de outubro de 2016. Ela também trouxe breve histórico da atuação do poder público nessa área, iniciando com o Protocolo de Palermo em 2004, do qual o Brasil é signatário. Em 2006, o Decreto 5.948 aprovou a Política Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas e instituiu um grupo de trabalho interministerial com o objetivo de elaborar proposta para o Plano Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (PNETP). Desde então, três PNETPs já foram publicados: um em 2008, o segundo em 2013 e o terceiro em 2018.
A coordenadora do MJSP explicou ainda a diferença entre tráfico e contrabando de pessoas. O tráfico, que pode ser interno ou internacional, tem como objetivo a exploração, como no caso da submissão de migrantes ao trabalho escravo em plantações. Nesses casos, o consentimento da vítima é considerado irrelevante. Já o contrabando é internacional, caracterizado pelo cruzamento de fronteiras e a entrada irregular nos países. Existe a possibilidade de consentimento da vítima, mas sempre obtido de forma enganosa.
A coordenadora de projetos da OIM Carolina Becker destacou que, entre as atribuições da organização, estão a gestão de fronteiras, a capacitação de juízes, defensores públicos e profissionais da Saúde, e a reintegração econômica dos migrantes. Além disso, ela apresentou os direitos das vítimas do tráfico de pessoas, previstos na Lei 13.344: proteção e atendimento; acolhimento e abrigo provisório; atenção a necessidades específicas; preservação da intimidade; prevenção contra a revitimização; e atendimento humanizado.
“O Brasil foi o único país que abriu as portas para os afegãos” – A líder do Comitê de Enfrentamento do Tráfico Humano Swany Zenobini, que também é fundadora do coletivo Frente Afegã e já foi vítima do tráfico de pessoas, contou um pouco da sua experiência com os afegãos acampados no Aeroporto de Guarulhos, que fugiram do seu país após a tomada do poder pelos Talibãs. “O objetivo deles era fazer a travessia para os EUA e Canadá. Muitos deles já vinham pro Brasil com algum esquema. É muito difícil conscientizá-los dos riscos desses esquemas de migração irregular, pois estamos lidando com o sonho das pessoas”, disse Swany.
Falando sobre o trabalho de resgate de pessoas traficadas, ela comentou que muitas vezes, quando a pessoa é resgatada, ela continua chamando de “casa” a habitação precária onde vivia. “A pessoa acha que aquilo era bom. Ela não se vê mais como um ser humano, porque foi objetificada. E muitas acabam voltando para a escravidão”. Swany também fez um apelo: “Precisamos continuar reverberando a conscientização sobre esse tema. Quantas Swanys passam pelo nosso dia a dia e não percebemos? Perdemos a sensibilidade?”, questionou.
De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), uma em cada 78 pessoas no planeta está em situação de deslocamento. Até maio de 2022, a Acnur estima que mais de 100 milhões de pessoas foram deslocadas forçosamente em todo o mundo devido a perseguições, conflitos, violência, violações dos direitos humanos ou eventos que perturbaram a ordem pública.
Núcleo de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes – Na manhã do dia 20, anterior ao evento ocorrido à tarde, o MPF em Santa Catarina se reuniu com representantes do Ministério da Justiça, Ministério Público do Trabalho, Justiça Federal, Polícia Federal, Defensoria Pública da União, Secretaria Estadual de Assistência Social, Mulher e Família, além da sociedade civil e organizações não governamentais com o objetivo de discutir a implantação de um Núcleo de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes no Estado de Santa Catarina, um dos poucos do país que ainda não contam com esse mecanismo.
A reunião foi promovida pela Organização Círculos de Hospitalidade, mesma instituição que foi uma das promotoras do evento Enfrentamento do Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes, sediado pelo MPF. Na reunião, Marina Bernandes de Almeida, coordenadora-geral de Enfrentamento do tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes, do Ministério da Justiça, informou que o Núcleo deverá encaminhar e promover a implantação da Política Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (PNETP). Ela afirmou que os Núcleos têm papel executivo, com objetivos de diagnóstico da rede local, além de buscar fontes de financiamento. Ele deve ser integrado por uma equipe multidisciplinar formada por agentes públicos, diferentemente de um comitê, por exemplo, que tem um caráter colegiado, e pode ter participação da sociedade civil. A atuação dos Núcleos é focada na assistência, repreensão e prevenção ao tráfico de pessoas e contrabando de migrantes.
Fonte: MPF