Conjur: A efetividade da audiência de conciliação no tratamento do superendividamento
por Veridiana Maria Rehbein
quarta-feira, 09 de julho de 2025, 16h22
Alguns juízes têm decidido, em afronta ao que dispõe o artigo 104-A, do CDC, que a audiência de conciliação ali determinada seria despicienda, já que inócua. De fato, se a audiência se limitar a um procedimento massificado, em que o conciliador apenas registra a ausência de propostas dos credores e encerra a sessão, ela perde a sua razão de ser. No entanto, a fase autocompositiva é o cerne do tratamento do superendividamento.
A concretização dos princípios da boa-fé objetiva, da cooperação e da “exceção da ruína” constituem a base do tratamento do superendividamento, deles decorrem “o incentivo à conciliação global com plano de pagamento cooperativo entre todos os credores e o consumidor superendividado”. Mais do que trazer “mecanismos com potencial desjudicializador”, “muitos foram os instrumentos criados pela Lei 14.181/2021 para incentivar a conciliação em matéria de superendividamento, incentivar a cooperação a evitar a ruína dos consumidores”.
A lei que atualizou o Código de Defesa do Consumidor foi concebida a partir de pesquisas empíricas desenvolvidas no PPGD e no Observatório do Crédito e Superendividamento da UFRGS. As pesquisas resultaram em um projeto-piloto que priorizava a tentativa de conciliação em bloco. Na sua origem, o projeto-piloto fundava-se na voluntariedade das partes e respaldava-se no Projeto “Movimento pela Conciliação”, do Conselho Nacional de Justiça.
Desde 2010, com a Resolução 125 do CNJ, vigora no país a “Política Pública de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesse”, que visa o direito à solução dos conflitos por meios adequados (artigo 1º). A nova política tem como fundamentos não apenas a desjudicialização e a celeridade, mas a pacificação social através de uma solução adequada (e qualificada) do conflito. O adjetivo “qualificada” é imprescindível quando se analisa a solução autocompositiva do superendividamento.
Segundo o artigo 104-A, a audiência conciliatória deve ser realizada com a presença de todos os credores de dívidas previstas no artigo 54-A do Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservando o mínimo existencial. Conforme §2º, a ausência injustificada do credor ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, acarretará (diferente de “poderá acarretar”) a aplicação das sanções de suspensão da exigibilidade do débito, interrupção dos encargos da mora e a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida, se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor.
Para evitar a consolidação de práticas anteriores já conhecidas e ineficazes, o legislador determinou a participação qualificada dos credores, sob pena de sanções. Ao menos no Rio Grande do Sul, a aplicação das sanções tem se mostrado eficiente, já que alguns credores vêm modificando o seu comportamento em sessão, assumindo uma postura mais colaborativa. As sanções são aplicadas no estado desde 2022, inicialmente em pré-processos, na comarca de Santa Cruz do Sul, em seguida pela magistrada do Cejusc de Porto Alegre, entre outros, e pela magistrada do Projeto de Gestão de Superendividamento, após as sessões de conciliação endoprocessuais.
O STJ já reconheceu a possibilidade de aplicação das sanções em pré-processos e em processos, mas tem afastado, por maioria, a aplicação das sanções aos credores presentes que não apresentam propostas. Conforme decisão da 3ª Turma, “como é ônus do devedor a apresentação de proposta conciliatória, ela não pode ser exigida dos credores e, como a consequência da falta de acordo é a eventual submissão do contrato à revisão e repactuação compulsórias, não há respaldo legal para a aplicação analógica das penalidades do art. 104-A, § 2º, do CDC”.
Vale registrar o quão importante é essa referência, na decisão, de que a falta de acordo submete o contrato à revisão e repactuação compulsórias, pois, conforme leciona a professora Claudia Marques, a “revisão dos contratos individuais aparece como sanção àquele credor que não ‘cooperou’ para permitir ao consumidor em ruína sair do superendividamento e pagar suas dívidas a todos”. Isso porque, no plano de pagamento compulsório, será assegurado ao credor o valor do principal devido, corrigido monetariamente (no mínimo).”
A negativa do STJ à aplicação analógica das sanções a credores presentes e inertes está em consonância com a lei, já que ela não exige que o credor apresente propostas. Contudo, ainda carece de análise, pelos tribunais, de como deve se dar a demonstração do requisito exigido em lei (existência de poderes para transigir) de forma substancial. Se a lei enfatizou a importância da cooperação e estimulou a realização da autocomposição, em conformidade com a política do CNJ, não se pode permitir uma interpretação do requisito “poderes para transigir” como poderes meramente formais (na procuração) mas não condizentes com o comportamento real manifestado em sessão.
Conforme o voto da ministra Nancy Andrigui, “o simples comparecimento do preposto da instituição financeira à audiência conciliatória, sem que esteja munido de contraproposta em caso de rejeição daquela apresentada pelo consumidor superendividado, denota postura não colaborativa e é, em termos práticos, indistinguível da sua ausência”.
De fato, o que distingue a ausência do credor de seu comparecimento apenas para afirmar, em poucos segundos, que “não adere ao plano de pagamento, não apresenta propostas e não dispõe de informações sobre as operações de crédito”? Ainda assim, a própria ministra Nancy Andrigui, em aditamento ao seu voto, esclareceu:
“A aplicação das sanções previstas no artigo 104-A, § 2º do CDC nessa hipótese justifica-se plenamente do ponto de vista hermenêutico, tanto a partir da interpretação sistemática (pois é inequivocamente a que melhor se harmoniza com as várias modificações trazidas ao Código de Defesa do Consumidor pela Lei n. º 14.181/2021) quanto teleológica (tendo em vista a finalidade de proteção do consumidor superendividado) da aludida norma. Entendo, portanto, que não se trata de aplicação analógica de sanções.
Por consequência, a aplicação das sanções aos credores que assumem uma postura não colaborativa, contrária a boa-fé objetiva, não se dá “por analogia” às situações previstas no texto do §2º, mas sim diante da inexistência fática (material) de poderes para transigir. Assim, é preciso avaliar se basta a outorga formal de poderes ou se é necessário verificar se o representante pode, de fato, renegociar.
Tem poder para transigir aquele representante que pode firmar transação. Não se desconhece que conciliação e transação não são sinônimos, mas o fato é que o legislador mencionou “transigir” e, de qualquer modo, a conciliação “quando alcançada, pode ser celebrada através de uma transação, que passa a ser seu conteúdo”. “A transação é um negócio jurídico pelo qual os interessados, denominados transigentes, previnem ou terminam um litígio, mediante concessões mútuas, conceito este extraído da própria previsão legal do art. 840 do CC/2002”.
Como o Código Civil de 2002 determinou a natureza contratual da transação, sua validade depende da manifestação da vontade livre e de boa-fé, sem os chamados vícios de consentimento. Conforme art. 849, a transação “só se anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa”. Para Gagliano e Pamplona Filho, “injustificável, porém, é a aparente limitação dos vícios de consentimento a ensejar a invalidade da transação, uma vez que, como negócio jurídico que é, deve estar sujeito a todos os princípios da parte geral, inclusive a possibilidade de ocorrência, v. g., de simulação, fraude contra credores, lesão e estado de perigo”.
Além dos requisitos inerentes a todo e qualquer negócio jurídico, a transação em contrato de consumo exige transparência e a mais ampla informação. Se não bastasse, como o objetivo é a renegociação de contratos de crédito ou de concessão de financiamento ao consumidor, todas as informações exigidas nos artigos 52, 54-B e 54-D, do CDC, também são aplicáveis à espécie, pois não se pode admitir menor proteção ao consumidor em audiência do que fora dela.
Por fim, é impositiva a observância dos chamados deveres anexos, decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, como “deveres de cuidado, previdência, segurança, cooperação, informação ou mesmo os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao patrimônio da outra parte”. A não observância desses princípios e regras pode gerar a invalidação da transação, mesmo que homologada.
Em tese, a transação é um contrato paritário. Contudo, quando realizada entre um consumidor e um fornecedor, sua validade também depende da observância do dever constitucional do Estado (necessariamente do Estado/Juiz) de promover a defesa do consumidor (vulnerável nesta relação). Desse modo, mais acentuado ainda é o dever de observância, pelo conciliador/mediador, do princípio da decisão informada, que consiste no dever de manter o jurisdicionado plenamente informado quanto aos seus direitos e ao contexto fático no qual está inserido; e do princípio do respeito à ordem pública e às leis vigentes, que determina o dever de velar para que eventual acordo entre os envolvidos não viole a ordem pública, nem contrarie as leis vigentes.
Portanto, embora ferramentas como escuta ativa, comunicação não violenta e validação de sentimentos sejam importantes, mostram-se insuficientes diante da complexidade da conciliação no superendividamento, que exige habilidades técnico-jurídicas específicas. Trata-se de procedimento híbrido, com aspectos de diferentes mecanismos autocompositivos.
Não desconsiderando a importância da transcrição fidedigna das informações apresentadas em sessão (no Cejusc Porto Alegre a orientação é a transcrição literal do texto inserido no chat da videoconferência), é muito comum sua apresentação pelos credores de forma incompleta, confusa e até mesmo incorreta. Neste caso, cabe ao facilitador fazer as perguntas necessárias para o esclarecimento da situação, conforme determina o artigo 19, da Lei nº 13.140/2015.
Diferente das mediações convencionais, onde o princípio da confidencialidade determina que as informações proferidas em sessão não poderão ser apresentadas como provas no eventual julgamento do caso, no superendividamento, por expressa determinação legal, “serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência”. E mais: é através do termo da sessão, com a transcrição do que realmente aconteceu no ato, que o magistrado poderá analisar se os representantes tinham, de fato, poderes para transigir.
Apresentam-se, a seguir, alguns exemplos:
📌 O fornecedor apresenta uma proposta, estabelecendo a data de vencimento da parcela, e o consumidor solicita o adiamento em dois ou cinco dias, para que coincida com a data do recebimento de seu benefício previdenciário. O representante, porém, informa que não tem autorização para realizar qualquer modificação na proposta apresentada;
📌 O consumidor aceita a proposta financeira, mas discorda de uma cláusula que considera abusiva, imposta pelo fornecedor. Ainda assim, o representante declara que nenhuma cláusula pode ser alterada ou ajustada;
📌 O fornecedor apresenta uma proposta de novo parcelamento, mas nega-se a informar o saldo devedor atualizado e o custo efetivo total da proposta apresentada, impedindo que o consumidor faça a comparação entre o valor correspondente a manutenção das operações contratadas (ao menos até decisão judicial) e a aceitação da nova proposta.
Como conclusão, sem encerrar o tema, pois evidenciou-se até aqui a complexidade da etapa autocompositiva no procedimento de superendividamento, percebe-se a singularidade da audiência de conciliação e a necessidade de competências e habilidades específicas para a sua condução.
A audiência de conciliação no superendividamento requer condução técnica, participação efetiva dos credores e respeito à vulnerabilidade do consumidor. Seu êxito não se mede apenas por acordos celebrados, mas pela qualidade do procedimento e efetiva negociação, com participação qualificada e diálogo informado, sob pena de prejuízo ao cumprimento do acordo ou até mesmo invalidação dele.
Fonte: Conjur