Migalhas: Os vícios em produtos usados
por Rizzatto Nunes
sexta-feira, 15 de agosto de 2025, 15h03
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Já disse várias vezes por aqui que, em matéria de Direito do Consumidor, não se pode baixar a guarda, de jeito nenhum. O CDC está em vigor há 34 anos e, infelizmente, ainda não é respeitado de forma global. Há alguns dias, li uma decisão num acórdão do TJ/SP que dizia que, ao comprar um automóvel usado numa concessionária, a consumidora deveria ter submetido o veículo à análise de um mecânico de sua confiança antes da compra, para se garantir da real condição do veículo.
Uma incrível inversão do regime legal, que desconsiderou que a responsabilidade pela entrega de produto em conformidade é do fornecedor - e não da adquirente. Apesar da decisão reconhecer que a relação jurídica estabelecida entre as partes era regida pelo Código de Defesa do Consumidor omitiu-se quanto à análise da imprescindível inversão do ônus da prova prevista no artigo 6º, inciso VIII, do mesmo diploma legal.
Além disso, também não fez a análise necessária sobre a hipossuficiência da consumidora, nem da verossimilhança de suas alegações, presumindo uma igualdade inexistente entre as partes. A hipossuficiência não pode ser interpretada de forma restritiva. E a vulnerabilidade é o conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e, também, técnica.
Para fins de análise da possibilidade de inversão do ônus da prova, a vulnerabilidade tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, de sua distribuição, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem gerar um acidente de consumo e o dano, das características do vício etc.
O Tribunal exigiu da consumidora a produção de prova técnica sobre o estado do veículo no momento da aquisição, ignorando que tal medida é naturalmente inacessível a uma pessoa comum, especialmente diante de vícios que não se revelam de imediato (vícios ocultos).
A decisão afastou a responsabilidade da fornecedora pelos vícios ocultos apresentados pelo veículo, exigindo da consumidora a prova de que tais vícios já existiam à época da entrega do bem, o que, como se sabe (há 34 anos!) colide diretamente com a sistemática objetiva e solidária prevista no art. 18 do CDC.
O art. 18, caput, da lei 8.078/1990, assim dispõe:
"Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas."
Ora, exigir da consumidora a demonstração de culpa ou dolo por parte da fornecedora, ofende a natureza objetiva da responsabilidade imposta pelo CDC. A decisão da Câmara incorreu em lógica contraditória, pois reconheceu que os problemas no veículo podiam ser considerados vícios, mas afirmou que a responsabilidade não recaia sobre a fornecedora, por suposta ausência de prova do momento em que surgiram os defeitos.
Isso equivale a exigir do consumidor prova impossível - especialmente no caso de vícios ocultos, que se manifestam apenas com o uso continuado. Como é notório, vícios ocultos, exatamente por serem ocultos, não são identificáveis no momento da compra. O sistema do CDC é construído justamente para proteger o(a) consumidor(a) nessas situações.
No caso levado a juízo, a exigência seria a de que a consumidora tivesse ido ao estabelecimento do fornecedor que vendia veículos usados, acompanhada de um engenheiro-perito especialista em automóveis. Seria o mesmo que exigir que um(a) consumidor(a), antes de almoçar num restaurante self-service, levasse um(a) nutricionista para conferir a qualidade dos produtos oferecidos.
O(a) consumidor(a) só pode conhecer a qualidade dos produtos adquiridos depois de adquiri-los e/ou consumi-los. Quem assume o risco da atividade, que está diretamente ligado à responsabilidade objetiva é o fornecedor. Jamais o consumidor. As normas do CDC têm como base o fato de que aquele que se beneficia da atividade econômica deve arcar com os riscos inerentes à sua atuação no mercado.
Ou seja, o fornecedor, ao colocar produtos ou serviços no mercado, assume os riscos que essa atividade traz. No sistema do CDC, mesmo sem culpa, o fornecedor pode ser responsabilizado por danos causados ao consumidor. Isso decorre da teoria do risco do empreendimento. E o CDC protege a parte vulnerável da relação de consumo. Desse modo, os riscos da atividade não podem ser transferidos ao(a) consumidor(a).
Fonte: Migalhas