OPINIÃO
Dano ambiental e impacto negativo: conceitos e implicações
sexta-feira, 18 de julho de 2025, 15h33
Há muito venho refletindo a respeito das diferenças conceituais dos termos dano ambiental e impacto negativo ao meio ambiente. Minha tese de doutorado, defendida em 2012 na Universidade de São Paulo [1], posteriormente publicada em livro [2], ganhou um capítulo específico para tratar do tema. Tive a oportunidade de escrever sobre o assunto em vários trabalhos [3] e há alguns doutrinadores que também vem enfrentando o assunto [4].
Não havia, contudo, norma alguma que fizesse tal diferenciação até que, em 1.jul.2024, o Ibama editou a Instrução Normativa 14, assim definindo o termo impacto ambiental: “qualquer alteração de atributos ambientais resultante de atividades humanas previamente autorizadas ou licenciadas, que afete os sistemas socioecológicos, sendo que o impacto ambiental negativo difere de dano ambiental uma vez que é avaliado anteriormente à intervenção, podendo ser evitado, mitigado ou compensado” (artigo 3º, XIII)
Dessa forma, senti a necessidade de, uma vez mais, contribuir para o debate que, espero, chegue aos órgãos administrativos e tribunais e torne as decisões mais consentâneas com a efetiva definição que deve ser dada aos termos impacto ao meio ambiente e dano ambiental.
Nesse sentido, é importante citar inicialmente a Lei nº 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente), que dá evidente indicativo sobre a diferença dos conceitos de dano e de impacto. Essa norma dispõe que na gestão administrativa do meio ambiente, principalmente no licenciamento ambiental, a avaliação que deve ser feita é dos impactos a ele causados. E, de outro lado, ao tratar da responsabilidade civil objetiva pelos danos ambientais, a mesma norma apontou claramente o papel do poluidor e o dever de reparar ou indenizar.
A distinção entre impacto e dano também consta na Constituição de 1988, estabelecendo que, quando a degradação ou o impacto for significativo, a instalação da obra ou atividade relacionada deve ser precedida de Estudo de Impacto Ambiental (EIA), que é a base do licenciamento ambiental (artigo 225, §1º, inciso IV). Da mesma forma, ao se referir a danos, a Constituição Federal impõe que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (artigo 225, § 3º).
E mais recentemente, como referido, o Ibama editou a Instrução Normativa 14, de 1/7/2024, em que, de forma inovadora na legislação brasileira, distingue expressamente o impacto do dano ambiental.
É certo concluir, portanto, que o impacto ao meio ambiente ocorre em decorrência de atividades ou empreendimentos cuja instalação e operação sejam apreciados antecipadamente pelo órgão administrativo competente, outorgando-lhe autorização ou licença ambiental [5]. O dano, por sua vez, pode ser designado como a lesão indesejada [6] nos recursos ambientais, com consequente poluição prejudicial ao equilíbrio ecológico e à qualidade de vida, impondo a incidência da tríplice responsabilidade: administrativa, criminal e civil.
Aliás, mesmo quando as condicionantes ou obrigações impostas no licenciamento ambiental se mostrarem inadequadas ou insuficientes, o resultado respectivo dificilmente se equiparará a um dano ambiental. Afinal, considerando o dinamismo do licenciamento ambiental e da realidade em que o empreendimento é implantado e operado, podem ocorrer situações não previstas ou mal qualificadas, de modo a exigir que o órgão licenciador deva corrigir e/ou adequar as medidas de comando e controle (condicionantes) impostas.
Outrossim, o fato de um determinado impacto ser significativo, ou seja, de grandes proporções, também não o transforma em um dano ambiental. Da mesma forma, o fato de a administração pública deter legitimidade para exigir a reparação de danos ambientais, o que faz por meio da propositura de ações civis públicas e celebração de Termos de Ajustamento de Conduta ou correlatos [7], não confunde o dano ambiental com o impacto ao meio ambiente, que permanecem com características, natureza jurídica e reações jurídicas distintas.
Entendimento do STJ
O Superior Tribunal de Justiça, embora venha evoluindo na avaliação da distinção entre o impacto ao meio ambiente e o dano ambiental, ainda considera que impactos socioambientais se equiparam a danos e devem ser reparados, com exceção dos danos morais, que vêm sendo afastados pelo STJ em razão da licitude da conduta. Confira-se:
“RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ATO LÍCITO. REPRESAMENTO DE RIO FEDERAL. CONSTRUÇÃO DE USINA HIDRELÉTRICA. FINALIDADE PÚBLICA. ALTERAÇÃO DAS ESPÉCIES E REDUÇÃO DO VALOR COMERCIAL DO ESTOQUE PESQUEIRO. RENDA DE PESCADOR PROFISSIONAL ARTESANAL REDUZIDA. LUCROS CESSANTES DEVIDOS. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS.
1. Os atos lícitos também podem dar causa à obrigação de indenizar. Segundo a doutrina de Caio Tácito, o fundamento da indenização não será, todavia, ‘o princípio da responsabilidade (que pressupõe a violação de direito subjetivo mediante ato ilícito da administração)’, mas ‘a obrigação de indenizar o sacrifício de um direito em consequência de atividade legítima do Poder Público’.
2. Embora notória a finalidade pública do represamento de rio para a construção de usina hidrelétrica e, no caso em exame, sendo certo que o empreendimento respeitou o contrato de concessão e as normas ambientais pertinentes, a alteração da fauna aquática e a diminuição do valor comercial do pescado enseja dano a legítimo interesse dos pescadores artesanais, passível de indenização.
3. O pagamento de indenização pelos lucros cessantes redistribui satisfatoriamente o encargo individualmente sofrido pelo pescador profissional artesanal em prol do bem comum (construção da hidrelétrica).
4. Não tendo havido ato ilícito causador de degradação ambiental e nem privação do exercício da profissão de pescador sequer em caráter temporário, não há dano moral autônomo indenizável.
5. Recurso especial a que se dá parcial provimento, a fim de afastar a condenação por danos morais.” (STJ – REsp nº 1.371.834/PR, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 5/11/2015, publicado em 14/12/2015)
No voto condutor do julgado acima, a eminente ministra relatora reconhece que o empreendimento é lícito, devidamente licenciado com base em EIA/Rima e cumpridor das condicionantes impostas em tal procedimento administrativo. No entanto, compreende que há direito à reparação dos interesses legítimos dos pescadores, na medida em que é preciso indenizar o prejuízo individual em razão da atividade de interesse público.
O julgado acima, contudo, está baseado em doutrina [8] que não observou os recentes avanços e novidades impostos no ordenamento jurídico nacional pelo Direito Ambiental. Tanto é assim que a ministra relatora salienta em seu voto, aparentemente indicando que a responsabilidade poderia ser afastada, que não houve prova de que o empreendedor tenha “procurado mitigar os prejuízos individuais dos pescadores profissionais da região, fornecendo-lhes treinamento e meios para aquisição de instrumentos de trabalho, compatíveis com a nova realidade do rio em que exerciam sua atividade profissional”. Ou seja, é possível defender que, em tendo sido mitigados e compensados, no processo de licenciamento, os impactos socioambientais, afasta-se o dever de indenizar também o abalo ao interesse legítimo, na medida em que sua mitigação e compensação se deram na esfera administrativa.
Jurisprudência do TRF-4 e do TRF-1
Com mais atenção para as questões ambientais, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região já julgou no sentido de que os impactos causados por empreendimento hidrelétrico, como a mortandade de peixes, são efeitos inevitáveis que não podem ser equiparados com um delito para fins de responsabilização criminal. Confira-se:
“DIREITO PENAL E PROCESSUAL. DENÚNCIA. REJEIÇÃO. ART. 43 DO CPP. LEI 9.605/98. CRIMES AMBIENTAIS. ENTRADA EM FUNCIONAMENTO DE USINA HIDRELÉTRICA. LICENÇA DE OPERAÇÃO CONCEDIDA PELOS ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS. MORTANDADE DE PEIXES. EFEITO INEVITÁVEL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DA MATERIALIDADE DELITIVA. PROPORCIONALIDADE ENTRE TUTELA CRIMINAL E LESÃO AO ECOSSISTEMA. FALTA DE JUSTA CAUSA. PRESCRIÇÃO EM ABSTRATO DE PARTE DOS FATOS. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO DESPROVIDO. (…)
3. Resta evidente que uma obra de tamanha envergadura necessariamente acarreta mudanças no meio onde realizada, não implicando, por si só, a caracterização de crime contra a natureza.
4. Consoante os depoimentos de peritos ouvidos na esfera policial, o fechamento das comportas tanto em dezembro/99 como em janeiro/2000 teria o mesmo impacto ambiental, independente de se tratar ou não da época de reprodução da fauna aquática. (…)
5. In casu, não se mostra razoável pretender punir os réus por causar lesão ínfima ao ecossistema, quando a estes foi dada autorização estatal expressa para imprimir significativa alteração ao meio ambiente da região, sob pena de caracterizar-se ofensa aos princípios penais da intervenção mínima e da proporcionalidade.
6. Inexistindo justa causa para a instauração da ‘persecutio criminis in judicio’, correta a decisão que rejeitou a denúncia com apoio no art. 43 do Diploma Processual.” (TRF-4, RSE 2000.72.02.000626-9, 8ª Turma, relator desembargador Élcio Pinheiro de Castro – DJ 3/3/2004)
Destaca-se, ainda, julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que abordou a distinção entre dano e impacto:
“AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EMPREENDIMENTO HIDRELÉTRICO NO BIOMA AMAZÔNICO (USINA DE BELO MONTE, NO ESTADO DO PARÁ). INSUSTENTABILIDADE AMBIENTAL CONGÊNITA NÃO RECONHECIDA.
(…)
2. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assegurado às presentes e futuras gerações (CF/88, art. 225), não configura impedimento absoluto ao aproveitamento de recursos hídricos – em particular para fins de geração de energia elétrica. Aproveitamento que, precedido de maturada análise técnica da viabilidade econômica e do interesse estratégico, bem como de aprovação por licenciamento ambiental estipulando múltiplas condicionantes, boa parte das quais em favor de segmentos socialmente mais vulneráveis (comunidades indígenas e ribeirinhos), afigura-se, considerada a moldura congênita, compatível com a diretriz de desenvolvimento sustentável que confere ao Estado brasileiro atributo especial: ser um autêntico Estado Socioambiental de Direito.
3. Ao Judiciário cabe assumir postura de autocontenção (judicial self-restraint) em face de deliberações emanadas de entes ou órgãos estatais tecnicamente especializados na regulação do setor elétrico e no licenciamento ambiental de usinas hidrelétricas, revelando deferência em medida adequada para não se imiscuir em situações que não apresentam ilegalidade flagrante ou teratologia.
4. À luz do enfoque consequencialista, consagrado no art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), não comporta acolhimento, como alternativa subsidiária e eficiente à rejeição do pedido principal (obstar a construção de usina hidrelétrica sob o argumento de sua congênita insustentabilidade ambiental), impor obrigação de indenizar em caráter coletivo, sob a presunção de que as condicionantes do licenciamento concedido seriam insuficientes para evitar que os impactos da obra no ecossistema convolassem em danos ambientais. Fortalecer o monitoramento dessas condicionantes (ou mesmo acrescer ao rol originário outras que a dinâmica cambiante dos fatos justificar) é via que se desvela mais adequada à consecução desse fim.
5. Apelação do Ministério Público Federal desprovida, com consequente denegação do pedido de tutela antecipada recursal, formulado por associações indígenas admitidas na segunda instância como assistentes litisconsorciais do polo ativo.” (TRF-1, Apelação nº 0028944-98.2011.4.01.3900, 6ª Turma, des. relator Fernando Cléber, Julgado em 8/5/2023)
Como se vê, é preciso que o Direito efetivamente passe a distinguir os conceitos de impactos ao meio ambiente e de danos ambientais, procurando tornar mais racionais as decisões em âmbito administrativo ou judicial. Não é razoável, com efeito, que impactos devidamente equacionados com medidas mitigatórias e compensatórias sejam reapreciados pelo Poder Judiciário sob a perspectiva da responsabilidade civil.
[1] ARTIGAS, Priscila Santos. Contribuição ao estudo das medidas compensatória em Direito Ambiental. Tese (Doutorado em Direito Econômico Financeiro, sub-área Direito Ambiental). Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2133/tde-15052013-163336/pt-br.php. Acesso em: 05.07.2021
[2] ARTIGAS, Priscila Santos. Medidas Compensatórias no Direito Ambiental: Uma análise a partir da compensação ambiental da Lei do SNUC. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
[3] ARTIGAS, Priscila Santos. O dano ambiental e o impacto negativo ao meio ambiente. Revista do Advogado. AASP. Ano XXXVII. Mr. 2017. n.133, p. 174-179. ARTIGAS, Priscila Santos. O dano ambiental e o impacto negativo ao meio ambiente na implantação de empreendimentos do setor elétrico. In ROCHA, Fabio Amorim (coord.). Temas relevantes no direito de energia elétrica: Tomo VII. Rio de Janeiro: Synergia, 2018, p.489-500. ARTIGAS, Priscila. Os conceitos de Dano Ambiental e de Impacto Negativo Ao Meio Ambiente: Uma reflexão a partir da Lei 6.938/1981. In MILARÉ, Édis (coord.). Quarenta anos da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente: reminiscências, realidade e perspectivas. 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021, p. 1079-1092.
[4] Nesse sentido, vide MONTEIRO DE BRITO, Luiz Antonio G.S., Direito Ambiental Minerário: regime jurídico dos impactos e danos ambientais na mineração. Ed. Fórum, 2021.
[5] Obviamente, também será um impacto quando a legislação dispensar o licenciamento ambiental.
[6] O indesejado aqui se refere a ausência de almejo de toda a sociedade, que certamente repudia qualquer circunstância danosa ao meio ambiente. Afinal, sabe-se que danos ambientais podem ocorrer de forma dolosa, ou seja, desejada por seus executores.
[7] Lei nº 7.347/1985: “Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (…) V – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; (…) § 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.”
[8] O julgado se baseia em importantes obras doutrinárias, de Caio Tácito e Celso Antonio Bandeira de Mello que, contudo, foram escritas sem atentar especificamente para questões ambientais. (TÁCITO, Caio. Temas de Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, 1º vol; MELLO, Celso Antônio Bandeira. “Elementos de Direito Administrativo”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 259).
Priscila Santos Artigas é advogada, parecerista, doutora em Direito Econômico e Financeiro (concentração em Direito Ambiental) pela Faculdade de Direito da USP (2012), mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2008), especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Saúde Pública da USP, conselheira do Instituto dos Advogados de São Paulo – (Iasp), presidente da Comissão Permanente de Estudos de Direito Ambiental do Iasp, vice-diretora da Escola Paulista de Advocacia (EPA), membro da União dos Advogados Ambientalistas (UBAA), professora de Direito Ambiental no curso de pós-graduação da UFPR, autora do livro Medidas Compensatórias no Direito Ambiental: Uma Análise a Partir da Compensação Ambiental da Lei do SNUC (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017) e sócia fundadora do Artigas Advocacia Ambiental (AAA).
Fonte: Conjur