Opinião
Reconfiguração de pessoa jurídica e extinção da punibilidade em crime ambiental
por Ana Maria Moreira Marchesan
segunda-feira, 29 de setembro de 2025, 14h41
A Constituição de 1988 inovou ao prever expressamente a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes ambientais (artigo 225, § 3º), evidenciando a centralidade da proteção ambiental no ordenamento jurídico. Essa opção legislativa, em vez de reforçar apenas a responsabilidade civil ou administrativa, introduziu uma estratégia penal voltada à responsabilização de entes morais, especialmente no contexto da ordem econômica fundada na livre iniciativa e propriedade privada (artigo 170).
A responsabilização penal da pessoa jurídica, por não se limitar à lógica contábil, impõe um estigma social que transcende os prejuízos financeiros. A Constituição também estabeleceu um dever de criminalização das condutas lesivas ao meio ambiente, incumbindo ao legislador infraconstitucional a criação de normas específicas, o que se concretizou com a promulgação da Lei nº 9.605/98.
Desde então, a responsabilização penal de pessoas jurídicas tem sido objeto de intenso debate, com avanços significativos. Inicialmente, prevaleceu o entendimento de que seria necessária a dupla imputação — à pessoa jurídica e à pessoa física que agiu em seu nome — em razão do elemento subjetivo do tipo penal. Contudo, a prática forense demonstrou que essa exigência, especialmente em grandes corporações, esvaziava a eficácia da responsabilização penal, levando a jurisprudência a evoluir no sentido de permitir a responsabilização direta da pessoa jurídica, removendo o véu corporativo.
Muitas foram as decisões pugnando pela necessidade da dupla imputação entre a pessoa física responsável e o ente moral, o que dificultava quando não esvaziava o conteúdo da responsabilidade penal empresarial, até que sobreveio a decisão do STF da relatoria da ministra Rosa Weber, deixando claro que a “identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva.
Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual” [1].
A partir dessa decisão, a dupla imputação tem sido afastada como conditio sine qua non para a persecução do ente moral, maximizando a previsão constitucional de responsabilidade criminal corporativa como um dos instrumentos para ampliar a proteção do bem jurídico ambiental.
Julgamento no REsp 1.977.172/PR e extinção da punibilidade por incorporação
Recentemente, o STJ, no julgamento do REsp 1.977.172, entendeu que a incorporação de uma pessoa jurídica acusada de crime ambiental por outra enseja a extinção de sua punibilidade. O fundamento central foi o princípio da intranscendência da pena (artigo 5º, XLV, Constituição), que impediria a responsabilização da incorporadora por atos da incorporada, conforme segue:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE POLUIÇÃO (ART. 54, § 2º, V, DA LEI 9.605/1998). CONDUTA PRATICADA POR SOCIEDADE EMPRESÁRIA POSTERIORMENTE INCORPORADA POR OUTRA. EXTINÇÃO DA INCORPORADA. ART. 1.118 DO CC. PRETENSÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA INCORPORADORA. DESCABIMENTO. PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DA PENA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 107, I, DO CP. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE MANTIDA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO [2].
A posição adotada pelo voto condutor da maioria, da lavra do ministro Ribeiro Dantas, não se apresenta como alternativa que de fato assegure uma proteção jurídica eficiente ao bem ambiental.
Coadunamos com o entendimento de Fischer [3] ao tecer críticas à decisão do STJ equiparando a incorporação da pessoa jurídica à morte da pessoa física para fins de reconhecimento da extinção da punibilidade. Em afiada síntese, apregoa:
(…) o STJ assentou que, ausentes “indícios de fraude” nos atos de “incorporação”, haveria de se aplicar, analogicamente, o art. 107, I, CP (que permite a extinção da punibilidade da pessoa física em caso de sua morte) quando ocorrente a “incorporação” da pessoa jurídica constante na denúncia por terceira empresa, presente o princípio da intranscendência da pena, conforme previsão abstrata no art. 5º, XLV, CF (XLV nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido).
O autor discorda da analogia realizada pelo Tribunal Superior. Isso porque, a seu ver, a morte de uma pessoa física não pode ser equiparada à de uma pessoa jurídica, já que a primeira é um fato que ocorre sem a vontade da pessoa natural e a segunda, por sua vez, consiste em ato negocial (no caso da incorporação). Tal entendimento foi, inclusive, sustentado pelo ministro Schietti, em voto divergente no âmbito do próprio REsp n° 1.977.172 — PR.
Para além disso, Fischer ressalta ser a intranscendência da pena um critério proveniente da dogmática tradicional que, em suas palavras, “existe para que, a partir unicamente de ações subjetivas (típicas do ser humano), não se responsabilizem terceiros que não tenham praticado a ação prevista (verbo nuclear) abstratamente pela norma criminal”. É por isso que concordamos com o doutrinador e com o entendimento do ministro Schietti ao destacar que, na verdade, punir a pessoa jurídica incorporadora não se trataria de punir outrem, mas sim de uma modificação formal em relação à pessoa jurídica que será responsabilizada pelo crime — o que decorreu, de uma decisão deliberada e consciente da incorporada.
Carece de sentido a perspectiva de que um instituto do direito civil (incorporação) possa acarretar na extinção da punibilidade, um instituto do direito penal.
As sanções aplicáveis às pessoas jurídicas, por não envolverem privação de liberdade [4], restringem-se às penas restritivas de direitos e multa, o que afasta qualquer analogia entre a extinção da pessoa jurídica por incorporação e a morte da pessoa natural. Além disso, eventual acusação criminal deve ser considerada como fator de risco em operações societárias, não podendo a persecução penal ser prejudicada por atos negociais entre particulares. O próprio julgado analisado destaca a relevância de indícios de fraude, especialmente quando a reorganização societária ocorre ainda na fase investigativa, o que pode evidenciar tentativa de obstrução da responsabilização penal.
Intranscendência da pena e pessoa jurídica
A aplicação do princípio da intranscendência às sociedades deve ser feita com cautela. Trata-se de um princípio concebido para proteger indivíduos contra punições por atos alheios. No caso das pessoas jurídicas, a responsabilização penal decorre da própria atuação institucional, e não da imputação subjetiva de culpa. A culpabilidade assenta-se na vontade institucional direcionada a um agir em descompasso com a lei. Assim, a extinção da punibilidade com base em um ato societário voluntário fragiliza o sistema de responsabilização penal e contraria o primado constitucional de proteção ao meio ambiente.
Não parece inútil reforçar que a responsabilização do ente moral dimana do mandado de criminalização das condutas lesivas ao meio ambiente, atrelado ao status de bem fundamental ostentado pelo meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 225, § 3º, Constituição). Assenta-se, ainda, na preservação da ordem econômica, constituída pela necessária preservação ambiental e pela observância da função social da propriedade e da empresa (artigos 5º, inc. XXIII, e 170, VI, ambos da Constituição).
Portanto, equiparar a morte da pessoa física à extinção deliberada e negocial da pessoa jurídica apresenta-se flagrantemente inconstitucional.
Propostas práticas para evitar possível reconfiguração da pessoa jurídica para burlar a aplicação da lei penal
Diante da possibilidade de reconfiguração societária como estratégia para frustrar a persecução penal, propõe-se:
- para empresas limitadas: a averbação, na Junta Comercial, da existência de investigação, denúncia ou processo criminal, ainda que controvertida, é medida de prudência porque alerta o mercado para a existência do procedimento policial ou ministerial. Por sua vez, a sentença condenatória pode ser averbada nos assentamentos mercantis. A tais conclusões se chega com lastro no artigo 32, inciso II, ‘e’, da Lei nº 8.934/94 combinado com o artigo 7º, inciso I, ‘c’, do Decreto 1800/96. Desta forma, afastar-se-ia a boa-fé dos envolvidos na negociação.
- para sociedades anônimas: a comunicação à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) como fato relevante, nos termos do artigo 2º, VII, da Resolução CVM nº 44/2021, tanto da instauração de investigação penal como da denúncia ofertada e/ou recebida é recomendável e até mesmo imperativa para companhias abertas.
Reza o artigo 2º da aludida instrução:
Art. 2º Considera-se fato relevante qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos da administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável:
I – na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia ou a eles referenciados;
II – na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter esses valores mobiliários;
III – na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados.
A investigação criminal e, sobretudo, a denúncia consubstancia fato relevante se tiver potencial para afetar significativamente a imagem, o desempenho financeiro ou a percepção do mercado quanto à integridade ou continuidade operacional da empresa.
Tais medidas visam garantir a transparência e prevenir fraudes passíveis de comprometer a responsabilização penal de entes coletivos.
Conclusão
A decisão do STJ no REsp 1.977.172 representa um retrocesso na efetividade da tutela penal ambiental. A analogia entre a morte da pessoa física e a extinção da pessoa jurídica por incorporação não se sustenta dogmaticamente e abre margem para a impunidade de crimes ambientais praticados por empresas, especialmente por grandes corporações. É necessário reafirmar o compromisso constitucional com a proteção do meio ambiente e com a responsabilização penal efetiva das pessoas jurídicas, inclusive diante de reconfigurações societárias.
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Referências bibliográficas
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Teoria da imputação objetiva no direito penal ambiental brasileiro. São Paulo: LTr, 2005
FISCHER, Douglas. “Morte” e extinção da punibilidade (criminal) da pessoa jurídica pela “incorporação“ (cível)? E os “casos” Mariana e Brumadinho ?. Professor Douglas Fischer – PDF, 2 nov. 2022. Disponível aqui.
MILARÉ, Edis; MILARÉ, Lucas Tamer. A responsabilidade penal da pessoa jurídica nos tribunais: dois julgados paradigmáticos. In: SPENGLER, Adriana Maria Gomes de Souza. Lei de crimes ambientais: comentários à lei 9.605/98 e aos atuais impactos ambientais. São Paulo: Mizuno, 2024. p. 186-196.
OLIVEIRA, Marcos Vinícius Amorim. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Análise da Decisão do STJ no REsp 1977172/PR. In: MIRANDA, Jorge; GOMES, Carla Amado; LEITÃO, Rômulo Guilherme (Org.). Recursos energéticos e soberania: uma perspectiva interdisciplinar (Brasil, Espanha e Itália). Belo Horizonte, MG: Sete Autores Ed., 2024. p. 135-156.
PRADO, Luiz Regis. Direito penal ambiental. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
SANTIAGO, Alex Fernandes. Fundamentos de direito penal ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.
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[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rec. Extraordinário 548181. Relatora Min. Rosa Weber. Julgado em 06.agos.2013. Disponível aqui.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1977172 / PR. Relator Min. Ribeiro Dantas. Julgado em 24.agos.2022. Disponível aqui.
[3] FISCHER, Douglas. “Morte” e extinção da punibilidade (criminal) da pessoa jurídica pela “incorporação“ (cível)? E os “casos” Mariana e Brumadinho ?. Professor Douglas Fischer – PDF, 2 nov. 2022. Disponível aqui.
[4] OLIVEIRA, Marcus Vinícius Amorim de. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: análise da decisão do STJ no RESP 1977172/PR. In: MIRANDA, Jorge; GOMES, Carla Amado; LEITÃO, Rômulo Guilherme (Org.). Recursos energéticos e soberania: uma perspectiva interdisciplinar (Brasil, Espanha e Itália). Belo Horizonte, MG: Sete Autores Ed., 2024, p. 148.
Ana Maria Moreira Marchesan é procuradora de Justiça e atual coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público do Rio Grande do Sul (Caoma-RS).
Fonte: Conjur