Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Excessos e abusos na proteção do patrimônio cultural

quarta-feira, 03 de dezembro de 2025, 16h55

O Brasil tem vivenciado, nos últimos tempos, um período de enorme profusão de normas sobre a proteção do patrimônio cultural, bem como de atos administrativos e legislativos “tombando”, registrando, declarando o valor e protegendo supostos bens culturais de diferentes matizes.

 

A recente Lei  nº 14.835, de 4 de abril de 2024, por exemplo, instituiu o marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura (SNC), para garantia dos direitos culturais, organizado, em regime de colaboração entre os entes federativos, a gestão conjunta das políticas públicas de cultura.

 

Conquanto referida lei não trate exclusivamente do patrimônio cultural, pois tem espectro de abrangência mais elástico, abrangendo a cultura como um todo (à qual atribui natureza expressa de direito fundamental do ser humano), ela traz diretrizes importantes que servem de norte para a melhor gestão dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro.

 

O artigo 4º, II, do mencionado diploma legal, por exemplo, positiva os princípios da proteção e da intervenção estatal obrigatória em relação ao patrimônio cultural, ao dispor que:

Art. 4º É dever do Estado assegurar a todos o pleno exercício dos direitos culturais, mediante:

II – proteção e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro;

 

O inciso XVII, do mesmo dispositivo, traz uma diretriz importante relacionada ao patrimônio cultural ao determinar a colaboração dos meios de comunicação social na promoção, na proteção e na conservação dos bens do patrimônio cultural brasileiro, em especial dos meios de radiodifusão de sons e de sons e imagens para a produção de programas que contribuam para difundir a cultura nacional, formar plateias e desenvolver educação patrimonial.

 

No campo da proteção individualizada de bens, importante destacar os novos olhares que vêm sendo lançados sobre produções culturais antes esquecidas ou marginalizadas, como as relacionadas a produções de matrizes indígena e africana, inclusive em sua dimensão imaterial.

 

O Estatuto da Igualdade Racial, por exemplo,  em dispositivos pouco conhecidos, estabeleceu que:

“Art. 17.  O poder público garantirá o reconhecimento das sociedades negras, clubes e outras formas de manifestação coletiva da população negra, com trajetória histórica comprovada, como patrimônio histórico e cultural, nos termos dos arts. 215 e 216 da Constituição Federal.

Art. 18.  É assegurado aos remanescentes das comunidades dos quilombos o direito à preservação de seus usos, costumes, tradições e manifestos religiosos, sob a proteção do Estado.

Parágrafo único.  A preservação dos documentos e dos sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, tombados nos termos do § 5o do art. 216 da Constituição Federal, receberá especial atenção do poder público.

Art. 19.  O poder público incentivará a celebração das personalidades e das datas comemorativas relacionadas à trajetória do samba e de outras manifestações culturais de matriz africana, bem como sua comemoração nas instituições de ensino públicas e privadas.

Art. 20.  O poder público garantirá o registro e a proteção da capoeira, em todas as suas modalidades, como bem de natureza imaterial e de formação da identidade cultural brasileira, nos termos do art. 216 da Constituição Federal.

Parágrafo único.  O poder público buscará garantir, por meio dos atos normativos necessários, a preservação dos elementos formadores tradicionais da capoeira nas suas relações internacionais.”

 

Contudo, é muito preocupante a ausência de técnica, a inexistência de elementos idôneos de motivação, a falta de participação da comunidade e, não raras vezes, o desvio de finalidade que têm norteado a proteção de supostos bens culturais por parte das mais diversas autoridades do país.

 

Veículos automotores de uso cotidiano sendo “tombados” como “patrimônio cultural imaterial”; blocos carnavalescos, grupos de caminhantes que sobem montanhas e entidades de criação recente, sem qualquer relevância,  sendo declarados “patrimônio cultural” por meio de leis e até mesmo uma recentíssima invenção chamada “doce morango do amor” recebeu o reconhecimento oficial como patrimônio cultural de uma cidade do sul de Minas Gerais.

 

Ainda exemplificando, na cidade do Rio de Janeiro foi aprovada a Lei nº 6.725, de 1º de abril de 2020, que “Tomba como bens de natureza imaterial da Cidade do Rio de Janeiro o Serviço de Táxi Amarelinho, bem como a Plataforma Taxi-Rio”.

 

Segundo a lei, ficam tombados, como bens de natureza imaterial de valor cultural para a Cidade do Rio de Janeiro, o Serviço de Transporte Público Individual de Passageiros Operado por Táxi, bem como a função da Plataforma Tecnológica Taxi-Rio, como exclusiva dos taxistas cariocas.

 

A norma reúne uma coleção de equívocos técnicos e terminológicos, uma vez que o tombamento não é instrumento de proteção do patrimônio imaterial, não pode incidir sobre usos ou serviços públicos e nem limitar a fruição de bens a determinadas pessoas, pois, ao revés, ele destina-se a bens de fruição coletiva.

 

Pesquisando a motivação da inusitada medida, descobrimos que, na realidade, os concessionários do serviço de táxi buscaram, com a lei, afastar motoristas autônomos de aplicativos, como o Uber, do uso  da “Taxi-Rio Cidades”, que  é uma plataforma gratuita desenvolvida pela prefeitura do Rio de Janeiro para conectar passageiros e taxistas, permitindo que usuários solicitem táxis, visualizem informações do motorista e do veículo e tenham opções de desconto.

 

Também temos verificado atos administrativos de proteção que, a pretexto de proteger bens integrantes do patrimônio cultural, servem, na realidade, para dar lastro à destinação de verbas públicas a título de patrocínios, subvenções, isenções fiscais e emendas parlamentares em benefício de amigos, parentes e correligionários políticos, desviando recursos que deveriam ser empregados, de fato, em bens de inquestionável valor cultural, muitos deles em mau estado de conservação e abandonados pelos mesmos gestores públicos que abusam do seu limitado poder.

 

Iniciativas de tal jaez estão maculadas do vício de desvio de finalidade, pois os agentes públicos envolvidos se valem de atos administrativos ou legislativos para atingir propósito diverso do que o ordenamento jurídico prevê, visando um fim particular em vez do interesse público. Essa prática torna o ato ilegal e passível de nulidade, configurando evidente abuso de poder.

 

Por envolverem e conformarem efeitos concretos, com definição de objeto específico, esses atos podem  ter sua validade questionada junto ao Poder Judiciário inclusive  por meio de ação popular [1] ou ação civil pública [2], pois para integrar o patrimônio cultural do país, nos termos da Constituição, os bens devem ser notoriamente portadores de referência à identidade (características próprias, materiais ou imateriais, traços distintivos que caracterizam um grupo), à memória (reminiscências escritas ou mantidas pela tradição oral, lembranças de fatos marcantes, símbolos arraigados nas reminiscências coletivas) e à ação (obras, realizações, feitos, fazeres materiais ou imateriais, conquistas) dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (desde os primitivos habitantes indígenas, passando pelos colonizadores europeus, africanos escravizados, imigrantes e demais contribuições culturais mais recentes).

 

É possível buscar a decretação de nulidade (por vícios de falta de motivação, participação popular e desvio de finalidade, por exemplo), bem como a declaração incidental de inconstitucionalidade de leis de efeitos concretos e de atos que não atendam aos requisitos acima delineados, com a consequente imposição de obrigações de fazer e não fazer, como pedidos principais [3], a exemplo do órgão público abster-se de utilizar o ato para qualquer fim, inclusive concessão de incentivos ou benefícios econômicos, fiscais e financeiros.

 

Com efeito, somente devem receber a especial tutela do poder público, a título de bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro, aqueles produtos mais representativos e significativos da nossa cultura, sendo indispensável a criteriosa “seletividade”  da atuação preservacionista, que deve estar sempre lastreada em estudos técnicos prévios, elaborados por profissionais habilitados, com a participação da coletividade envolvida.

 

É preciso responsabilidade e bom senso, pois as políticas de preservação não podem ser banalizadas, sendo absolutamente reprováveis os excessos que venham se enquadrar no que a literatura internacional denomina “fúria patrimonial”, “alquimia do patrimônio”, “paixão patrimonial”, “patrimoniomania”, “abusos do patrimônio”, “maquinaria patrimonial” e “histeria do patrimônio”, expressões utilizadas para rotular a proteção infundada, desenfreada e abusiva, que carece de fundamentos teóricos e metodológicos para a seleção de signos que verdadeiramente devem ser protegidos.

 

É hora de colocar limite nesses excessos e abusos, pois, sem qualquer dúvida, “alguma coisa está fora da ordem”.

 

[1] De acordo com Hely Lopes Meireles: “Dentre os atos ilegais e lesivos ao patrimônio público pode estar até mesmo a lei de efeitos concretos, isto é, aquela que já traz em si as consequências imediatas de sua atuação, como a que desapropria bens, a que concede isenções, a que desmembra ou  cria municípios, a que fixa limites territoriais e outras dessa espécie. Tais leis só o são em sentido formal, visto que materialmente se equiparam aos atos administrativos e, por isso mesmo, são atacáveis por ação popular ou por mandado de segurança, conforme o direito ou o interesse por elas lesado. ( in “Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e ‘Habeas Data’, 19ª Edição, São Paulo: Malheiros, p. 118).

[2] Nesse sentido: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO URBANÍSTICO. PLANO DIRETOR DE SANTO ANDRÉ. NULIDADE DE ALVARÁ DE CONSTRUÇÃO. REMOÇÃO DE IMPEDIMENTO À CONCESSÃO DO ALVARÁ PELA PRORROGAÇÃO DO PRAZO INICIAL DE VIGÊNCIA DE NORMA QUE JÁ SE ENCONTRAVA EM VIGOR. ABUSO DO PODER DE LEGISLAR E DESVIO DE FINALIDADE CARACTERIZADOS. VÍCIOS QUE CONTAMINAM O ALVARÁ. REMOÇÃO DO IMPEDIMENTO LEGAL ALCANÇADA COM A OFERTA DE EMENDA ADITIVA NA CÂMARA DE VEREADORES. (TJSP; APL 9256581-20.2008.8.26.0000; Ac. 7557325; Santo André; Quarta Câmara de Direito Público; Rel. Des. Aldo Magalhães; Julg. 26/06/2012; DJESP 30/05/2014)

[3] Nesse sentido:  É possível o controle incidental de constitucionalidade em ação civil pública quando a inconstitucionalidade for causa de pedir e não pedido principal (AgInt no RESP nº 1.921.375/TO, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, j. 23.09.2024).

 

Marcos Paulo de Souza Miranda é professor de Direito do Patrimônio Cultural

 

Fonte: Conjur


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