CONJUR: Qual o impacto do ECA Digital no segmento de jogos eletrônicos
quarta-feira, 22 de outubro de 2025, 11h47
Embora impulsionada pelo vídeo do influenciador Felca denunciando o fenômeno da “adultização” de crianças na internet, a Lei nº 15.211/2025 (ECA Digital), sancionada em 17 de setembro de 2025, abrange produtos e serviços de tecnologia da informação direcionados ou de acesso provável por crianças e adolescentes de maneira ampla, o que inclui os jogos eletrônicos com capítulo exclusivo.
E o impacto nos jogos eletrônicos não poderia ser mais relevante. Segundo reportagem do portal iG [1], mais de 82,8% da população brasileira diz jogar com frequência jogos eletrônicos. No Brasil, o setor movimentou em 2024 mais de US$ 2,8 bilhões, com crescimento projetado de quase 10% ao ano até 2030 [2].
Neste artigo, avaliamos os impactos práticos do ECA Digital no segmento de jogos eletrônicos, em especial, os desafios de implementação e adaptação de seus modelos de negócio frente aos requisitos de verificação etária e supervisão parental, proteção de dados, e estratégias de monetização.
ECA Digital
O ECA Digital dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais, e dialoga com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14), a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei nº 13.709/18) e o Marco Legal dos Jogos Eletrônicos (Lei nº 14.852/24).
Em linhas gerais, o ECA Digital estabelece regras sobre verificação etária, supervisão parental, publicidade em meio digital, transparência dos produtos e serviços em ambiente digital, bem como atribui papéis estratégicos à Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), e define sanções em caso de descumprimento.
Verificação etária
Os desenvolvedores e distribuidores de jogos eletrônicos que têm incorporadas funcionalidades ou conteúdos que envolvam violência ou interatividade (ex., chat, compartilhamento de conteúdo audiovisual entre usuários, aba de comunidade), por exemplo, deverão atualizar seus mecanismos de verificação etária, de maneira a evitar seu acesso inadequado por crianças e adolescentes precocemente, inclusive de modo a impedir seu acesso aos ambientes para maiores de 18 anos.
Este é o caso de jogos no estilo Battle Royale (Free Fire), First Person Shooter (Counter Strike, Valorant), realidade aumentada (Pokémon GO), Multiplayer Online Battle Arena (League of Legends), Massively Multiplayer Online Role-Playing Game (Ragnarok Online, Genshin Impact) que, por exemplo, carregam consigo alguns destes recursos.
O ECA Digital determina a adoção de mecanismos para proporcionar experiências adequadas a cada faixa etária, respeitadas a autonomia progressiva e a diversidade de contextos socioeconômicos brasileiros. É esperado que os novos mecanismos de verificação etária a serem implementadas se baseiem no tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. Os dados tratados deverão ser utilizados unicamente para a verificação etária.
Além disso, os mecanismos de verificação etária devem ser ainda compatíveis com o nível elevado de privacidade e proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes “desde a sua concepção” (ou by design), observando-se também as determinações constantes da LGPD. Inclusive, recentemente a ANPD publicou a 5ª edição do Radar Tecnológico que justamente recomenda a adoção de estratégia que envolve o privacy by design (i.e., privacidade desde a concepção de produtos e funcionalidades) quando da operacionalização dos mecanismos de verificação etária
Supervisão parental
É mandatória a disponibilização de ferramentas de supervisão parental ativadas por padrão, acessíveis e fáceis de usar, permitindo limitação de tempo de uso, restrição de comunicação entre usuários, limitação de recursos para aumentar ou prolongar o uso e revisão regular de ferramentas de inteligência artificial.
Caso o jogo permita interações entre usuários (por mensagens de texto, áudio ou vídeo, ou troca de conteúdos), esta funcionalidade deve estar bloqueada por padrão, até que haja o consentimento dos pais. Também, a moderação de conteúdo deve ser implementada e ativada, para fins de prevenção a contatos nocivos e situações assédio envolvendo as crianças e adolescentes.
Jogos de estilos variados e até “multiestilos” (ex., Roblox) terão de viabilizar uma espécie de painel de controle para supervisão parental, e dar visibilidade acerca dos controles e restrições ativadas ao usuário (i.e., as crianças e adolescentes), como forma de cumprir com estas determinações.
Proteção de dados pessoais
Os desenvolvedores e distribuidores de jogos eletrônicos, bem como lojas de aplicativos de internet, deverão revisitar seus modelos de comercialização dos jogos — condicionando-a à autorização/consentimento parental. Isso porque o ECA Digital determina o consentimento dos pais ou responsáveis para se tratar os dados pessoais de crianças e adolescentes, bem como para autorizar o download de aplicativos por este público.
Contudo, atualmente o Enunciado ANPD nº 1/23 admite o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes com base em outras hipóteses legais que não o consentimento, desde que observado e prevalecente o seu melhor interesse. Este entendimento tende a ser revisitado, dada a nova dinâmica trazida pelo ECA Digital.
Ainda, o ECA Digital impõe aos fornecedores o dever de mapear riscos e elaborar um relatório de impacto, de monitoramento e de avaliação da proteção de dados pessoais para atividades envolvendo crianças ou adolescentes. Também se impõe o monitoramento contínuo destas medidas de proteção implementadas, incluindo privacidade e proteção de dados pessoais.
Estratégias de monetização (microtransações e loot boxes)
A realização de microtransações e uso de loot boxes nos jogos eletrônicos destinados a crianças e adolescentes, ou que podem ser por eles acessados, necessita de consentimento dos pais ou responsáveis desde 2024, com a publicação do Marco Legal dos Jogos Eletrônicos (Lei nº 14.852/24). O ECA Digital reforça esta obrigação, e vai além ao proibir expressamente as loot boxes (as caixas de recompensa).
Um dos pilares das estratégias de monetização dos jogos eletrônicos são as microtransações — que são todas as compras feitas por um jogador dentro de um jogo. São exemplos de microtransações: conteúdos adicionais que não estão disponíveis no jogo-base (as DLCs — downloadable contents); moedas in-game; itens in-game (cosméticos ou de performance); passes de temporada; tempo adicional, entre outros.
Nos jogos free to play, por exemplo, o acesso inicial é gratuito: o jogador pode realizar o download e começar a jogar sem qualquer custo. No entanto, para avançar em determinados níveis, desbloquear skins exclusivas, adquire itens adicionais ou habilitar recursos adicionais, é necessário realizar pagamentos dentro do próprio jogo. Esses valores costumam ser pequenos, mas representam uma das principais fontes de receita do setor.
Jogos mobile populares como Candy Crush Saga, Subway Surfers, Clash Royale e Brawl Stars, por exemplo, baseiam-se em microtransações para monetização de seu modelo de negócios.
Em paralelo, a venda de itens que conferem vantagens diretas a quem paga (ex., itens de performance), tornando o jogador mais forte do que aqueles que não comprar, é amplamente criticada. Esta prática dá origem ao modelo conhecido como pay to win, que tende a gerar frustração e abandono do jogo por parte da comunidade.
De toda forma, a comercialização de itens no contexto de jogos eletrônicos, seja in-game ou em marketplaces fora do ambiente de jogo, fica condicionada a estes elementos de verificação etária e consentimento/autorização parental, conforme aplicável, impactando vários players deste ecossistema.
Para jogos online que carregam consigo elementos que venham potencialmente ser caracterizados como loot boxes, como é o caso do Overwatch e o PUBG Mobile, escalonar sua disponibilização e acesso pode ser uma alternativa para manutenção e oferta dedicada apenas ao público habilitado para tanto — não abrangendo crianças e adolescentes.
Considerações finais
O ECA Digital representa um marco relevante na regulação da internet no Brasil. Fornecedores de jogos eletrônicos (ex., desenvolvedores, designers, distribuidores, lojas de aplicativos e marketplaces) precisarão se redesenhar para se enquadrar num padrão de proteção infantojuvenil digital robusto, para fins de conformidade.
Empresas que atuam nesse mercado devem implementar verificação etária confiável, privacy by design, supervisão parental efetiva, restrições a microtransações e relatórios de transparência. O novo marco legal exige responsabilidade digital e poderá diferenciar quem se adapta proativamente no mercado.
FONTE: CONJUR