Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

CONJUR: ECA Digital insere proteção infantil na governança de plataformas

sexta-feira, 31 de outubro de 2025, 16h25

A incorporação das tecnologias digitais no cotidiano das novas gerações representa um fenômeno irreversível e de múltiplas implicações sociais, culturais e jurídicas. A presença de crianças e adolescentes no ciberespaço tem crescido de forma exponencial, ampliando-se das experiências tradicionais com jogos eletrônicos e vídeos lúdicos até a participação ativa em ambientes interativos de redes sociais, transmissões ao vivo e até mesmo compras digitais. As novas gerações encontram nas plataformas online não apenas entretenimento, mas também formas de socialização, aprendizado e expressão. Essa inserção precoce e intensa no universo digital reflete a centralidade que a tecnologia adquiriu no cotidiano, transformando as telas em espaços de convivência, consumo e interação em tempo real com pessoas e conteúdos de alcance global.

 

Se antes a principal preocupação dos pais e responsáveis recaía sobre o tempo despendido diante das telas de televisão, hoje essa atenção se prolonga para os smartphones, tablets, computadores e quaisquer outros dispositivos conectados ao ciberespaço. Diferentemente da televisão, onde o fluxo de informação era predominantemente unilateral, os dispositivos móveis permitem que crianças e adolescentes participem ativamente da produção e da circulação de conteúdo, expondo-se a interações complexas, muitas vezes fora do alcance do monitoramento familiar. Nesse cenário, a vulnerabilidade é potencializada pela mobilidade e pelo caráter ininterrupto das conexões digitais.

 

A convergência entre consumo, exposição e vulnerabilidade faz do meio digital um ambiente fértil para o surgimento de riscos diversos, que vão desde a exposição a conteúdos inadequados e práticas de assédio até estratégias de exploração comercial predatória. Crianças e adolescentes, em razão de seu estágio peculiar de desenvolvimento biopsicossocial, apresentam menor capacidade crítica para distinguir intenções de mercado, perigos de interação e impactos emocionais derivados de experiências digitais. Tal realidade impõe a necessidade de reflexão jurídica, ética e social sobre como garantir um espaço digital que preserve oportunidades de aprendizado e lazer, mas que também minimize riscos e proteja os direitos fundamentais desse grupo etário.

 

O legislador brasileiro, atento a essas transformações e aos debates internacionais sobre regulação do ambiente digital, aprovou em 2025 o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente, consolidado na Lei nº 15.211. O diploma normativo busca estabelecer salvaguardas específicas para assegurar que o contato precoce e massivo de menores com o mundo digital não resulte em violações de direitos fundamentais, mas sim em oportunidades educativas e de participação social responsável. O presente artigo se propõe a analisar, de forma crítica e sistemática, as disposições dessa nova lei, refletindo sobre sua aplicação prática e os desafios que se colocam para seu cumprimento efetivo.

 

ECA Digital

 

O Estatuto Digital da Criança e do Adolescente parte de um núcleo principiológico robusto, inspirado no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais de 2018. Ao enfatizar a proteção integral, a prevalência do melhor interesse e a necessidade de assegurar um desenvolvimento biopsicossocial saudável, o legislador buscou garantir que o ambiente digital fosse permeado por limites éticos e legais voltados a resguardar a infância e a juventude. A norma impõe aos provedores de tecnologia deveres que ultrapassam a simples prevenção de riscos, exigindo que desde a concepção dos produtos e serviços sejam implementadas soluções técnicas de segurança e privacidade, configuradas de modo padrão no nível mais protetivo possível. Essa lógica de “privacy by design” e “privacy by default” obriga as empresas a reconfigurar arquiteturas digitais, desincentivando práticas como coleta excessiva de dados, perfilamento comportamental e estímulos ao uso compulsivo de aplicativos e jogos.

 

Entre os mecanismos centrais previstos pela lei, destacam-se a exigência de sistemas confiáveis de verificação de idade, a disponibilização de ferramentas de supervisão parental e a vedação de modelos de monetização considerados predatórios, como as chamadas loot boxes em jogos eletrônicos. Tais disposições respondem a uma preocupação global com o impacto do design digital na infância, que frequentemente explora vulnerabilidades cognitivas e emocionais dos menores. Por outro lado, a própria lei reconhece que tais medidas devem respeitar os princípios da minimização e da finalidade do tratamento de dados, de forma a evitar que soluções tecnológicas voltadas à proteção infantil resultem paradoxalmente em novas formas de vigilância ou de violação de privacidade. Essa tensão, presente em diversos dispositivos, será um dos maiores desafios interpretativos e práticos da implementação do Estatuto Digital.

 

 

 

No campo da publicidade digital,a norma proíbe de forma categórica a utilização de técnicas de perfilamento para direcionamento de anúncios a crianças e adolescentes, além de vedar o uso de tecnologias imersivas, como realidade aumentada e realidade virtual, para fins publicitários dirigidos a esse público. Essa vedação se soma à proibição da monetização e do impulsionamento de conteúdos que erotizem ou sexualizem crianças e adolescentes, reafirmando a intenção legislativa de coibir qualquer exploração comercial da imagem ou da vulnerabilidade psicológica desse grupo. Trata-se de um movimento regulatório que vai ao encontro de tendências internacionais, como as legislações da União Europeia voltadas à proteção de dados e do bem-estar digital infantil, e que impõe às plataformas digitais a necessidade de rever profundamente seus modelos de negócio.

 

A lei ainda disciplina mecanismos de moderação de conteúdo, prevendo a obrigação de remoção célere de materiais que violem direitos fundamentais de crianças e adolescentes, independentemente de ordem judicial, quando comunicados por vítimas, representantes legais ou Ministério Público. Embora essa previsão fortaleça a proteção imediata, também suscita preocupações quanto ao devido processo e ao risco de remoções excessivas. O estatuto busca mitigar esse problema ao garantir o direito de recurso por parte dos usuários que tiverem conteúdos removidos, exigindo transparência quanto aos critérios utilizados, inclusive na distinção entre análises automatizadas e humanas. Essa dupla exigência — proteção célere e devido processo digital — revela a sofisticação do diploma, mas também sua complexidade prática.

 

Importância de uma literacia digital

 

O Estatuto Digital da Criança e do Adolescente evidencia, em diversos de seus dispositivos, que a regulação jurídica, embora necessária, não é suficiente para dar conta da complexidade do ambiente digital. A simples imposição de deveres a provedores de tecnologia e a previsão de sanções contra práticas nocivas não eliminam, por si sós, a exposição de crianças e adolescentes aos riscos inerentes ao ciberespaço. Nesse sentido, a legislação aponta para a necessidade de políticas complementares que promovam uma verdadeira literacia digital, capaz de preparar os menores para compreender, avaliar e interagir de forma crítica com conteúdos e pessoas no meio online.

 

A literacia digital de crianças e adolescentes deve ser entendida como um instrumento de empoderamento, que vai além do uso técnico de dispositivos e aplicativos. Trata-se de capacitá-los a identificar situações de risco, reconhecer práticas de manipulação comercial, avaliar a veracidade de informações e distinguir interações seguras das potencialmente abusivas. Ao desenvolver tais competências, os jovens passam a exercer um papel ativo na sua própria proteção, tornando-se menos suscetíveis às armadilhas e vulnerabilidades que a legislação, sozinha, não é capaz de eliminar.

 

Assim, a integração entre regulação normativa e educação digital crítica permite fechar lacunas no ciclo de vulnerabilidade. Enquanto as leis estabelecem limites e responsabilidades externas — aplicáveis a empresas, plataformas e provedores de conteúdo —, a literacia digital atua na esfera interna, fortalecendo a autonomia e a capacidade de decisão dos próprios usuários em desenvolvimento. Essa combinação oferece uma abordagem mais abrangente de proteção, alinhada com os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente e da própria Constituição, que reconhecem a criança e o adolescente como sujeitos de direitos em processo contínuo de formação.

 

Por fim, é necessário compreender que políticas públicas de literacia digital não podem ser tratadas como medidas secundárias ou complementares, mas sim como parte integrante de um sistema de proteção integral. A formação crítica para o uso da tecnologia deve envolver escola, família e sociedade, com programas estruturados de educação midiática e campanhas de conscientização voltadas tanto para os jovens quanto para seus responsáveis. Somente a partir dessa conjugação de esforços será possível reduzir de maneira efetiva as vulnerabilidades no ciberespaço, promovendo não apenas a proteção, mas também a emancipação digital das novas gerações.

 

Conclusão

 

O Estatuto Digital da Criança e do Adolescente inaugura uma nova etapa da regulação do ambiente digital no Brasil, ao inserir a proteção infantil como eixo central da governança de plataformas, jogos eletrônicos e serviços tecnológicos. Sua implementação demandará esforços conjuntos do poder público, do setor privado e da sociedade civil, não apenas para assegurar o cumprimento das obrigações legais, mas também para promover uma cultura de cidadania digital. Ao mesmo tempo em que impõe restrições severas a práticas empresariais como perfilamento publicitário e uso de loot boxes, a lei abre espaço para a construção de soluções inovadoras em verificação de idade, supervisão parental e moderação responsável de conteúdo. Sua eficácia dependerá, contudo, da capacidade de equilibrar proteção e liberdade, evitando que medidas de segurança se convertam em novas formas de vigilância massiva ou em barreiras excessivas à inovação tecnológica.

 

Nesse contexto, cumpre destacar que a efetividade do Estatuto Digital dependerá também da implementação de políticas consistentes de literacia digital, capazes de formar crianças e adolescentes para uma convivência crítica e segura no ciberespaço. A educação digital, ao lado da regulação normativa, representa uma estratégia fundamental para que os menores compreendam os riscos, reconheçam práticas abusivas e desenvolvam autonomia no uso das tecnologias. Trata-se de um eixo indispensável de proteção, pois apenas a conjugação entre normas jurídicas e o empoderamento informacional dos indivíduos poderá reduzir, de maneira sustentável, a vulnerabilidade da infância e da adolescência diante das dinâmicas complexas do ambiente digital.

 

Mais do que um diploma normativo, o Estatuto Digital deve ser compreendido como um convite à reflexão contínua sobre o papel da tecnologia no desenvolvimento humano e sobre a necessidade de garantir que crianças e adolescentes possam usufruir do espaço digital de maneira segura, saudável e emancipatória.

 

 

FONTE: CONJUR

 


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