Estudo do CAOCRIM - MPSP - tema: Execução Provisória da Pena
terça-feira, 01 de outubro de 2019, 16h01
No HC 126.292, modificando orientação antes firmada, o STF considerou possível o início da execução da pena após o recurso em segunda instância.
No julgamento, considerou-se que a prisão após a apreciação de recurso pela segunda instância não desobedece a postulados constitucionais – nem mesmo ao da presunção de inocência – porque, a essa altura, o agente teve plena oportunidade de se defender por meio do devido processo legal desde a primeira instância. Uma vez julgada a apelação e estabelecida a condenação (situação que gera inclusive a suspensão dos direitos políticos em virtude das disposições da LC nº 135/2010), exaure-se a possibilidade de discutir o fato e a prova, razão pela qual a presunção se inverte. Não é possível, após o pronunciamento do órgão colegiado, que o princípio da presunção de inocência seja utilizado como instrumento para obstar indefinidamente a execução penal. Considerou-se, ainda, a respeito da possibilidade de que haja equívoco inclusive no julgamento de segunda instância, que há as medidas cautelares e o habeas corpus, expedientes aptos a fazer cessar eventual constrangimento ilegal.
O tema voltou à pauta do tribunal por meio das ADC 43 e 44, nas quais se pretendia a declaração de constitucionalidade do art. 283 do CPP, segundo o qual “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Pretendia-se, com isso, evitar os efeitos da decisão tomada no habeas corpus já citado, ou seja, que a prisão se tornasse possível após o julgamento de recursos em segunda instância.
O objetivo não foi, todavia, alcançado, pois o STF conferiu ao art. 283 do CPP interpretação conforme para afastar aquela segundo a qual o dispositivo legal obstaria o início da execução da pena assim que esgotadas as instâncias ordinárias.
Contrariamente à implantação da medida, o primeiro obstáculo que se opunha era exatamente o princípio da presunção de inocência. Argumentava-se que sem o trânsito em julgado a execução da pena infringia o disposto no art. 5º, LVII, da CF, contrariando postulados de direito penal garantista.
Considerou-se, no entanto, que a presunção de inocência tem sentido dinâmico, modificando-se conforme se avança a marcha processual. Dessa forma, se no início do processo a presunção pende efetivamente para a inocência, uma vez proferido julgamento em recurso de segunda instância essa presunção passa a ser de não culpa, pois, nessa altura, encerrou-se a análise de questões fáticas e probatórias. Portanto, uma vez que o tribunal (TJ/TRF) tenha considerado bem provados o fato e suas circunstâncias, os recursos constitucionais não abordarão esses aspectos, pois estarão adstritos aos limites que lhe são impostos constitucional e legalmente.
Além disso, deve-se refletir a respeito do conceito de trânsito em julgado no processo penal, que o Código de Processo Penal não estabelece e que, parece-nos, não pode ser tomado de empréstimo do Código de Processo Civil. O conceito de trânsito em julgado no processo penal não está relacionado ao esgotamento de todos os recursos, mas ao esgotamento da análise fática, como, aliás, ocorre em outros países igualmente democráticos em que operam cortes constitucionais – cujos recursos têm efeitos rescisórios – e nos quais é inconcebível que um condenado em segunda instância aguarde o pronunciamento de cortes superiores para iniciar o cumprimento da pena. Não fosse isso o bastante, pressupor, no processo penal, o encerramento de todas as formas recursais tornaria inalcançável o trânsito em julgado porque a revisão criminal está elencada entre os recursos.
Impedir a execução imediata exigindo que se esgotem também os recursos constitucionais impõe diversos efeitos deletérios: a) incentiva a seletividade penal, pois, sabe-se, não são todos que dispõem de condições financeiras para suportar os custos de um processo até tribunais superiores. Ao mesmo tempo, as defensorias públicas nem sempre têm estrutura para atender à demanda daqueles que não têm capacidade financeira; b) incentiva a proliferação de recursos especiais e extraordinários com intuito meramente protelatório, que inundam os tribunais superiores e que na maior parte das vezes não surtem nenhum efeito a não ser mesmo adiar a execução da pena; c) agrava o descrédito que a sociedade nutre pelo sistema penal, pois veem-se réus autores de crimes muitas vezes gravíssimos permanecerem soltos por anos e anos, estendendo demasiadamente o lapso entre a prática do crime e o cumprimento da pena, que aliás muitas vezes sequer é alcançado diante do comum reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. Arruínam-se, portanto, os objetivos da pena, não só em relação ao condenado (retribuição, ressocialização e prevenção especial) como também aos demais membros da sociedade (prevenção geral).
Argumentava-se também que a execução da pena em seguida ao pronunciamento da segunda instância contrariava o disposto no art. 5º, LXI, da CF, segundo o qual “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (...)”. O dispositivo não impõe, no entanto, nenhum óbice à execução imediata da pena – embora o constituinte pudesse tê-lo feito, caso considerasse necessário –, até porque o que se busca impedir por meio de uma garantia segundo a qual não há prisão a não ser em flagrante ou decorrente de ordem judicial é evidentemente a prisão arbitrária, imposta por abuso de autoridade, portanto à margem da lei, o que definitivamente não se aplica à prisão determinada por um órgão colegiado de julgadores.
Outro argumento utilizado por aqueles que pretendiam impedir a execução imediata da pena é o incremento do caos carcerário que essa medida pode causar. Utilizou-se, aliás, um pronunciamento do próprio STF na ADPF 347, segundo o qual o sistema penitenciário brasileiro deveria ser caracterizado como “estado de coisas inconstitucional” diante da massiva violação de direitos fundamentais ocorridas nas unidades prisionais. Determinar, portanto, a execução adiantada da pena levaria ainda mais condenados a se submeter à violação de direitos.
No entanto, embora se reconheça a existência de graves problemas estruturais no sistema penitenciário, deve ser ressaltado que isso não guarda relação direta com a execução da pena, mas decorre da multiplicação de prisões cautelares sobre fatos que, não raras vezes, carecem de maior importância. Não se justifica que, em virtude de decisões judiciais reversíveis, de natureza precária, impeça-se o cumprimento de outras decisões que, sobre os fatos e as provas, são definitivas.
Sabendo que o crime doloso contra a vida é julgado, já em primeiro grau, por órgão colegiado -jurados- e soberano (art. 5º. XVIII, CF/88), cabe execução penal provisória da pena após condenação perante o Conselho de Sentença?
O ministro Luis Roberto Barroso, compondo a 1ª Turma do STF, no julgamento do HC 118.770, em 7/3/2017, abriu divergência que foi acolhida por maioria de votos. Destacou que "[...] a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação pelo Tribunal do Júri, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri, e o Tribunal não pode substituir-se aos jurados na apreciação de fatos e provas (CF/88, artigo 5º, XXXVIII, c), o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar (CF/88, artigos 5º, caput e LXXVIII e 144). Assim, interpretação que interdite a prisão como consequência da condenação pelo Tribunal do Júri representa proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas".
Partiu-se, portanto, da premissa de que, face à soberania que é inerente ao Tribunal do Júri, decorrente de expresso texto constitucional nesse sentido (art. 5º, inc. XXXVIII, "c" da Carta), seria admitida a imediata prisão do réu, assim que condenado pelo Tribunal popular.
Publicado no site do MPSP (Boletim Semanal de agosto - semana nº 4)