In dubio pro vita
segunda-feira, 04 de novembro de 2019, 11h03
Ninguém ousa negar que a vida é inviolável. O Direito - natural, internacional e nacional - protege a existência humana. É verdade consolidada que qualquer ser vivo nascido de mulher é – e deve sempre ser - tutelado juridicamente pelo Estado. Se todos têm direito à vida, todos também têm o dever de não matar.
Com efeito, o primeiro artigo da parte especial do Código Penal brasileiro trata sobre o homicídio, em suas variadas formas. O texto busca a todo tempo proteger e reafirmar a vida humana. Para tanto, impõe a aplicação de pena privativa de liberdade para quem, deliberadamente, atacar a vida de outrem e, por conseguinte, violar a norma mínima não matarás.
A reprovação penal é calibrada pelo motivo, meio, modo ou finalidade do crime. Pode haver, então, maior responsabilidade do agente.
É verdade que, na parte geral desse mesmo Código, coexistem engenhos jurídicos que afastam ou minoram a responsabilidade criminal de quem se levantou contra o direito de viver.
No Brasil, é o Tribunal do Júri, mais especificamente o Conselho de Sentença composto por 7 pessoas, que julga os crimes intencionalmente praticados contra a vida humana.
A simples observação de uma sessão de julgamento popular ensina que uma das frases mais citada é a in dubio pro reo. Ou seja, quase sempre a defesa invoca a presença de dúvida em busca de um resultado favorável ao acusado.
Todavia, quase nunca se ouve in dubio pro vita. E a razão disso é muito simples: consumado o delito, o acusado vira o centro das atenções à custa do esquecimento da vítima. O direito à vida, que é o protagonista a ser tutelado pelo Estado e a sociedade, é relegado, quando muito, ao papel de mero coadjuvante.
Noutras palavras, os jurados, espantados pelo fantasma da dúvida manipulado pela defesa, podem fazer com que o Tribunal do Júri abandone sua vocação de reafirmação da vida e defesa do corpo social e passe a ser fábrica de impunidade.
Aliás, há dois tipos de leituras ou interpretações de um artigo de lei: primeiro, o que respeita o texto e compreende sua finalidade; segundo, o que quer simplesmente extrair benefícios indevidos do texto. Não custa lembrar que um texto fora do contexto vira pretexto para atender aos anseios equivocados do intérprete.
Bem por isso, é vital que os olhos sejam voltados e fixados ao princípio do in dubio pro vita. Diante de crime doloso contra a vida, é de suma importância que se extraia do texto legal a interpretação que conceda máxima efetividade à tutela da vida humana e jamais naquela que distribui benesses ao violador do direito à vida.
Com efeito, instalada a dúvida na interpretação da lei, deve ela ser resolvida em favor da vida.
Assim, sem maior esforço mental, vê-se que os requisitos da legítima defesa, do homicídio emocional ou qualquer outro instituto que afaste ou diminua a responsabilidade do agente devem estar devidamente comprovados no processo, para que possam incidir no caso penal. E, por óbvio, o ônus da prova é de quem alega. E mais: não se pode permitir a flexibilização ou customização de vocábulos legais para atender aos anseios do homicida em detrimento do direito à vida.
Não por outra razão que, a título de exemplo, termos como “moderadamente”, “meios necessários’, “injusta agressão”, “agressão atual ou iminente”, “sob o domínio”, “violenta emoção”, “logo em seguida” e “injusta provocação” (artigos 25 e 121, §1º, do Código Penal) devem ser interpretados de forma restritiva, sem elastérios, e que haja comprovação cabal no conjunto de provas. A interpretação deve ser em prol da reafirmação do direito à vida e, doutro lado, como censura a quem se levantou contra esse superdireito.
Vale dizer, o direito de existir não pode ser desprezado ao sabor das conveniências daqueles que lucram com a impunidade.
Em decorrência disso, importa reconhecer e dizer alto e bom som que se apegar ao in dubio pro reo nesses casos é optar deliberadamente por ser cúmplice da impunidade e do malbaratamento da vida.
Cabe aqui um parêntese para espancar qualquer mal-entendido. É evidente que o princípio do in dubio pro reo informa a apreciação da prova, principalmente nos casos de inexistência de elementos probatórios além de qualquer dúvida razoável acerca da autoria e participação no delito. O que não se pode admitir é o reconhecimento de causa excludente ou minorante da responsabilidade criminal sem que haja respaldo probatório no processo. Havendo dúvida, esta deve ser resolvida em favor da vida e não em benefício do criminoso, mesmo porque o ônus da prova em demonstrar tal incidência lhe incumbia.
Logo, uma conclusão absolutamente segura se impõe: o Direito descrito na letra fria do texto legal precisa transformar-se em realidade eficiente e não pode distanciar-se do que é vivido pelo povo, que está em um barco à deriva, navegando por um rio caudaloso de sangue humano frente aos índices bárbaros de assassinatos no país. E é a interpretação jurídica comprometida com a vida que dará vida ao texto para reafirmar a própria vida. Para tanto, o mantra defensivo do in dubio pro reo deve ceder lugar ao princípio do in dubio pro vita nos plenários dos Tribunais do Júri do país afora.
César Danilo Ribeiro de Novais
Promotor de Justiça - MPMT