O olhar de Renner sobre MT
segunda-feira, 04 de julho de 2005, 00h00
ÂA abertura da 12ª Reunião Ordinária do Grupo Nacional de Combate À s Organizações Criminosas-GNCOC, ganhou um toque especial com a poesia e leveza de Mauro Henrique Renner. Ele veio de longe. Lá das terras dos pampas, encheu o peito com a beleza da história mato-grossense. Nossas raízes! E conseguiu oxigenar idéias. Com vocês, a sensibilidade do sub-procurador-geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e presidente do GNCOC.
DISCURSO DO DR. MAURO HENRIQUE RENNER
A escolha de uma data envolve sempre algum conteúdo arbitrário. Poderia remontar literalmente aos primórdios, ao constatar, com a equipe de pesquisadores franco-brasileiros, a presença do homem há 27 mil anos em Mato Grosso, na Fazenda Santa Elina, À 70km de distância desta cidade, à e evocar a sensibilidade e beleza da pintura rupestre de nossos ancestrais.
Talvez fosse o caso de rastrear a trilha dos espanhóis, que cruzaram primeiro, mas não povoaram estas terras.
Prefiro, contudo, um ponto convencional, que nos faz recuar cerca de 300 anos e assistir aos bandeirantes paulistas, agora sim, conquistarem e povoarem Mato Grosso.
O móvel da cobiça foi o ouro À s margens do Rio Coxipó e também uma mercadoria abundante nos sertões brasileiros: os índios, que eram aprisionados e levados para São Paulo para trabalho escravo.
O achado aurífero fez acorrer grande quantidade de pessoas das mais variadas partes da Colônia. O ouro começou a ser encontrado em grande quantidade, exercendo poderosa atração migratória.
Nesse contexto, no dia 08 de abril de 1719, o bandeirante Pascoal Moreira Cabral designado Guarda-mor das Minas, fundou Cuiabá, com o surgimento do Arraial de Forquilha.          Â
Vieram novas descobertas, as lavras do Sutil, rica jazida encontrada nas proximidades do córrego da Prainha e da Colina do Rosário, onde foi construída a histórica igreja do Rosário.
Administrativamente, as minas de Cuiabá ficaram subordinadas ao governo da capitania de São Paulo, cujo governador mudou-se temporariamente para cá, quando elevou-a À categoria de Vila, intitulando-a  â??Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabáâ?.
Arrocho fiscal, aumento de impostos, foi uma de suas primeiras  providências, â??medida que afugentou muitos moradoresâ? para Goiás, outros saíram em busca de novas minas e alguns retornaram À Vila de São Paulo.
Com isso, mais a queda na produção e a baixa qualidade do ouro, veio a estagnação que não impediu, por Carta Régia de 1818, que Cuiabá virasse Cidade e, a seguir, em 1835, após superar forte disputa pelo poder com Vila Bela Santíssima Trindade,  tornou-se Capital, em meio a uma reconversão agrícola.
Depois da Guerra do Paraguai e do esforço de urbanização, firma-se a cidade como avançado pólo do interior brasileiro, que ganhou novo impulso ao final da década de 30, com a â??Marcha para o Oesteâ?, no bojo da política de integração nacional do Governo Federal.
E permitam, nessa altura, o registro afetivo, já que boa parte dos neodesbravadores foi composta de gaúchos à a primeira avenida chamou-se, não por acaso, Avenida Getúlio Vargas.
Já na década de 60, Cuiabá apresenta-se como o â??Portal da Amazôniaâ? e consolida-se como o maior centro urbano do oeste brasileiro, mas mantém, no nome, o charme da origem, â??Ikuiapáâ?, a localidade onde os índios bororós pescavam com flecha-arpão.
Em síntese, uma cidade brasileira, com nossas riquezas e nossas dificuldades.
Com uma prática política assim descrita ao final do século XIX pelo naturalista alemão Karl Von den Steinen: â??Os habitantes fazem política e vivem das somas que o tesouro lhes fornece. Um cargo ou mesmo um cargozinho qualquer é objeto de toda ambição e toda especulaçãoâ?.
Uma â??terra noiva do solâ?, no dizer do hino, â??limitando, qual novo colosso, o ocidente do imenso Brasilâ?, que nos legou o Marechal Rondon, herói imbatível da integração nacional; que foi decisiva na redemocratização, com a iniciativa da emenda das â??Diretas Já!â?.
E se nos remete aos problemas, antigos como os â??brasiguaiosâ?, ou aos recentes, como o gasoduto Bolívia/Brasil, mantém a alegria e a energia que emanam do rasqueado dançados pelos cuiabanos.
Estamos, portanto, já não bastasse a hospitalidade do povo, em casa.
Gostaria, então, de aportar em 2005 a partir do olhar estrangeiro, daquele etnólogo alemão citado que flagrou as mazelas da nossa estrutura política, lá nos idos de 1880. Porque é inerente ao conceito de organizações criminosas o fato de se infiltrarem no aparelho do Estado e, alavancadas na corrupção, perpetuarem a senda delitiva e garantirem a impunidade.
Mas este é um combate cultural que, À medida em que a cidadania amadurece e as instância de controle democrático aperfeiçoam-se, podemos vencer.
Este patamar de esperança pode ser testemunhado aqui mesmo, do solo matogrossense, que foi capaz de estancar as atividades criminosas do lado obscuro de um â??Comendador Arcanjoâ?, estrangulado e paralisado  à um verdadeiro garrote viril estabelecido a partir da ação corajosa e consistente de agentes do Ministério Público e de força tarefa, que fizeram  com que se refugiasse no Uruguai.
E se a erva daninha se alastra, sempre é tempo para novas ações, cortar na carne do Ibama, por exemplo, cujos funcionários corrompidos permitiam que a floresta se esvaísse, num crime de lesa-pátria.
A luta contra a rapina, colegas do Ministério Público, como já disse em Vitória, em nossa última reunião, e repito com veemência em Cuiabá, no desejo de ser ouvido pela população brasileira, a luta, dizia, contra a espoliação de nossas riquezas, contra o roubo descarado, contra a pirataria institucionalizada, esse combate inspirou nossa formação, histórica (como país) e operacional (como Grupo de Combate À s Organizações Criminosas).
Hoje, mais que nunca, é o que a população espera de nosso trabalho. Que ajudemos a acabar com a saúva! É ainda mais urgente do que ontem que nosso foco pragmático dirija-se À depuração da cena pública brasileira.
Justamente, e paradoxalmente, no momento em que a população mais exasperada brada por ética, é que assistimos ao paroxismo de uma estrutura arcaica, infiltrada no Estado brasileiro, agigantar-se contra a coisa pública e sem qualquer receio de errar  destaco o  triste diagnóstico, o refluxo institucional no combate À improbidade.
Uma série de intervenções legislativas, produto deste Congresso assolado pelas últimas denúncias cruzadas oriundas do próprio meio político à é preciso transparência republicana, precisamos contar ao povo e aos meios de comunicação à, uma sucessão de leis nefastas vai nos sufocando  e impedindo uma ação célere e eficaz contra a corrupção, o outro nome da criminalidade organizada.
Com acintosa brevidade, vamos percorrer este trajeto... O combate À corrupção, é intuitivo, está associado À repressão criminal das condutas, quer dizer, precisamos lançar mão da drástica carga de estigmatização do direito penal para coibir tais condutas de rapina.
Mas a pena privativa de liberdade, no Brasil e nos atuais patamares legislativos, não se destina aos agentes corruptos, beneficiados com penas alternativas que acabam oscilando entre cestas básicas e prestação de serviços À comunidade.
Aliás, mesmo na exceção, os maus agentes políticos ou empresariais eventualmente presos ficarão pouco tempo encarcerados à oriundos de um extrato social que garante primariedade e bons antecedentes, em breve gozarão dos alentados benefícios da execução penal, resultado sistemático do pacote de bondades legislativas.
O passo que a sociedade espera, para acabar com a crescente sensação de impunidade, é perseguir os atos de corrupção além da esfera penal, e alcançá-los como atos de improbidade administrativa, baseados na Lei nº 8.429/92, este sim um diploma legislativo severo, que prevê sanções extrapenais: perda de bens ou valores em caso de enriquecimento ilícito, ressarcimento integral do dano, multa civil, perda da função pública e proibição de contratar com o Poder Público e receber benefícios fiscais ou creditícios à como manda a Constituição, diga-se de passagem.
Mesmo que houvesse tudo isso, todavia, os resultados, atualmente, continuariam incertos à essa a gravidade do quadro institucional. Primeiro porque nossa própria atribuição investigativa permanece sub judice no STF.
A mesma Corte Suprema está por concluir julgamento, com resultado parcial desfavorável para a cidadania, no sentido de blindar os agentes políticos, que teriam imunidade em relação À lei da improbidade e responderiam, apenas, por crimes de responsabilidade. Some-se a Lei nº 10.628/2002, último presente de natal do anterior governo federal, que concedeu foro privilegiado a determinados agentes políticos em relação À lei da improbidade, mesmo quando já cessado o exercício da função pública, centralizando nas cúpulas judiciárias, o processo e julgamento da improbidade.
Questiona-se a constitucionalidade de tais prerrogativas no STF, mas, até lá, a norma é válida.
Resta-nos, colegas, sem renunciar ao esclarecimento da opinião pública mercê de um consistente discurso institucional no rumo da Reforma Política, reiterar as estratégias: aprofundar a indispensável integração nacional do Ministério Público e envidar ainda mais esforços para recrudescer o combate À s organizações criminosas; conviver com metas, tão modestas quanto exeqÀ¼íveis, resultados concretos aferíveis no tempo e no espaço; recuperar um pouco do sentimento de urgência operacional que está na gênese de nosso grupo.
É a agenda da eficácia à mais ação e menos teoria.
Percebe-se que avançamos neste sentido, pela própria pauta de trabalhos, onde constam agendamentos de ações operacionais. Este é o caminho.
Assim renova-se a esperança. Espero que, em Cuiabá, afiemos a flecha-arpão, hábil o suficiente para atingir os mais abusados tubarões. Com o que, tenho convicção, 120 longos anos depois, as observações do alemão Steinen poderão ser citadas como anacrônicas.
Cumprimentos a todos. Contem, sempre, com o Ministério Público brasileiro.
Muito obrigado.
Mauro Henrique Renner
Presidente do Grupo Nacional de Combate À s organizações Criminosas à GNCOC.
Sub-procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul