Crime sexual: Procurador de Justiça destaca avanços na alteração do Código Penal
quarta-feira, 19 de agosto de 2009, 00h00
A partir de agora, com a publicação da Lei 12.015/2009, a apuração dos crimes praticados contra a dignidade sexual não depende mais da iniciativa da vítima ou de seus responsáveis. A ação penal, que nesses casos tinha um caráter privado, passou a ser pública. Ou seja, a ação deixa de pertencer a família da vítima e passa a ser da competência do Ministério Público.
“Antes da Lei 12.015/2009, se houvesse um crime contra menor de 14 anos de idade e não tivesse havido lesões corporais, as autoridades que tomassem conhecimento do fato não podiam agir, pois a ação era particular. Sem a manifestação da vítima ou de seu responsável, o delegado estava impedido de instaurar o inquérito para apurar o fato e o promotor de Justiça, por sua vez, não tinha como oferecer a denúncia em juízo”, explicou o titular da Procuradoria Especializada Criminal, procurador de Justiça Mauro Viveiros.
Segundo ele, a nova lei trouxe uma série de avanços. Na entrevista a seguir, o procurador de Justiça fala sobre as principais conquistas e os reflexos perante à sociedade.
Quais foram os outros avanços?
Viveiros: Como exemplo, podemos destacar a fusão dos crimes de estupro e o de atentado violento ao pudor numa figura única, sem distinguir o sexo da vítima. Constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal, praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é crime de estupro, independentemente de ser a vítima homem ou mulher. Outro ponto muito importante e essencial é o tipo específico chamado de estupro de vulnerável.
O que é estupro de vulnerável?
Viveiros: O estupro de vulnerável é a pratica de relações sexuais ou ato libidinoso com menor de 14 anos ou com pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. E a pena é de 8 a 15 anos de reclusão.
Essa figura penal é muito importante porque elimina aquela discussão que existia na jurisprudência acerca do constrangimento da vítima por razão de idade. Não se fala mais em violência; a simples prática de relação sexual ou ato libidinoso com menor de 14 anos é suficiente para a consumação do crime, o que protege muito mais a criança e o adolescente.
A nova lei trouxe penas mais severas?
Viveiros: A pena básica, do tipo fundamental do crime de estupro é a mesma. No entanto, a lei estruturou melhor as sanções de acordo com a idade e o resultado. Ou seja, crime comum praticado com menor de 14 anos, a pena é de 08 a 15 anos de reclusão. Mas se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave, a pena sobe de 10 a 20 anos de reclusão. E se da conduta resulta morte, a pena é de 12 a 30 anos de reclusão. De maneira que se elimina, assim, outra discussão que havia na jurisprudência, se devia, ou não, aplicar a lei de crimes hediondos no caso de menor de 14 anos, independente do resultado (lesão corporal ou morte). Agora, com a nova lei, fica claro que havendo lesão corporal a pena é maior, e se resulta na morte da vitima, a pena pode chegar até 30 anos de reclusão.
A nova lei diminui as possibilidades de interpretações distintas?
Viveiros: Como toda lei nova, ela está sujeita a interpretações distintas, mas nós estamos imaginando que haverá pouco espaço para interpretações que venham a desproteger a criança e o adolescente. Na realidade, as penas não foram diminuídas, mas ao contrário, elas foram agravadas pela nova lei. Então não há risco, por exemplo, de que o condenado pela lei velha venha se beneficiar da lei nova. Não vejo possibilidade de se aplicar retroativamente a nova lei, que é mais grave, censurando muito mais eficazmente as condutas, sobretudo daqueles que tiram um proveito da miséria e da desgraça alheia. Por exemplo, o art 218, quando fala do favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável, de criança menor de 14 anos, mantém uma pena básica de quatro a 10 anos de reclusão, mas se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também pena de multa. Incorre nas mesmas penas quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 anos e maior de 14 anos nessa situação descrita. Ou seja, a partir de agora, ao contrário do que acontecia antes, quem praticar ato libidinoso ou relações sexuais com menor de 18 anos, mesmo que essa pessoa já tenha se corrompido por meio da prostituição, comete crime e a pena varia de 04 a 10 anos.
Então, antes dessa nova lei, praticar relação sexual com maior de 14 e menor de 18 anos que já havia se prostituído não era crime?
Viveiros: Antes havia uma discussão sobre o assunto e, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça absolveu um caso concreto no Estado do Mato Grosso do Sul, justamente porque não havia essa previsão legal com clareza, ou seja, entendeu-se que naquele caso o indivíduo que praticou relações sexuais consentidas com menor de 18 anos não cometia crime. Ele havia sido acusado e condenado pelo Tribunal pelo tipo previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente que previa a figura do favorecimento da prostituição. E o STJ entendeu que esse tipo de crime só praticava quem efetivamente tirava proveito econômico da exploração do menor, não aquele que simplesmente praticava relações sexuais. Note-se que a nova lei, de maneira bastante positiva, inova criminalizando a conduta dos clientes das casas de prostituição, pois estes, como consumidores dos serviços sexuais, são considerados pela lei como os fomentadores desse mercado deplorável.
E quais são as penalidades previstas para os donos de estabelecimentos comerciais que são coniventes ou estimulam a prostituição de menores?
Viveiros: A lei mantém uma punição, que já vinha na lei anterior, para aqueles que são os responsáveis, gerentes ou proprietários dos locais em que se verificam essas práticas de prostituição. Quem responde pelo estabelecimento incide nas mesma penas previstas, ou seja, de 04 a 10 anos de reclusão. Além de praticar esse crime, constitui efeito obrigatório da condenação, a cassação da licença de funcionamento. Motéis, por exemplo, que recebem menores de idade estão sujeitos a essas sanções.
A solicitação do documento de identidade na entrada do motel é legal?
Viveiros: Pedir identidade em motel é um dever jurídico, uma obrigação do gerente. Ele não pode receber em seu estabelecimento um menor de idade. Nenhum menor pode entrar em uma boate, ou ver um filme proibido para menores; por que poderia entrar em um motel? Evidentemente que não pode.
E em relação aos casos em que menores de 18 anos passam a viver maritalmente?
Viveiros: É preciso examinar sempre a lei como um programa constituído de valores sociais que precisam ser preservados. No entanto, sua aplicação prática depende de uma série de circunstâncias do mundo real. Por exemplo, o direito penal é o direito da culpa, é o direito do fato, é preciso que o indivíduo pratique um fato que seja penalmente previsto e é preciso que em princípio ele tenha agido dolosamente, com vontade de transgredir os valores previstos na norma. Praticar relações sexuais consentidas com maior de 14 anos, não é crime. A lei permite que o maior de 14 anos tenha disponibilidade da sua sexualidade. Já os menores de 14 anos jamais, nunca. Esse é o divisor de águas, casos concretos poderão existir em que menores de 14 anos estejam em regime de concubinato, serão exceções que precisam ser avaliadas caso a caso, a fim de verificar se efetivamente existe o chamado elemento subjetivo, a intenção de cometer a violação da norma penal.
Havia divergências nos tribunais nos casos em que o crime era praticado contra vítimas menores com aparência de mulheres adultas. A nova lei trata dessa problemática?
Viveiros: A lei procurou tratar essa questão de maneira inteligente, na medida em que criou um tipo específico, que é o chamado estupro de pessoa vulnerável, no qual já não mais exige que haja constrangimento para a vítima, que ela tenha sido forçada a praticar relações sexuais. A lei não cogita mais disso. Não interessa mais saber se a vítima foi ou não forçada. Tendo havido conjunção carnal ou ato libidinosos com menor de 14 anos caracteriza-se crime do artigo 217 A do Código Penal e a pena é de 08 a 15 anos. Como não se coloca mais na lei a exigência do constrangimento, também já não é necessário falar da presunção de violência. Quando se tratava de menor de 14 anos, a lei dizia: presume-se que houve violência porque ela era menor de 14 anos. Agora a lei não precisa mais dizer isso porque não existe mais o verbo constranger que indica violência. A lei se contenta em dizer ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos para se consumar o crime. Então essa questão sobre se a vítima tinha uma compleição física avantajada, parecia adulta, certamente que em alguns casos essa discussão ainda poderá persistir, mas com menor intensidade porque fica evidenciado hoje pela simples leitura do texto e a lei é publicada e a ninguém é dado ignorar a existência da lei, fica claro que praticar relações sexuais com menor de 14 anos já constitui o crime de estupro de vulnerável e a pena realmente é alta .
Qual foi a sistemática adotada na nova lei em relação à gravidade das penas?
Viveiros: Antes da lei, o crime de estupro praticado contra adulto ou contra menor de 18 anos tinha a mesma pena. Hoje a lei estruturou melhor as sanções. Na realidade o que nós vemos de acordo com a nova lei, praticar, constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal ou outro ato libidinoso, está sujeito a uma pena de 06 a 10 anos de reclusão. Esse tipo é para todas as pessoas, independente da idade. O que significa dizer que se a vítima é maior de idade, a pena será essa de 06 a 10 anos. Mas, por exemplo, no caso do estupro de vulnerável a pena já se inicia com oito anos de reclusão, podendo ir até 15 anos de reclusão, porque nesse crime a vitima é menor de 14 anos. Então, quanto mais baixa a idade da vítima maior a pena; e também uma outra combinação inteligente é a do resultado. Quanto mais grave o resultado maior a pena, o que é perfeitamente proporcional.
Em sua avaliação, a Lei 12.015/2009 retrocedeu em algum ponto?
Viveiros: A princípio, em uma leitura objetiva da lei, eu não vejo retrocessos; ao contrário, acho até que os vetos que foram opostos pelo Presidente da República melhoraram a lei, porque eliminou-se a possibilidades de conflitos e interpretações equívocas que beneficiariam os réus. De uma maneira geral, acredito que a lei é bastante positiva, mas nós temos um longo caminho a percorrer. Precisamos, agora, nos preparar para prevenir esse tipo de ocorrência criminosa. É preciso compreender que isto é um escândalo nacional. A polícia precisa estar aparelhada, treinada e preparada para atuar em sintonia com os conselhos tutelares e os conselhos da comunidade. O cidadão precisa ser um denunciante, um soldado a serviço da prevenção e do combate à criminalidade, ajudando a sociedade. A lei procura dar um duro golpe justamente naqueles que exploram a sexualidade. Muda-se inclusive o título desses crimes. Passa-se, portanto, a falar em crimes contra a dignidade sexual, não apenas contra a liberdade sexual. Precisamos trabalhar para prevenir. Esse é o caminho.