Ministério Publico do Estado de Mato Grosso

Jurisprudência TRF 3ª Região - Redução de jornada de trabalho. Mãe de criança portadora de transtorno do espectro autista. Incidência da convenção internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência. Possibilidade

segunda-feira, 09 de maio de 2022, 12h49

AUTORA MÃE DE CRIANÇA PORTADORA DE TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA. PLEITO DE REDUÇÃO DA JORNADA, SEM REDUÇÃO DA REMUNERAÇÃO OU COMPENSAÇÃO DE HORÁRIO. INCIDÊNCIA DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA (DECRETO 6.949/09) E DA POLÍTICA BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (LEI 13.146/15). ADAPTAÇÃO RAZOÁVEL DA JORNADA REGULAR. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 93, §§ 2º E 3º, DA LEI 8.112/90. De acordo com o art. 227 da CRFB, constitui dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outros, o direito à vida, à saúde, à dignidade, além de coloca-los à salvo de toda forma de negligência ou discriminação (caput), incumbindo ao Estado a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, inclusive com a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos (§ 1º, II). Evidenciando-se dos autos que a obreira é mãe de criança portadora de transtorno do espectro autista que demanda cuidados intensivos, impõe-se aplicação ao caso de adaptação razoável da jornada regular (e que não acarrete ônus desproporcional e indevido à empresa), a fim de que se possa assegurar ao menor deficiente todo tratamento necessário ao seu desenvolvimento/habilitação e cuidados com a saúde (arts. 3º, VI, 4º, § 1º, 5º e 8º da Lei 13.146/15 - Estatuto da Pessoa com Deficiência), a exigir o acompanhamento/presença da genitora, incidindo analogicamente no caso (art. 8º da CLT), inclusive sob o influxo do que dispõe a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CIDPD - Decreto 6.949/09), o comando inscrito no art. 98, §§ 2º e 3º, da Lei 8.212/90, que estipula a concessão de horário especial ao servidor da União que seja portador de deficiência ou que tenha cônjuge, filho ou dependente nessas condições, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, e independentemente de compensação de horário, porquanto a recusa de proceder a adaptação razoável também constitui forma de discriminação contra a pessoa com deficiência. Vale destacar que a MGS Minas Gerais Administração e Serviços S.A. é empresa pública integrante da Administração Indireta do Estado de Minas Gerais, divisando-se, pois, sua condição especial de empresa estatal, por vinculada ao indigitado ente político, que assume, em comunhão com os demais entes que conformam a República Federativa do Brasil, peculiar regime de observância dos compromissos constitucionais/internacionais e políticas pautadas em âmbito nacional destinadas à promoção da saúde e desenvolvimento da pessoa com deficiência, aplicando-se a CIDPD "sem limitação ou exceção, a todas as unidades constitutivas dos Estados Federados" (art. 4º, item 5).(TRT3 - RO: 00108500520215030185 MG 0010850-05.2021.5.03.0185, Relator: Marcelo Lamego Pertence, Data de Julgamento: 30/03/2022, Oitava Turma, Data de Publicação: 31/03/2022.)

  PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA DO TRABALHO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 03ª REGIÃO

 

PROCESSO nº 0010850-05.2021.5.03.0185 (ROT)

RECORRENTES: 

RECORRIDOS: 

RELATOR: DESEMBARGADOR MARCELO LAMEGO PERTENCE

 

 

EMENTA

 

AUTORA MÃE DE CRIANÇA PORTADORA DE TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA. PLEITO DE REDUÇÃO DA JORNADA, SEM REDUÇÃO DA REMUNERAÇÃO OU COMPENSAÇÃO DE HORÁRIO. INCIDÊNCIA DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA (DECRETO 6.949/09) E DA POLÍTICA BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (LEI 13.146/15). ADAPTAÇÃO RAZOÁVEL DA JORNADA REGULAR. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 93§§ 2º E , DA LEI 8.112/90. De acordo com o art. 227 da CRFB, constitui dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outros, o direito à vida, à saúde, à dignidade, além de coloca-los à salvo de toda forma de negligência ou discriminação (caput), incumbindo ao Estado a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, inclusive com a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos (§ 1º, II). Evidenciando-se dos autos que a obreira é mãe de criança portadora de transtorno do espectro autista que demanda cuidados intensivos, impõe-se aplicação ao caso de adaptação razoável da jornada regular (e que não acarrete ônus desproporcional e indevido à empresa), a fim de que se possa assegurar ao menor deficiente todo tratamento necessário ao seu desenvolvimento/habilitação e cuidados com a saúde (arts. VI§ 1º e  da Lei 13.146/15 - Estatuto da Pessoa com Deficiência), a exigir o acompanhamento/presença da genitora, incidindo analogicamente no caso (art.  da CLT), inclusive sob o influxo do que dispõe a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CIDPD - Decreto 6.949/09), o comando inscrito no art. 98, §§ 2º e 3º, da Lei 8.212/90, que estipula a concessão de horário especial ao servidor da União que seja portador de deficiência ou que tenha cônjuge, filho ou dependente nessas condições, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, e independentemente de compensação de horário, porquanto a recusa de proceder a adaptação razoável também constitui forma de discriminação contra a pessoa com deficiência. Vale destacar que a MGS Minas Gerais Administração e Serviços S.A. é empresa pública integrante da Administração Indireta do Estado de Minas Gerais, divisando-se, pois, sua condição especial de empresa estatal, por vinculada ao indigitado ente político, que assume, em comunhão com os demais entes que conformam a República Federativa do Brasil, peculiar regime de observância dos compromissos constitucionais/internacionais e políticas pautadas em âmbito nacional destinadas à promoção da saúde e desenvolvimento da pessoa com deficiência, aplicando-se a CIDPD "sem limitação ou exceção, a todas as unidades constitutivas dos Estados Federados" (art. 4º, item 5).

Vistos os autos.

 

 

RELATÓRIO

 

O MM. Juízo da 47ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, mediante decisão da lavra do Exmo. Juiz Glauco Rodrigues Becho (ID 1821f0c), julgou PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos deduzidos por (...) em face de (...)., condenando a ré a reduzir a duração da jornada semanal da autora para 30 horas, com labor por seis horas de segunda à sexta-feira, passando a cumprir jornada das 07h00 às 13h15h, com 15 minutos de intervalo para refeição e descanso, sem redução do salário ou compensação de horários.

Inconformada, a MGS interpôs recurso ordinário sob o ID d16c78f, requerendo seja extirpada da condenação a ordem de redução de jornada.

A autora também aviou recurso ordinário sob o ID 5d60297, requerendo a imputação de responsabilidade subsidiária ao Município de Belo Horizonte.

Contrarrazões opostas pelo Município de Belo Horizonte sob o ID 580003d, e, pela autora, sob o ID 766dd01.

O Ministério Público do Trabalho, mediante parecer da Procuradora Junia Castelar Savaget (ID 8f314a4, pág. 8), opinou pelo conhecimento dos recursos e, no mérito, pelo desprovimento de ambos.

É o relatório.

 

 

JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE

 

O recurso da ré é tempestivo (sentença publicada em 17/12/21, segundo notificação de ID eadf9b1 - ver aba "Expedientes"; e razões recursais protocolizadas em 28/01/22, sob o ID d16c78f); regular a representação processual, segundo procuração de ID ff2e412; e preparo realizado com regularidade, consoante guias/comprovantes juntados sob o ID 5d42146 (depósito recursal recolhido no importe de R$5.000,00; e, custas processuais, no valor de R$100,00).

O recurso da autora é tempestivo (sentença publicada em 17/12/21, segundo notificação de ID eadf9b1 - ver aba "Expedientes"; e razões recursais protocolizadas em 31/01/22, sob o ID 5d60297); regular a representação processual, nos termos da procuração de ID 9ca032c; e dispensado o preparo, aferida a gratuidade judiciária deferida à obreira (ID 1821f0c, pág. 13).

Presentes os requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade, conheço dos recursos.

 

 

JUÍZO DE MÉRITO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REDUÇÃO DE JORNADA (RECURSO DA RÉ)

Defende a ré que "a reclamada é empresa pública Estadual, integrante da administração pública do Estado de Minas Gerais, e não é empresa Federal, portanto, descabida a aplicação do art. 98§§ 2º e  da Lei 8.112/90, que 'Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores publicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais', pois esta é regida pelas normas da CLT".

Protesta que "os empregados da empresa pública, muito embora a partir da CF/88 devam ser admitidos mediante concurso público, não se sujeitam ao Regime Jurídico Único, estatutário, mas sim ao celetista", e "assim, não há que se falar em aplicação analógica da lei 8112/90, pois a reclamada possui regramento próprio, no caso, a Convenção Coletiva de Trabalho ou CLT".

Sucessivamente, brada que "a reclamante não faz prova de que o menor com deficiência necessita de determinadas terapias ou tratamentos (não tem prova pericial neste sentido), que não tem ninguém que possa acompanhá-la nas terapias ou tratamentos ou provar a necessidade de participação exclusiva dos pais (a reclamante é casada) ou responsáveis, que ausência do acompanhante causa prejuízo ao desenvolvimento da pessoa com deficiência, que o pedido não atendido inviabilizaria o custeio das despesas da família e da pessoa com deficiência prejudicando a sua própria subsistência".

À análise.

A autora fora admitida em 21/10/19, para exercer o cargo de "auxiliar de apoio ao educando", com carga de trabalho semanal de 44 horas, permanecendo ainda ativo o contrato de trabalho (ver CTPS, ID 1295e6b; e instrumento contratual de ID f3aae70).

A obreira afirma que sua jornada regular se estende das 07h00 às 16h48min, com uma hora de intervalo, de segunda a sexta-feira, encontrando-se lotada na (...) (ver fichas funcionais de IDs 29872a9), localizada no bairro Tirol/Belo Horizonte.

Consta da inicial que "a obreira é mãe de três filhos, sendo (...), de 17 anos; (...), de 10 anos; e (...), de 3 anos" , e "recentemente, em julho de 2021, após consulta com médico neurologista e médica psiquiatra, foi constatado que o seu filho (...), de apenas 3 anos, possui autismo" (ID 10b0e9b, pág. 10).

E, por esse motivo, "a criança faz uso de medicamentos e precisa do auxílio da mãe para realizar as atividades propostas que visam o desenvolvimento da criança", conforme documentação anexa, afirma que "precisa estar presente durante as atividades, mas trabalhando 44 horas por semana isso não é possível" (ID 10b0e9b, pág. 10).

Pugnou "pela redução da carga horária da Reclamante em 50% (22 horas semanais), sem diminuição proporcional da remuneração e sem a compensação de horários, a fim de que a trabalhadora acompanhe seu filho portador de necessidades especiais em suas atividades médicas e terapêuticas" (ID 10b0e9b, pág. 23).

A documentação encartada ao feito atesta que (...) nasceu em 22/08/18 (ver certidão de ID 2baa415), e, segundo relatório médico de ID 5a36f27 (datado de 26/08/21), emitido pela Dra. Juliana Nascimento Santos (CRM 63045), padece de quadro "clínico compatível com CID 10 F84 (transtorno global de desenvolvimento - espectro autista)" e "necessita do auxílio da mãe para atividades propostas que visam o desenvolvimento da criança. Solicito adequação do caso à lei 12764".

O relatório fonoaudiológico de ID 936ef2f (datado de 21/10/21) assinala que "Bernardo Santos de Jesus, iniciou o tratamento fonoaudiológico, por apresentar atraso de fala e CID F84", encontrando-se "em acompanhamento todas as quintas-feiras, das 17h30min às 18h00" (ID 936ef2f).

Os relatórios de IDs d95653e e 4a3bd40, emitidos por psicóloga (Dra. Bruna Rodrigues Nunes) a serviço da Secretaria Municipal de Saúde de Ibirité (e datados de 04 e 08 de novembro de 2021), informam que (...)é acompanhado por equipe multidisciplinar (terapia ocupacional, psicologia e psiquiatria) no CAPS-1 de Ibirité e necessita de acompanhamento frequente/semanal com os profissionais, sem previsão de alta, sendo que "o acompanhamento da mãe é importante para maior êxito no tratamento da criança".

O pleito de redução de carga horária da obreira em função de necessidade excepcional decorrente de tratamento de filho portador de necessidades especiais não encontra expressa previsão na CLT ou nos instrumentos coletivos aplicáveis ao caso.

A MGS Minas Gerais Administração e Serviços S.A. é empresa pública integrante da Administração Indireta do Estado de Minas Gerais, divisando-se, pois, sua condição especial de empresa estatal, por vinculada ao indigitado ente político, que assume, em comunhão com os demais entes que conformam a República Federativa do Brasil, peculiar regime de observância dos compromissos constitucionais/internacionais e políticas pautadas em âmbito nacional destinadas à promoção da saúde e desenvolvimento da pessoa com deficiência.

De acordo com o art. 227 da CRFB, constitui dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outros direitos, o direito à vida, à saúde, à dignidade, além de coloca-los à salvo de toda forma de negligência ou discriminação (caput), incumbindo ao Estado a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, inclusive com a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos(§ 1º, II).

O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), promulgado no âmbito interno pelo Decreto 3.321/99, regulamenta que "toda pessoa afetada pela diminuição de suas capacidades físicas e mentais tem direito a receber atenção especial, a fim de alcançar o máximo desenvolvimento de sua personalidade. Os Estados-Partes comprometem-se a adotar as medidas necessárias para esse fim e, especialmente" "executar programas específicos destinados a proporcionar aos deficientes os recursos e o ambiente necessário para alcançar esse objetivo" e "proporcionar formação especial aos familiares dos deficientes, a fim de ajudá-los a resolver os problemas de convivência e a convertê-los em elementos atuantes do desenvolvimento físico, mental e emocional dos deficientes" (art. 18, "a" e "b", grifei e negritei).

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CIDPD), integrada ao ordenamento jurídico interno pelo Decreto 6.949/09, consigna em seu preâmbulo que "a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem o direito de receber a proteção da sociedade e do Estado e de que as pessoas com deficiência e seus familiares devem receber a proteção e a assistência necessárias para tornar as famílias capazes de contribuir para o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com deficiência" (item "a", grifei e negritei).

O art. 2º da Convenção define como "adaptação razoável" "as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais" (grifei e negritei).

O art. 3º, "h", da Convenção contempla, entre seus princípios, "o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade" (grifei e negritei).

Os Estados Partes se comprometem "a assegurar o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência" e "a levar em conta, em todos os programas e políticas, a proteção e a promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência", aplicando-se a Convenção "sem limitação ou exceção, a todas as unidades constitutivas dos Estados Federados" (art. 4º, 1, "b", e 5, da CIDPD).

O art. 5º dispõe que os Estados Partes "reconhecem que todas as pessoas são iguais perante a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei" (item 1, grifei e negritei).

Já o art. 7º estipula que "os Estados Partes tomarão todas as medidas necessárias para assegurar às crianças com deficiência o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais crianças" e que "em todas as ações relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da criança receberá consideração primordial" (itens 1 e 2, grifei e negritei).

Por fim, o art. 26 da Convenção define que "os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas, inclusive mediante apoio dos pares, para possibilitar que as pessoas com deficiência conquistem e conservem o máximo de autonomia e plena capacidade física, mental, social e profissional, bem como plena inclusão e participação em todos os aspectos da vida. Para tanto, os Estados Partes organizarão, fortalecerão e ampliarão serviços e programas completos de habilitação e reabilitação, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e serviços sociais, de modo que esses serviços e programas" "comecem no estágio mais precoce possível e sejam baseados em avaliação multidisciplinar das necessidades e pontos fortes de cada pessoa" (1, "a", grifei e negritei).

No âmbito interno, a Lei 13.146/15 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) estabelece que, para fins de aplicação da política assim instituída, consideram-se adaptações razoáveis as "adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais" (art. 3º, VI, grifei e negritei).

Nesse prisma, restou definido que toda pessoa com deficiência tem direito a não sofrer qualquer espécie de discriminação, assim considerada "toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas" (art. 4º, capute § 1º, grifei e negritei).

A Política em tela define que a pessoa com deficiência será protegida, dentre outros, de toda forma de negligência e discriminação (art. 5º), sendo "dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico" (art. 8º, grifei e negritei).

Já a Lei 12.764/12 (Política Nacional de Proteção da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista) estabelece que a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais (art. 1º, § 2º), e define, como diretrizes, dentre outras, "a atenção integral às necessidades de saúde da pessoa com transtorno do espectro autista, objetivando o diagnóstico precoce, o atendimento multiprofissional e o acesso a medicamentos e nutrientes" (art. 2º, III, grifei e negritei).

Dentre os direitos da pessoa com transtorno do espectro autista se inclui "o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo: a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo; b) o atendimento multiprofissional; c) a nutrição adequada e a terapia nutricional; d) os medicamentos; e) informações que auxiliem no diagnóstico e tratamento" (art. 3º, III, grifei e negritei).

Restou verificado no caso que os cuidados de saúde e habilitação que a autora deve proporcionar ao filho (de três anos portador de transtorno do espectro autista) exige a presença da genitora no acompanhamento de sessões de terapia ocupacional, fonoaudiologia e psicologia/psiquiatria, sob pena de comprometer o integral atendimento das necessidades do menor portador de necessidades especiais.

Ante o panorama normativo acima explanado, impõe-se a aplicável ao caso de uma adaptação razoável da jornada da obreira (e que não acarrete ônus desproporcional e indevido à empresa), a fim de que se possa assegurar ao menor deficiente todo tratamento necessário ao seu desenvolvimento/habilitação e cuidados com a saúde (arts. VI§ 1º e  da Lei 13.146/15), o que exige o acompanhamento/presença da genitora, aplicando-se analogicamente ao caso (art.  da CLT) o disposto no art. 98, §§ 2º e 3º, da Lei 8.212/90, que estipula a concessão de horário especial ao servidor da União que seja portador de deficiência ou que tenha cônjuge, filho ou dependente nessas condições, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, e independentemente de compensação de horário, porquanto a recusa de proceder a adaptação razoável também constitui forma de discriminação contra a pessoa com deficiência.

Peço vênia para transcrever recentes arestos do TST:

"I - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA. LEI 13.467/2017. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. O Tribunal Regional registrou de forma satisfatória e completa os motivos que lhe formaram o convencimento. As razões dos embargos declaratórios demonstram o mero inconformismo com o resultado do julgamento, o que de forma alguma importa em nulidade processual. Agravo de instrumento não provido. II - RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA. LEI 13.467/2017. ECT. EMPREGADA PÚBLICA. DEPENDENTE COM DEFICIÊNCIA (FILHO PORTADOR DE TRANSTORNO ESPECTRO AUTISTA). REDUÇÃO DE JORNADA DE TRABALHO SEM PREJUÍZO SALARIAL E COMPENSAÇÃO DE HORÁRIO. No caso, o Tribunal Regional utilizando-se do método de integração normativa e da técnica sopesamento entre princípios, apontou a solução ajustada ao caso concreto, relativizando as regras de forma proporcional e adequada diante de princípios de maior relevância como o princípio da dignidade da pessoa humana e da tutela da saúde, o que enseja na correta aplicação do princípio da legalidade estrita e do artigo 98§§ 2º e , da Lei nº 8.112/90, com objetivo de atingir o fim social e o bem comum, nos termos do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Com relação ao percentual arbitrado pelo Tribunal Regional de redução da jornada em 50%, incide o óbice da Súmula 126 do TST. Precedentes. Recurso de revista não conhecido" (TST, 8ª Turma, RRAg-533-36.2019.5.09.0965, Relatora Ministra Delaide Alves Miranda Arantes, DEJT 18/02/2022, grifei e negritei).

"RECURSO DE REVISTA. AUTORA MÃE DE CRIANÇA COM SÍNDROME DE DOWN E BEXIGA NEUROGÊNICA. PRETENSÃO DE REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO, SEM DIMINUIÇÃO PROPORCIONAL DA REMUNERAÇÃO. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA IGUALDADE MATERIAL E DA ADAPTAÇÃO RAZOÁVEL. APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. EXTENSÃO DO DIREITO AO CUIDADOR. PONDERAÇÃO DOS INTERESSES EM CONFLITO. THE COST OF CARING. 1. A autora pretende a redução de sua jornada com a manutenção do salário, o que foi indeferido pelo eg. TRT. Ela é mãe de uma menina portadora de síndrome de Down e bexiga neurogênica, que necessita de cuidados especiais. 2. A Constituição Federal de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho como fundamentos nucleares da República Federativa do Brasil (art. 1º, III e IV). A construção de uma sociedade justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceito ou discriminação, foi erigida ao status de objetivos fundamentais do Estado brasileiro (art. 3º, I e IV). Os direitos humanos foram alçados ao patamar de princípio norteador das relações externas, com repercussão ou absorção formal no plano interno (arts. 4º, II, e 5º, §§ 2º e 3º). E o princípio da isonomia, quer na vertente da igualdade, quer na da não discriminação, é o norte dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, caput). O Estado Democrático de Direito recepcionou o modelo de igualdade do Estado Social, em que há intervenção estatal, por meio de medidas positivas, na busca da igualdade material, de forma a garantir a dignidade da pessoa humana. O processo histórico de horizontalização dos direitos fundamentais adquiriu assento constitucional expresso (art. 5º, § 1º), de modo que os valores mais caros à sociedade possuem aptidão para alcançar todos os indivíduos de forma direta e com eficácia plena. Assim, a matriz axiológica da Constituição deve servir de fonte imediata para a resolução de demandas levadas à tutela do Poder Judiciário, notadamente aquelas de alta complexidade. 3. De todo modo, a ausência de norma infraconstitucional específica não seria capaz de isentar o magistrado de, com base nos princípios gerais de direito, na analogia e nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, reconhecer a incidência direta dos direitos sociais em determinados casos concretos. E o direito brasileiro tem recepcionado diversos documentos construídos no plano internacional com o intuito de proteger e salvaguardar o exercício dos direitos dos deficientes, com força de emenda constitucional, a exemplo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). 4. A CDPD estabelece como princípio o respeito pela diferença e a igualdade de oportunidades, que devem ser promovidos pelo Estado especialmente pela adaptação razoável, que consiste em ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, requeridos em cada caso. O art. 2 da CDPD estabelece ainda que a recusa à adaptação razoável é considerada forma de discriminação. 5. E considerando que seu real fundamento é coibir a discriminação indireta, seu campo de atuação não deve se restringir à pessoa com deficiência, mas alcançar a igualdade material no caso concreto, com vistas ao harmônico convívio multiculturalista nas empresas. 6. A Comissão de Direitos Humanos de Ontário realizou pesquisa e consulta pública sobre questões relacionadas ao status familiar, e seu relatório final foi denominado The Cost of Caring, que demonstrou que as pessoas que têm responsabilidades de cuidar de familiares com deficiência enfrentam barreiras contínuas à inclusão, com suporte inadequado tanto por parte da sociedade como do governo. As empresas normalmente não adotam políticas de adaptação razoável, o que acaba por empurrar os cuidadores para fora do mercado de trabalho. 7. A pessoa com deficiência que não possui a capacidade plena tem encontrado apoio na legislação, mas não o seu cuidador, o qual assume para si grande parte do ônus acarretado pela deficiência de outrem, como se ela própria compartilhasse da deficiência. Se há direitos e garantias, como por exemplo a flexibilidade de horário, àqueles que possuem encargos resultantes de sua própria deficiência, é inadequado afastar o amparo legal e a aplicação analógica aos que assumem para si grande parte desses encargos. O caso dos autos ilustra perfeitamente tal questão, em que a autora, mãe de criança com deficiência, de apenas seis anos, precisa assumir para si os ônus acarretados pela deficiência de sua filha, o que lhe demanda tempo, dedicação e preocupação. Assim, negar adaptação razoável no presente caso traduz medida discriminatória à autora. Além disso, a omissão do Poder Público, em última instância, afeta a criança, que com menor amparo familiar fatalmente encontrará maiores desafios no seu desenvolvimento pessoal e de inclusão na sociedade. Cumpre ressaltar o compromisso assumido pelo Estado, previsto no art. 23 da CDPD, de fazer todo o esforço para que a família imediata tenha condições de cuidar de uma criança com deficiência. 8. A aplicação da adaptação razoável, atendendo as peculiaridades do caso, é compromisso assumido pelo Estado, como signatário da CDPD. A acomodação possível somente pode ser pensada no caso concreto, pois cada pessoa tem necessidades únicas. No contexto dos autos, conclui-se que a criança necessita de maior proximidade com sua genitora, diante do desafio superior tanto ao seu desenvolvimento como pessoa quanto à sua afirmação enquanto agente socialmente relevante. Defere-se, portanto, a adaptação razoável ao caso concreto. Recurso de revista conhecido por violação dos arts. 7º, 27 e 28 da CDPD e parcialmente provido" (TST, RR-10409-87.2018.5.15.0090, 3ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 07/06/2021, grifei e negritei).

Ante todo o exposto, mantenho a condenação da ré a reduzir a duração semanal de trabalho da autora de 44 para 30 horas, com labor por seis horas de segunda à sexta-feira, passando a cumprir horário das 07h00 às 13h15h, com 15 minutos de intervalo para refeição e descanso, sem redução do salário ou compensação de horários, o que traduz adaptação razoável da carga de trabalho regular, não se evidenciando, em face das circunstâncias do caso, ônus desproporcional e indevido à empresa.

Nego provimento.

RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA (RECURSO DA AUTORA)

Requer a autora a imputação de responsabilidade subsidiária ao Município de Belo Horizonte, nos moldes da Súmula 331, IV, do TST, pois "há culpa in vigilando e culpa in eligendo por parte do Município de Belo Horizonte, vez que jamais foi até a escola efetivar a fiscalização dos serviços prestados pela obreira, nunca solicitou relatórios acerca das atividades desenvolvidas pela Reclamante, tampouco requereu PPRA, PCMSO ou quaisquer outros documentos".

Insiste que "o Município de Belo Horizonte deixou de fiscalizar, adequadamente, o cumprimento das obrigações contratuais pela empresa contratada para intermediação da mão-de-obra", e "o Município, de forma nenhuma, poderia eximir-se do dever de fiscalização que lhe incumbia, mesmo porque a averiguação do cumprimento regular do contrato, nesse aspecto, não é mera prerrogativa, mas se constitui em sua obrigação, decorrente de preceitos de ordem pública, como tomador e beneficiário dos serviços prestados".

Sem razão.

Concessa maxima venia, não se observa, sequer em tese, qualquer correlação entre o dever de fiscalização imposto ao ente contratante (Município de Belo Horizonte) como tomador de serviços e a tutela postulada pela obreira, concernente à redução de sua jornada regular, com vistas à possibilitar o integral atendimento das necessidades de criança portadora de necessidades especiais.

Tal como apontado pelo parquet laboral, "a condenação imposta nos autos à 1ª Reclamada consiste apenas no cumprimento de obrigação de fazer a ser cumprida exclusivamente pela 1º Reclamada, nada tendo a ver com verbas inadimplidas fruto de uma suposta fiscalização contratual ineficiente, a teor do que dispõe a Súmula 331, incisos IV, V e VI, do TST" (ID 8f314a4, pág. 8).

Nego provimento.

 

Acórdão

 

Fundamentos pelos quais,

O Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, em sessão telepresencial ordinária da sua Oitava Turma, hoje realizada, sob a Presidência do Exmo. Desembargador Marcelo Lamego Pertence, presente o Exmo. Procurador Dennis Borges Santana, representante do Ministério Público do Trabalho, sustentou oralmente o Dr. Lúcio Aparecido de Souza e Silva, pela reclamada/recorrente e, computados os votos dos Exmos. Desembargadores Sércio da Silva Peçanha e José Marlon de Freitas: JULGOU o presente processo e, preliminarmente, à unanimidade, CONHECEU do recurso ordinário interposto por (...)., e, no mérito, sem divergência, NEGOU-LHE PROVIMENTO; à unanimidade, CONHECEU do recurso ordinário interposto por (...), e, no mérito, sem divergência, NEGOU-LHE PROVIMENTO.

Belo Horizonte, 30 de março de 2022.

 

 

 

MARCELO LAMEGO PERTENCE

Desembargador Relator

 

MLP/LAAJ

 

 

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