Uso de tornozeleira sobe 20 vezes em menos de uma década e vira refúgio contra superlotação
quinta-feira, 31 de julho de 2025, 10h39
O sistema prisional brasileiro tem experimentado um crescimento vertiginoso do uso da tornozeleira eletrônica. Segundo dados do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sisdepen), do Ministério da Justiça, o número de usuários do equipamento saltou de 6.027 em 2016, primeiro ano do levantamento, para 122.012 pessoas em 2024.
O aumento foi de 20 vezes em menos de uma década. Em 2016, o total de monitorados somava menos de 1% da população carcerária. Hoje, eles representam 13,5% das mais de 900 mil pessoas privadas de liberdade no país.
A monitoração eletrônica foi criada por lei, em 2010, para pessoas em prisão domiciliar ou no regime semiaberto, que permite sair à rua durante o dia para trabalhar ou estudar. Com o passar do tempo, porém, o uso tornou-se comum até para quem sequer cumpre pena: no final de 2024, segundo o Sisdepen, um quarto dos usuários era de presos provisórios, ou seja, que ainda não foram julgados.
A disseminação das tornozeleiras foi destacada na última edição do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, publicada na semana passada. O documento aponta que essa ferramenta tem sido uma válvula de escape para o aumento da população carcerária.
“Esses números sugerem que grande parte do aumento da população prisional tem sido absorvido pelo uso do monitoramento eletrônico, de modo que a quantidade de presos em celas físicas tem se mantido estável, ao mesmo tempo em que o sistema prisional tem se expandido pelo uso dessa nova possibilidade tecnológica”, aponta o relatório, que é produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Banalização
O maior crescimento na aplicação das tornozeleiras foi registrado durante a pandemia de Covid-19. O número de usuários, que era de 16.821 no final de 2019, mais do que quadruplicou em 2020, alcançando 72.720. O principal motor dessa expansão foi a Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, que estimulou a reanálise de prisões e a adoção de outras medidas cautelares, para mitigar riscos à saúde nos presídios.
O uso dos equipamentos, porém, não parou de crescer nos anos seguintes. “A pandemia explica o ponto de inflexão, não a trajetória posterior. A manutenção desse crescimento após a crise sanitária revela a banalização judicial da cautelar”, critica o advogado Fernando Cesar de Oliveira Faria, especialista em Direito Penal.
Na visão dele, a tornozeleira tem sido usada como um substituto para prisões preventivas que não deveriam ter sido decretadas. “O Judiciário tem um problema crônico de prisões preventivas mal fundamentadas. O magistrado analisa o caso e percebe que a preventiva é inadequada, mas tem receio de revogar a prisão sem aplicar nenhuma medida cautelar. Aí recorre à tornozeleira de maneira automática, muitas vezes sem necessidade.”
A criminalista Flávia Ávila Penido, especialista em Execução Penal, observa que as tornozeleiras se difundiram a partir de 2016, devido à Súmula Vinculante 56 do Supremo Tribunal Federal, que foi publicada em agosto daquele ano.
Segundo a súmula, o condenado não pode permanecer em um regime mais grave, o fechado, por falta de vagas no aberto ou no semiaberto. “Por não haver vagas no regime semiaberto, a pessoa é colocada em liberdade, em prisão domiciliar. A monitoração eletrônica serve para que haja algum tipo de fiscalização do cumprimento da pena”, explica ela.
Falta de vagas
Outro fator que contribui para a expansão das tornozeleiras é a superlotação. Segundo os dados do Sisdepen, o Brasil fechou o ano de 2024 com um déficit de 175 mil vagas em celas físicas: são 670 mil presos em um sistema com capacidade para 495 mil pessoas.
Segundo os especialistas, esse desequilíbrio ilustra o estado de coisas inconstitucional das penitenciárias do Brasil, reconhecido pelo STF em 2023.
“Esse número revela uma falência do sistema prisional, porque é consequência direta da ausência de vagas. O sistema está cada vez mais inchado pela cultura de encarceramento que domina a mentalidade do Judiciário”, avalia o advogado Carlo Velho Masi, especialista em Direito Penal e Processo Penal.
Segundo Masi, uma das causas do aumento do uso de tornozeleiras é a falta de unidades para cumprimento do semiaberto, regime para o qual o equipamento foi pensado originalmente. Os dados do Sisdepen apontam que o país tem hoje 89 mil vagas no semiaberto e 112 mil presos nessa condição, um déficit, portanto, de 23 mil vagas
“O cumprimento dos regimes semiaberto e aberto exige estabelecimentos prisionais adequados, mas essas unidades são a última prioridade do poder público. Em geral, governos estaduais preferem investir em presídios, e aí as pessoas não têm para onde ir quando progridem de regime. Para o Estado, é muito mais barato simplesmente comprar um equipamento de monitoração.”
Impactos nocivos
Os estudiosos afirmam que o uso indiscriminado da tornozeleira distorce o cumprimento da pena e atrapalha o retorno dos presos ao convívio social. Uma das reclamações mais comuns é que a instalação do aparelho prejudica a reinserção no mercado de trabalho.
“A pessoa com tornozeleira tem mais dificuldade em conseguir emprego. Não só pelo preconceito do empregador, mas porque o aparelho impõe restrições de horário, local e atividades que o apenado pode exercer. Isso aumenta as chances de que ele volte a cometer crimes, o que acaba retroalimentando o sistema penal”, explica Carlo Masi.
Na opinião de Fernando Faria, o equipamento cria um estigma de criminoso para o usuário. “O ‘tornozelado’ é automaticamente alvo de desconfiança, mesmo que ainda nem tenha culpa formada. Quando uma tornozeleira eletrônica é colocada no cidadão, o impacto na vida dele e do círculo familiar mais próximo é devastador.”
Fonte: Conjur