Representantes de órgãos de defesa do consumidor de todo o país alertam para perdas de direitos previstas na minuta do novo decreto do SAC
segunda-feira, 16 de novembro de 2020, 14h31
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por meio do Procon-MG, realizou, no dia 23 de outubro, o “Encontro Técnico: discussão sobre o novo decreto do SAC”. Voltado a integrantes dos órgãos de proteção e defesa do consumidor, o evento virtual buscou promover o debate sobre a minuta da nova norma, que está sendo discutida no Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, órgão presidido pela secretária nacional do Consumidor, Juliana Domingues Oliveira, cuja Secretaria é vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. O texto em discussão pretende substituir o atual decreto, nº 6523/2008, na regulação do Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).
Convidada a participar do evento, a chefe da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) não pôde comparecer, mas enviou, como representante, o diretor substituto do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria, Leonardo Marques, para apresentar a visão da Senacon sobre o assunto e debater a proposta com os participantes.
O encontro contou com a presença de 104 pessoas, de diferentes estados brasileiros, e foi conduzido pelo coordenador do Procon-MG, procurador de Justiça Amauri Artimos da Matta. Ao longo da reunião, os participantes expuseram ao representante do governo federal diversas preocupações quanto à redução de direitos dos consumidores verificada no texto base da norma e alertaram para os riscos de se elaborar um decreto que afetará a vida de milhões de brasileiros sem a escuta e a participação direta dos órgãos responsáveis pela defesa do consumidor.
Entre os problemas identificados na minuta e apontados pelos especialistas, destacam-se o desvio de competência do governo no processo regulatório e a insegurança jurídica que isso poderá trazer; a restrição do direito à informação; a limitação do atendimento à fase de pós-venda; a desconexão do texto com a realidade dos SACs e com os problemas registrados pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC); a não contemplação de alguns serviços essenciais, como água e energia, pelo estudo que deu origem à minuta; o alijamento dos SACs de parte significativa da população brasileira que não tem acesso à internet, em razão da retirada do canal telefônico como via principal de atendimento; a redação imprecisa e confusa do texto, entre outros, que serão detalhados a seguir.
Fase de elaboração
As primeiras considerações sobre o novo decreto foram feitas pelo representante do governo federal, Leonardo Marques, que argumentou que a minuta em discussão não foi elaborada pela Senacon, mas por uma consultoria contratada com recursos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). “Não há nenhum processo formalizado, no momento, no âmbito do Ministério da Justiça no sentido de discuti-lo com as instâncias administrativas encarregadas pelo processo de elaboração desse decreto. O momento agora é para coleta de subsídios”, pontuou.
Marques assegurou que o texto em discussão é provisório e que ainda será trabalhado a partir das considerações e sugestões dos representantes dos órgãos de defesa do consumidor. A proposta de substituição do Decreto nº 6.523/2008 seria, segundo ele, resultado de uma necessidade de atualização da norma.
Insegurança jurídica
O advogado e professor de Direito do Consumidor Ricardo Morishita Wada fez a palestra de abertura das discussões. Depois de falar sobre a importância da análise de impacto regulatório no processo de elaboração do decreto, Wada chamou a atenção para a insegurança gerada pela regulamentação, por parte da Senacon, de assuntos de competência das agências reguladoras. “Percebemos, na minuta, a equiparação da Senacon a uma agência reguladora, como se tivessem competência comum. Isso é algo de extrema preocupação, porque gera insegurança para os investidores sobre as regras da regulação. Constitui um atentado contra a livre iniciativa e contra o consumidor”, apontou.
O especialista explicou, ainda, que não se pode confundir política de Estado com polícia de governo. “Os governos são eleitos a cada quatro anos, podendo ser reeleitos. São expressão de uma vontade política da sociedade. Já as carreiras de estado, os órgãos de estado, as agências reguladoras, mantêm a permanência, a coerência, a acuidade, a competência técnica para a execução das atividades. Uma política de governo pode dar prioridade a alguns temas, mas dizer que a competência da Senacon é a mesma de uma agência reguladora parece criar uma tremenda insegurança jurídica para o processo regulatório”.
Na avaliação de Wada, por mais capacitado que seja um consultor, ele não pode suprir a experiência de um órgão de carreira, “formado por funcionários do Estado, concursados, com estabilidade, profundidade no conhecimento e legitimidade advinda de um concurso público para tomar as decisões a bem do Estado e das políticas públicas”.
Telefone é o principal canal de atendimento
Sobre a realidade do serviço de atendimento ao consumidor no país, os participantes destacaram que são cinco as principais demandas recebidas pelos SACs das empresas: informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento. A minuta do novo decreto, contudo, excluiu do serviço a obrigatoriedade da prestação de informação e a solução de dúvida, tornando-as exceções. O texto ainda limita o atendimento à fase de pós-venda e não define os conceitos de emergência, urgência e pessoa de baixa renda, como apontaram os especialistas.
O presidente do Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor, Cláudio Pires Ferreira, informou que o atendimento telefônico corresponde a 82% de todas as demandas dos SACs, segundo o estudo “Cenário dos SACs”, realizado no ano passado pelo Centro de Inteligência Padrão com 22 empresas de vários retores. “O serviço telefônico, além de ser o principal canal, conforme essa pesquisa, tem também uma resolutividade muito grande. No ano passado, ele ocupou a melhor posição entre os canais de atendimento”.
Ferreira destacou, ainda, que o telefone é o único canal disponível em 100% das empresas pesquisadas. “Outros dados importantes são que 74% dos elogios são feitos por telefone, as informações obtidas por telefone importam 85% do total, e as solicitações, 80%. Além disso, alguns estudos mostram que a empresa que consegue resolver favoravelmente o problema tem 70% de chance de o consumidor voltar a se relacionar com ela”. Para Cláudio, a minuta do novo decreto revela-se restritiva ao limitar a manifestação do consumidor a reclamação ou cancelamento de serviço. “O SAC é uma importante ferramenta de informação ao consumidor, e também de sugestões e elogios”.
Direito à gravação do atendimento
A importância de se garantir o direito à gravação dos atendimentos também foi debatida na reunião. O representante da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil, Augusto Barbosa, lembrou que o decreto vigente determina a manutenção da gravação das chamadas efetuadas para o SAC pelo prazo mínimo de 90 dias, durante o qual o consumidor poderá requerer acesso a seu conteúdo, mas que, apesar da clareza do texto, a legislação é aplicada de forma deturpada por muitos fornecedores. “Na prática, o atendimento não é gravado desde o início, mas só a partir do momento que o atendente pessoal pega a chamada. Isso prejudica até uma esperada regulamentação do art. 3º, §4º, que trata do tempo de espera. Penso que esse deveria ser o foco da mudança”.
Conforme Barbosa, a gravação do atendimento é prova fundamental para os consumidores fazerem valer seus direitos. “Como entrarão em juízo e provarão a verossimilhança das suas alegações para conseguir a tão difícil inversão do ônus da prova prevista em lei? Já temos uma dificuldade enorme de aplicação da legislação atual. É inadmissível essa situação”.
Ampliação do tempo de resposta
A ampliação do tempo de espera do consumidor para ter um retorno da empresa sobre a demanda apresentada foi outro ponto de discussão. Atualmente, conforme o decreto 6.523/2008, as informações solicitadas pelo consumidor devem ser prestadas imediatamente, e suas reclamações, resolvidas no prazo máximo de cinco dias úteis a contar do registro. A minuta do novo decreto estende o tempo de resposta para sete dias úteis, não exigindo, nesse prazo, a resolução da reclamação.
Ao comentar sobre essa alteração, o diretor de Publicações da Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor (MPCon) e promotor de Justiça do MPMG Fernando Rodrigues Martins citou a teoria do desvio produtivo do consumidor, segundo a qual, muitas vezes, o consumidor precisa desperdiçar seu tempo e atividades para resolver problemas de consumo que sequer deveriam existir. “O tempo da reclamação, da informação e do atendimento é diferente do tempo de vida útil do consumidor. O consumidor não consegue esperar mais de cinco dias. A rigor, a resolução deveria ser imediata. Além disso, ao deixar de tratar da resolução do problema, a minuta retira direitos que são evolutivos na promoção do consumidor. Isso desfalca o direito do consumidor”, apontou.
Conforme Martins, a extensão do prazo para sete dias abre a possibilidade indireta e negativa para o mercado responder pelo desvio temporal. “O decreto que veio para ajudar em grande parte os fornecedores, também acaba por prejudicar, do ponto de vista da construção jurisprudencial do direito do consumidor”.
Estudo incompleto
O presidente da Associação Brasileira dos Procons, Filipe Vieira, criticou o fato de o estudo que deu origem à minuta ter diferenciado as empresas reguladas e não ter abarcado os serviços de água e energia. De acordo com ele, das 13 agências reguladoras, apenas cinco foram contempladas. “Temos algo próximo de 1/3 dos serviços sendo avaliados nesse estudo. Desconsideram-se totalmente os estudos que possam recair sobre empresas de energia, de água e algumas de telefonia. Não foram contempladas, por exemplo, as microgeradoras de sinal de internet, as retransmissoras do interior, segmento de tanta importância para o setor de telefonia que compõe o Conselho de Usuários”.
Métodos alternativos
O vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos do Consumidor junto ao Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais, Antônio Carlos Fontes Cintra, chamou a atenção para a impossibilidade de se utilizar métodos alternativos à solução dos litígios de consumo, como arbitragem e mediação, sem a participação do órgãos do SNDC.
De acordo com ele, o decreto falha ao deixar de lado o SNDC, que desempenha também a função de instrução dos consumidores sobre seus direitos. “Alijando o SNDC nos métodos alternativos, alija-se o filtro. Tem muita gente disseminando informação de forma incorreta. Quando o consumidor passa pelos órgãos do sistema, ele é instruído corretamente, as demandas são filtradas, evita-se o processo e há condição de negociação. Não há como o consumidor negociar sem conhecer seus direitos”, alertou.
Inapropriação da arbitragem nas relações de consumo
Para o advogado e professor Marcelo Sodré, a plataforma oficial do governo federal para solução de conflitos de consumo, Consumidor.gov, não pode ser confundida com a arbitragem, considerada inapropriada nas relações de consumo.
De acordo com ele, os números registrados na história da plataforma comprovam a eficácia do canal, que possibilita o contato direto entre consumidor e fornecedor para a resolução de problemas, sem a intervenção de um terceiro. “Existe um artigo, na proposta do novo decreto, que mistura o tema do Consumidor.gov com arbitragem. Quando nós misturamos esses dois sistemas, parece-me que nós corremos um risco muito grande, porque podemos criar um sistema de arbitragem que não seja bom e atrapalhar completamente o sistema do Consumidor.gov, que funciona bem e merece ser aprimorado”.
O especialista considera inviável a arbitragem na área de consumo. “Ela tem custo alto e a grande maioria dos temas dos consumidores são de valor absoluto pequeno, o que não justifica os custos do método”, explicou.
Impacto sobre a população vulnerável
Outro tema de grande preocupação dos representantes dos órgãos de defesa do consumidor é o maior impacto que as mudanças sugeridas no texto do novo decreto poderá gerar sobre os consumidores vulneráveis.
A coordenadora executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Teresa Liporace, destacou a existência de uma grande quantidade de consumidores analfabetos no país e o perigo de colocá-los à margem do SAC. “A minuta pressupõe que a grande maioria dos consumidores têm plena capacidade de utilizar os meios digitais, o que não é verdade. Nós temos quase 11,3 milhões de pessoas analfabetas, com 15 anos ou mais, no Brasil. Temos os analfabetos funcionais, que correspondem a quase 30% dos brasileiros, e cerca de 45 milhões de pessoas sem acesso à internet. Precisamos considerar também a questão dos idosos. Segundo pesquisas recentes, apenas 20% fazem uso das redes sociais. A grande maioria nunca usou nenhum aplicativo”.
Liporace salientou, ainda, que a maior parte dos serviços públicos regulados estão relacionados à saúde e à segurança das pessoas e que eles não podem ser equiparados com outros serviços prestados em regime privado.
Dificuldade de categorização do atendimento
A dificuldade de se distinguir informações, reclamações e solicitações de cancelamento, como propõe a minuta, também foi debatida pelos participantes. A representante da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Cristiana Camarate, relatou uma experiência negativa da agência ao fazer essa segmentação do atendimento. “Por meio de inúmeras fiscalizações, observamos que essa classificação é inviável, porque há uma subjetividade enorme nela. Questões que outra pessoa classificaria como reclamação foram definidas como reparo ou como pedido de informação, ou, ainda, como solicitação. Na verdade, isso não se mostrou eficiente. Nosso regulamento geral de direito do consumidor já fala só em demanda, o que está alinhado ao decreto vigente”.
Transferência de funções
A proposta de se retirar a obrigatoriedade de as empresas prestarem informações e esclarecerem dúvidas dos consumidores pelo atendimento telefônico foi criticada pelos participantes. O coordenador do Procon-MG, Amauri Artimos da Matta, comentou sobre uma das consequências esperadas dessa medida. “Se a gente limita o serviço de atendimento ao consumidor a reclamações e a cancelamento, eu imagino que vá chover consumidor buscando informações junto aos Procons e às agências. Nós seremos, mais uma vez, os SACs das empresas”.
Origem da minuta
A alegação apresentada pelo representante da Senacon de que a minuta debatida na reunião foi apresentada pela consultora contratada também foi questionada. Segundo o membro do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor Leonardo Werlang, foram divulgadas duas minutas, uma atrás da outra. “O que me causou surpresa e estranheza é que, de fato, a doutora Amélia fez a apresentação do estudo, da minuta do decreto do SAC, e ele não continha essas redações confusas e essa redução de direitos previstos no decreto antigo. Isso até foi objeto de questionamento, para tentar entender então: se não foi a doutora Amélia que fez, quem fez essas alterações que, pelo que tudo indica, em prejuízo ao consumidor?”.
Outros participantes do evento apresentaram as seguintes questões e apontamentos: qual seria o sentido dos termos urgência e emergência trazidos pela minuta de Decreto do SAC (Marcelo Barbosa); a impossibilidade de o atual texto do novo decreto ser o ponto de partida da discussão, uma vez que não atende aos consumidores, nem humaniza o atendimento (Fernanda Borges); o desconhecimento visível, de quem elaborou o texto, sobre a realidade dos atendimentos diários feitos aos consumidores (Márcia Moro); os prejuízos que a limitação do atendimento telefônico gera aos consumidores do Norte do país, pela dificuldade do acesso à internet (Walter Viana); a real necessidade de se mexer no Decreto do SAC, no atual momento, com tantos outros assuntos para serem tratados (Maria Stella Gregori); a possibilidade de que a demanda, não sendo resolvida pelo SAC, seja direcionada ao Consumidor.gov (Frederico Fernandes); o fato de a discussão da minuta do Decreto do SAC não ter seguido o caminho natural, com a escuta inicial dos órgãos de defesa do consumidor, para se constatar os problemas (Mariângela Sarrubo).
Os membros da comissão formada no Encontro Técnico para tratar sobre o novo decreto do SAC já se reuniram novamente. Um ofício será expedido para a Secretaria Nacional do Consumidor, solicitando mais informações e esclarecimentos sobre o assunto.
Clique aqui para ler a minuta do novo decreto.
Leia entrevista do coordenador do Procon-MG, Amauri Artimos, sobre o decreto nº 6.523/2008.