Audiência pública aponta falta de integração e deficiências na atenção à saúde das pessoas trans no Rio de Janeiro
quarta-feira, 11 de novembro de 2020, 08h55
Evento reuniu os MPs, Defensorias Públicas e representantes do Ministério da Saúde, organizações não-governamentais e unidades estaduais especializadas
O Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro promoveram, no último dia 10 de novembro, audiência pública para debater a política pública de saúde relacionada ao processo transexualizador. Realizada na modalidade virtual, o evento contou com a audiência de mais de 100 interessados e com a participação de representantes da sociedade civil, das Defensorias Públicas da União e do Estado e dos Ministérios Públicos Federal (Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão e Ofício Especializado da Saúde) e Estadual (Assessoria de Direitos Humanos da Procuradoria Geral de Justiça e CAO Saúde)l e dos órgãos e unidades de saúde envolvidos.
Em sua intervenção inicial, os Procuradores da República Aline Caixeta e Sergio Gardenghi Suiama ressaltaram o fato de que a audiência foi a primeira ocasião em que reuniram-se os Ministérios Públicos e Defensorias Públicas, juntamente com a sociedade civil organizada e os órgãos de saúde, para debater publicamente o assunto.
Ressaltaram também que o MPF instaurou inquérito civil para acompanhar o tema em 2017, e que foi possível constatar o descompasso entre a política pública “no papel“ e a prática cotidiana da atenção à saúde das pessoas trans no Estado. O objetivo da atuação do MPF, ressaltaram os procuradores, é o de identificar os fluxos de acesso e atendimento e seus gargalos, e também buscar a ampliação da oferta de serviços, de forma a atender à política pública definida na Portaria do Ministério da Saúde nº 2803, de 19 de novembro de 2013, que trata do processo transexualizador no Sistema Único de Saúde.
Pelo Ministério da Saúde, participaram da audiência o Coordenador de Garantia da Equidade do Departamento de Saúde da Família, Silvio Marcos, e o responsável pelo credenciamento/habilitação de unidades de saúde do processo transexualizador, Eduardo Davd Gomes. Ambos informaram que estão credenciados junto ao MS/SUS apenas 12 unidades ambulatoriais e 5 hospitais com oferta de cirurgias para pessoas trans em todo o Brasil. No Estado do Rio de Janeiro, atualmente, apenas o Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ) oferece cirurgias, e apenas o Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE) e o Ambulatório de Saúde Trans de Niterói estão credenciados para prestar serviços de atenção ambulatorial especializada para pessoas trans.
Pelo Hospital Pedro Ernesto, o médico Eloísio Alexandro da Silva, responsável pelo serviço especializado, informou que, em razão da pandemia, no ano de 2020, apenas 2 cirurgias de transgenitalização foram realizadas. No ano de 2019 foram 17 e em 2018 apenas 7, segundo o médico. O número de procedimentos é muito inferior à demanda, e o tempo médio de espera é superior a 7 anos, segundo ele. A baixa oferta decorre, segundo o responsável, da falta de recursos humanos e materiais para mais cirurgias. Foi enfatizado que o hospital apresentou projeto nesse sentido, que dependeria de aprovação de emenda parlamentar específica. O médico também afirmou que o hospital poderia contribuir na capacitação de profissionais de saúde na especialidade.
Dificuldades administrativas e demanda superior à oferta também foram relatadas pelos servidores do IEDE e do Ambulatório de Saúde Trans de Niterói. Foi registrado que os medicamentos relacionados à hormonoterapia ainda não foram adquiridos, e que a remuneração do SUS pelos serviços especializados não chega efetivamente às unidades. Foi dito que o IEDE atende atualmente 600 pessoas trans em seu ambulatório especializado.
Pela sociedade civil, manifestaram-se Bruna Benevides, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Maria Eduarda Aguiar, do Grupo Pella Vida/RJ, Felipe Carvalho (do Conselho Estadual LGBTI), Leonardo Peçanha (Ibrat) e Nicolas Câmara. Todos apontaram a falta de vontade política das autoridades de saúde responsáveis pela implementação da política de atenção integral à população LGBTQIA+, a falta de compromisso dos Municípios com a temática e o enorme descompasso entre a oferta dos serviços e a demanda. Apontaram também a necessidade de cumprimento, pelo MS, da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2265/2019 no que se refere ao acesso, por parte das pessoas trans, à hormonoterapia a partir dos 16 anos de idade, e ao acesso a procedimentos cirúrgicos a partir dos 18 anos. Foi também registrado a dificuldade de acesso dos homens trans a serviços ginecológicos no SUS, em decorrência de falha no sistema informatizado do SUS.
Manifestaram-se também representantes do Comitê Técnico Estadual de Saúde LGBT, e da Divisão de Apoio à Saúde e Cidadania LGBT da Secretaria de Administração Penitenciária.
Ao final de quatro horas e meia de manifestações e debates, a audiência foi encerrada com as seguintes propostas de encaminhamento:
Em âmbito estadual (pelo MP/RJ e Defensoria Pública do Estado do RJ):
Cobrar do Estado resposta da Recomendação conjunta expedida sobre pactuação do fluxo, rede e protocolos assistenciais e de regulação; diagnóstico demanda x oferta com identificação do quantitativo de unidades ambulatoriais e hospitalares a serem contratadas e operacionalização do HUPE.
Cobrar da Fundação de Saúde informações atualizadas sobre a compra e distribuição dos medicamentos referentes à hormonoterapia
Oficiar as Secretarias Municipais de Saúde solicitando informações sobre atenção primária/ambulatorial da população trans.
Em âmbito federal (pelo MPF e Defensoria Pública da União):
Cobrar o Ministério da Saúde sobre implementação da política nacional de saúde integral da população LGBTQIA+, com ênfase em políticas de capacitação dos profissionais de saúde e de fomento/indução à instalação de ambulatórios e centros cirúrgicos nos Estados e Municípios.
Cobrar do MS informações sobre atualização do sistema SUS no sentido de permitir a marcação de consultas ginecológicas por homens trans
Cobrar MJ/Depen sobre política nacional de atenção à saúde das pessoas trans encarceradas
Exigir o cumprimento, pelo MS, da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2265/2019, no que se refere ao acesso, por parte das pessoas trans, à hormonoterapia a partir dos 16 anos de idade, e ao acesso a procedimentos cirúrgicos a partir dos 18 anos
Verificar situação do credenciamento do Hospital Universitário Gaffre Guinle (Unirio)
A íntegra da audiência pública pode ser acessada através do canal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Pk9qdZiHFxw.
Fonte: MPF