Jurisprudência TJDFT - Estatuto da pessoa com deficiência. Interpretação sistemática. Ampliação dos limites da curatela
quinta-feira, 03 de fevereiro de 2022, 10h26
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. INTERDIÇÃO. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INTERPRETAÇAO SISTEMATICA. AMPLIAÇAO DOS LIMITES DA CURATELA. RECURSO PROVIDO. 1. Com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), não mais existe a figura do absolutamente incapaz maior de idade. Nesse cenário, a curatela passa a ser medida excepcional, voltada apenas à realização de atos de natureza negocial ou patrimonial, e deve ser fixada segundo o estado e as condições mentais do interditando. 2. Nada obstante, os dispositivos da Lei 13.146/2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência - devem ser interpretados sistematicamente com o Código Civil e a Constituição Federal, atentando-se para situação excepcional e particular de cada incapaz, de modo a garantir-lhe proteção integral segundo as suas necessidades e respeito à dignidade da pessoa humana. 3. Para as hipóteses em que o estado patológico conduz à absoluta e permanente falta de discernimento, inviabilizando a tomada de decisões autônomas, ou mesmo mediante auxílio, o exercício pleno da curatela, e não apenas para efeitos patrimoniais ou negociais, revela-se como sendo a medida mais adequada à proteção integral do Curatelado. Precedentes. 4. Recurso de apelação provido.(TJ-DF 07165502420188070003 DF 0716550-24.2018.8.07.0003, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Data de Julgamento: 10/03/2021, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe : 25/03/2021 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Poder Judiciário da União
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITÓRIOS
Órgão 7ª Turma Cível
Processo N. APELAÇÃO CÍVEL 0716550-24.2018.8.07.0003
APELANTE (S) MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS
APELADO (S)
Relator Desembargador GETÚLIO MORAES OLIVEIRA
Acórdão Nº 1325288
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. INTERDIÇÃO. ESTATUTO DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INTERPRETAÇAO SISTEMATICA. AMPLIAÇAO DOS
LIMITES DA CURATELA. RECURSO PROVIDO.
1. Com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), não mais existe a figura do absolutamente incapaz maior de idade. Nesse cenário, a curatela passa a ser medida excepcional,voltada apenas à realização de atos de natureza negocial ou patrimonial, e deve ser fixada segundo o estado e as condições mentais do interditando.
2. Nada obstante, os dispositivos da Lei 13.146/2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência – devem ser interpretados sistematicamente com o Código Civil e a Constituição Federal, atentando-se para situação excepcional e particular de cada incapaz, de modo a garantir-lhe proteção integral segundo as suas necessidades e respeito à dignidade da pessoa humana.
3. Para as hipóteses em que o estado patológico conduz à absoluta e permanente falta de discernimento, inviabilizando a tomada de decisões autônomas, ou mesmo mediante auxílio, o exercício pleno da curatela, e não apenas para efeitos patrimoniais ou negociais, revela-se como sendo a medida mais adequada à proteção integral do Curatelado. Precedentes.
4. Recurso de apelação provido.
ACÓRDÃO
Acordam os Senhores Desembargadores do (a) 7ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios, GETÚLIO MORAES OLIVEIRA - Relator, LEILA ARLANCH - 1º Vogal e GISLENE PINHEIRO - 2º Vogal, sob a Presidência da Senhora Desembargadora LEILA ARLANCH, em proferir a seguinte decisão: CONHECIDO. PROVIDO. UNANIME., de acordo com a ata do
julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 10 de Março de 2021
Desembargador GETÚLIO MORAES OLIVEIRA
Relator
RELATÓRIO
(...) ajuizou ação de interdição com pedido de curatela em face de seu genitor (...), conforme consta do relatório da r. Sentença:
“[...] aduz que o curatelando é casado com (...), e é pai de (...) e da Requerente, sendo que no ano de 2016 foi vítima de Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico trombolisado, perdendo, desde então a mobilidade e a fala, completamente dependente de terceiros para realização de qualquer atividade.
Assevera que passou a dedicar-se aos cuidados de seu genitor, em especial, garantindo a realização de tratamentos e acompanhamentos médicos necessários para mitigar os impactos causados pelo AVC.
Além disso, informa que o curatelando aufere benefício previdenciário (aposentadoria) e é proprietário dos seguintes imóveis: (i) Apartamento (...) Condomínio Marron; (ii) Apartamento (...) Residencial Parque dos Gerânios, situado às ruas(...)
(...) loteamento rural denominado Parque Belo Horizonte, Luziânia, Goiás; e (iv) Lote 06, loteamento denominado Royal Parque, Águas Lindas de Goiás/GO. Arrola gastos mensais com o curatelando e esposa de R$ 3.681,14. Pede, ainda, a gratuidade judiciária. A inicial veio instruída com documentos indispensáveis à sua propositura.
A emenda da inicial foi recebida, como também foi determinada a designação de audiência de entrevista e deferimento de tutela antecipada de curatela (id. 2574289). Após, veio a assinatura do termo de curatela (id. 927311614).
Audiência de entrevista realizada conforme id. 29909708.
O requerido não apresentou defesa, vindo contestação por negativa geral pela Curadoria Especial. (id 3739796).
Laudo Pericial de id. 57574452. Manifestação final do Ministério Público de id. 60041594, oficiando pela decretação de “curatela plena”. (id Num. 17901898 – pags. 1 /2)
Acrescento que a r. sentença decretou a incapacidade relativa de (...), conforme o seguinte dispositivo:
“Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido deduzido na inicial e DECRETO A INCAPACIDADE de (...), apenas e relativamente para a
prática de atos de natureza patrimonial e negocial, NOMEANDO como curador, sua filha, (...), a quem, na forma do artigo 1.772, do CC ("limites da curatela"), confiro poderes para REPRESENTAR os interesses do (a) curatelado (a) nos seguintes atos da vida civil: a) perante o INSS, podendo requerer e administrar benefício previdenciário/social percebido pelo (a) incapaz; b) perante instituição (ões) financeira (s) perante a (s) qual (is) for depositado o benefício previdenciário/social a que ocuratelado faz jus, podendo, inclusive, movimentar a (s) conta (s) bancária (s) na (s) qual (is) for (em) creditada (s) a (s) importância (s), sendo-lhe, no entanto, vedada a contratação de empréstimos e/ou linhas de crédito de qualquer natureza em nome da ré, salvo por autorização judicial ulterior (Alvará); c) perante instituições de saúde (inclusive clínicas e/ou hospitais) públicas e privadas; d) perante estabelecimentos públicos ou privados para a aquisição de medicamentos em benefício da incapaz; e) administração de seus imóveis. Por conseguinte,
DECLARO A RESOLUÇÃO DO MÉRITO nos termos do artigo 487, I do CPC.
Atentem-se as partes e a Secretaria deste juízo que SENTENÇA que concede a curatela, embora sujeita a recurso, PRODUZ EFEITO DESDE LOGO, nos moldes do art. 1.012, § 1º, inciso VI, do CPC, e, desta forma, qualquer recurso contra a sentença terá, portanto, somente efeito devolutivo, como também na formado artigo 755, § 3º do mesmo diploma legal haverá inscrição da sentença "no registro de pessoas naturais e imediatamente publicada na rede mundial de computadores, no sítio do tribunal a que estiver vinculado o juízo e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça, onde permanecerá por 6 (seis) meses, na imprensa local, 1 (uma) vez, e no órgão oficial, por 3 (três) vezes, com intervalo de 10 (dez) dias, constando do edital os nomes do interdito e do curador, a causa da interdição, os limites da curatela e, não sendo total a interdição, os atos que o interdito poderá praticar autonomamente"
Intime-se a curadora para firmar o termo definitivo de curatela, fazendo constar do documento advertência no sentido de que lhe é vedada a realização de negócios jurídicos de qualquer natureza em nome do curatelado, inclusive a compra e/ou venda de bens móveis e imóveis, a realização de empréstimos e/ou outros contratos, o ajuizamento de ações judiciais etc., devendo, se necessário, buscar a prévia autorização judicial para tanto (Alvará). Além disso, deverá, ainda, constar do termo a advertência de que: Toda e qualquer importância periódica recebida pelo interditado deverá ser utilizada unicamente em benefício deste, seja em sua mantença, seja na constituição de reservas, sob pena de configurar-se, em tese, o ilícito de apropriação indébita. anos, bem como, no prazo de 36 meses, provocar esse Juízo para realização de nova avaliação do estado mental do curatelado, seja para levantamento ou preservação oda curatela, conforme indicação do laudo pericial.
Custas processuais pela requerente, todavia, em face da gratuidade ora deferida ao réu, fica suspensa a exigibilidade dessas verbas por cinco anos, consoante § 3º do artigo 98, do mesmo diploma legal. Não há honorários advocatícios.
Oficie-se ao Registro Civil comunicando-lhe sobre a nomeação de curador para o requerido. Ademais, diante do disposto no artigo 85, § 1º da Lei n. 13.146/2015, oficie-se ao TRE apenas para ciência da presente decisão e adoção das providências que entender necessárias.
Sentença registrada eletronicamente. Publique-se. Intimem-se.
Com o trânsito em julgado, arquivem-se.” ( id 17901900 - Págs 4/5)
Recorre o Ministério Público, objetivando a reforma da r. sentença.
Sustenta, em síntese, que a curatela deve ser exercida de forma plena, haja vista que o laudo pericial não deixa dúvida quanto à condição mental do curatelado, que, induvidosamente, encontra-se nas hipóteses descritas no art. 4º, inciso III e no art. 1.767, inciso I do Código Civil, bem como as provas documentais indicam que não possui discernimento para expressar sua vontade nem sequer em relação à sua própria pessoa, ainda que sob o ponto de vista estritamente jurídico seja “apenas” relativamente incapaz.
Cita precedentes que considera favoráveis à tese recursal, invoca os artigos 723, § único e 755, inciso I do CPC e pugna pela reforma da r. Sentença para determinar que a curatela seja exercida de forma plena, seja para reger o patrimônio do curatelado, seja para reger sua pessoa.
Manifestação da Curadoria Especial, aderindo ao recurso do Ministério Público (id Num. 17901906). Parecer da d. Procuradoria de Justiça pelo conhecimento e provimento do recurso (id 14813680).
É o relatório.
VOTOS
O Senhor Desembargador GETÚLIO MORAES OLIVEIRA - Relator
Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso. para decretar-lhe a incapacidade, apenas e relativamente para a prática de atos de natureza patrimonial e negocial, nomeando como sua curadora a Autora.
Segundo o Apelante, a incapacidade deve ser declarada de forma absoluta, com o exercício da curatela de forma plena para proteção do patrimônio e da pessoa, consoante legislação vigente. Aduz que está comprovado nos autos que o Curatelado não possui discernimento para expressar sua vontade nem sequer em relação à sua própria pessoa, encontrando-se em condição mental que se amolda às hipóteses descritas no art. 4º, inciso III e no art. 1.767, inciso I do Código Civil. Nesse sentido, assevera que a interdição não deve ser limitada à prática de atos de natureza patrimonial e negocial.
Oportuno registrar o que constou da r. Sentença:
“ [...] O processo está suficientemente instruído com os documentos e laudos que apontam a necessidade e conveniência de que, realmente, seja nomeado curador à parte ré. Verifica-se, desde a citação, que o curatelando tem problemas de saúde: “que o intimando não tem condições de assinar. Ressalte-se que o Sr. (...) encontra-se em condições precárias de saúde, bem debilitado, sem condições de se comunicar adequadamente (não fala), não anda, e, apesar de estar em casa, encontra-se numa cama hospitalar na dependência total e sob os cuidados de sua filha, (...) que assinou o presente mandado” (certidão do oficial de justiça de id. 28908113).
Além disso, em entrevista perante este juízo foi possível observar que o curatelando “(...) conseguia responder algumas perguntas gesticulando a cabeça (...)” (id. 29909708).
Por fim veio laudo pericial de id. 57574455, pp. 2/3, onde se destaca, respectivamente, a conclusão e alguns quesitos:
“(...) Em virtude dos comprometimentos e da organicidade dos déficits, há uma dificuldade para o periciando reger sua pessoa e possíveis bens. Ele tem limitações para expressar criticamente sua vontade na esfera cível. Sua doença poderá ter melhora e sugiro reavaliação em 36 meses.
V – RESPOSTAS AOS QUESITOS
a) O periciando é pessoa com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial a qual pode obstruir a sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas?
Ele apresenta deficiência motora que impossibilita sua participação na sociedade
(...)
c) A deficiência é permanente, de longo prazo ou transitaria?
Permanente
(...),
j) O periciando é capaz de exprimir a sua vontade de forma plena, inclusive na esfera da
administração dos seus bens?
Não
k) Se a capacidade de expressão da vontade for limitada, o periciando tem discernimento para
emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado e praticar, em geral, os atos quenão sejam de mera administração?
O periciando não tem condições de executar tais atos
l) O periciando tem discernimento para decidir a respeito de direitos referentes ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde e ao trabalho? Se houver restrição a respeito da capacidade para decidir sobre quaisquer direitos, especifiquem quais seriam essas limitações.
As limitações levam a uma incapacidade de discernimento a respeito desses direitos
m) O periciando tem discernimento e capacidade para manifestar sua vontade e exercer poder de escolha na esfera política, ou seja, exercitar livremente seu direito de voto?
Não (...)
o) Há expectativa de cura, controle dos sintomas ou melhora do quadro, se o periciando for submetido a tratamento adequado?Sim
p) Há necessidade de reavaliação periódica do periciando com realização de nova perícia técnica? Em caso positivo, qual o prazo sugerido para reavaliação? 36 meses”.
Dessa forma, o conjunto probatório carreado aos autos evidencia que o (a) requerido (a), em razão de causa duradoura, não consegue exprimir validamente sua vontade, dependendo da ajuda de terceiros para a prática de todos os atos de sua vida cotidiana e civil, consoante letras J, K e L dos quesitos respondidos pelo perito. [..]” (Num. 17901899)
Como consignado na própria Sentença, o acervo probatório evidencia a deficiência permanente do Curatelado, para todos os atos de sua vida cotidiana e civil. Nada obstante, considerando o disposto no artigo 85, § 1º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), o i. Magistrado concluiu como imperioso o resguardo da capacidade relativa do Curatelando, limitando a curatela aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, sem alcançar o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
Com efeito, dispõe o artigo 85 e §§ da Lei 13.146/2015:
“Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado
Ocorre que os dispositivos da Lei 13.146/2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência – devem ser interpretados sistematicamente com o Código Civil e a Constituição Federal, atentando-se a situação excepcional e particular de cada incapaz, de modo a garantir-lhe proteção integral segundo as suas necessidades e respeito à sua dignidade.
“[..] Os autos indicam, portanto, que o interditado, ao menos por ora, não consegue exprimir a sua vontade. Assim, diante desse contexto, a curatela, ao contrário do determinado na sentença, deve ser exercida de forma plena.Com efeito, verifica-se que o laudo pericial de ID: 57574455 não deixa dúvida quanto à condição mental do curatelado, que, induvidosamente, encontra-se nas hipóteses descritas no art. 4º, inciso III e no art. 1.767, inciso I do Código Civil.
Por outro lado, as provas documentais indicam que o curatelado não possui discernimento para expressar sua vontade nem sequer em relação à sua própria pessoa, ainda que sob o ponto de vista estritamente jurídico seja “apenas” relativamente incapaz.
Desse modo, constatada tal situação, a interdição não deve ser limitada à prática de atos de natureza patrimonial e negocial, tal como determinado na sentença, a fim de representá-lo.
Nos termos já expostos na manifestação do Ministério Público de ID: 60041594, a norma jurídica, por si só, não tem força para alterar a realidade dos fatos, ou seja, independentemente da definição do instituto jurídico (incapacidade absoluta ou relativa), continuam a existir hipóteses em que a natureza da deficiência impossibilita a expressão da vontade para além dos atos meramente negociais.
Desse modo, a Lei nº 13.146/15, para promover a efetiva defesa dos direitos das pessoas em situação de “incapacidade absoluta de fato”, ainda que maiores, deve ser interpretada conforme a Constituição. Assim, permitir que a curatela restrinja-se, exclusivamente, aos atos de natureza patrimonial e negocial, quando se sabe que o curatelado não possui o mínimo de discernimento, capacidade de autodeterminação e juízo crítico, resulta em uma proteção deficiente ou insuficiente às pessoas em situação de “incapacidade absoluta de fato”, que permaneceriam sem um curador para protegê-las nas emais esferas das liberdades fundamentais, o que, em última análise, violaria a dignidade da pessoa humana.
Logo, em que pese o eufemismo terminológico do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é necessário conferir grau de proteção adequado ao caso concreto.
[...]
Vale lembrar, ainda, que a interdição é procedimento que está submetido ao art. 723, § único do Código de Processo Civil, o qual autoriza o magistrado a afastar-se do critério de legalidade estrita.
Ademais, segundo o art. 755, inciso I, também do Código de Processo Civil, cabe ao juiz fixar os limites da curatela segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito.
Desse modo, considerando que o Juízo constatou que o curatelado é incapaz de exprimir sua vontade de forma plena, os limites impostos na sentença apelada não são suficientes para garantir a proteção aos seus direitos, uma vez que ele necessita do auxílio de familiares para reger sua pessoa, de acompanhamento e supervisão para os atos da vida diária, deve a curatela abranger não apenas os atos negociais e patrimoniais, mas também àqueles referentes à sua pessoa.
Assim, ainda, que o curatelado, por ficção jurídica, seja considerado apenas relativamente incapaz, é imprescindível a curadora seja nomeada para exercer a curatela de forma plena, seja para reger seu
patrimônio, seja para reger sua pessoa.” (ID Num. 19624013)
segundo o qual a curatela passa a se restringir afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
O que se impõe, no caso, é a observância do estado e das condições mentais do interditando de modo que a curatela seja compatível com o grau de dependência e discernimento do incapaz.
É o que prevê o artigo 755 do CPC, ao dispor que o decreto de interdição “considerará as características pessoais do interditado, observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências”. No mesmo sentido, o § 3º do art. 84 da da Lei n. 13.146/2015 que define a curatela de pessoa com deficiência com medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso.
Não se ignora que o i. Magistrado, ao invés de aplicar a regra geral da mera assistência ao relativamente incapaz, concedeu a curadora poderes para representação. Todavia, no caso, diante do conjunto probatório, que atesta estado clínico do Interditando que não lhe permite decidir por si próprio, necessitando permanentemente de terceiros para as atividades mais básicas do dia a dia, tem-se que uma representação limitada aos atos patrimoniais resulta insuficiente para suprir as necessidades do incapaz, merecendo prosperar a irresignação do MPDFT para conceder ao curador poderes amplos, em atenção à proteção integral e plena do Curatelado.
Oportuno observar que a perícia psiquiátrica de id 17901886 registrou que a incapacidade resultou de acidente vascular cerebral de natureza isquêmica de grande extensão, ressaltando que o periciando não deambula e não verbaliza, necessita de cuidador devido às limitações motoras, está restrito ao leito e demanda auxílio para todas as atividades do cotidiano. Destacou-se ainda que essa queda funcional o impossibilita para os atos da vida e que a dificuldade para expressar a sua vontade e sua capacidade crítica está comprometida.
Ora, para as hipóteses em que o estado patológico conduz à absoluta e permanente falta de discernimento, inviabilizando a tomada de decisões autônomas, ou mesmo mediante auxílio, como no caso, embora a novel legislação lhes atribua incapacidade relativa, tem-se que o exercício da curatela plena revela-se como sendo a medida mais adequada, como bem salienta o Apelante.
Nesse sentido cito precedentes da Casa, dentre os quais Julgados desta egrégia Turma, inclusive de minha relatoria:
“APELAÇÃO. INTERDIÇÃO. CURATELA. LIMITES. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CÓDIGO CIVIL. PROTEÇÃO INTEGRAL. AMPLIAÇÃO. CURATELA PLENA. POSSIBILIDADE.
1. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015, deve ser interpretado sistematicamente com o Código Civil e a Constituição Federal para assegurar às pessoas com deficiência um sistema de proteção integral de acordo com as suas necessidades e em prol de sua dignidade. 2. O Juiz deve fixar os limites da curatela de acordo com o estado e o desenvolvimento mental do interdito (CPC, art. 755, I).
3. Comprovado que o curatelado apresenta retardo mental grave e não possui discernimento para gerir a própria vida, nem para tomar quaisquer decisões, deve-se ampliar a curatela para os atos de natureza pessoal, pois a sua limitação a aspectos exclusivamente patrimoniais não assegura a proteção integral aos seus direitos. Precedentes.
“APELAÇÃO CÍVEL. INTERDIÇÃO. CURADORIA. LIMITES DA CURATELA. INTERDIÇÃO PLENA. DEPENDÊNCIA TOTAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. OBSERVÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ABRANDAMENTO DO RIGOR DA LEGISLAÇÃO DE INCLUSÃO. SENTENÇA MANTIDA.
1. A interdição - exceção ao estado normal - refere-se à limitação individual extrema, na qual ocorre a privação do indivíduo, a priori com capacidade plena, contudo que requer restrição ao exercício de seus direitos e liberdades conferidos pela legislação.
2. Faz-se necessário o amparo e proteção ao interditando, sendo necessária a constituição da curatela para resguardar a segurança da pessoa interditada e de seus bens. Observa-se que o referido procedimento não visa apenas à proteção dos bens do curatelado, mas se mostra necessário à própria dignidade da pessoa humana que requer cuidados.
3. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), no entanto, trouxe alterações importantes com relação à curatela. De acordo com o art. 84, § 1º, do referido Estatuto, é possível a interdição de pessoa capaz, dispondo que, "quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela". 4. Nos termos doart. 85 da Lei 13.146/15, a curatela engloba apenas os aspectos patrimoniais, ou seja, os aspectos existenciais referentes à vida, sexualidade, matrimônio, educação, saúde, voto, trabalho, dentre outros, não serão afetados. Nessa nova perspectiva de tutela legal, os deficientes não mais são considerados absolutamente incapazes, e sim relativamente incapazes. Caso haja impossibilidade real e duradoura da pessoa manifestar sua vontade, será necessária a curatela.
5. Na hipótese de dependência total da pessoa com deficiência com terceiro, antes da observância da referida legislação de inclusão, torna-se indubitável a observância do fundamento-base da República Federativa do Brasil, qual seja, "a dignidade da pessoa humana".
6. Ressalte-se que não se ignora o disposto no art. 85 da Lei 13.146/15 e nem a vontade da sociedade brasileira de se realizar a inclusão das pessoas com deficiência. No entanto, especificamente para as situações em que o deficiente depende totalmente de outra pessoa, é imprescindível o abrandamento do rigor tecnicista da legislação para fazer prevalecer o fundamento primordial de todo ser que é a dignidade da pessoa humana.
7. Assim, diante do conjunto probatório, verifica-se acertada a interdição, de modo pleno, abrangendo atos de natureza pessoal em razão da falta de discernimento para a tomada de qualquer decisão, ou para os simples atos de cuidado e até de higiene pessoal, circunstância que deve ser sopesada na eventualidade de decidir-se a respeito de eventual tratamento médico ou mesmo a ingestão de medicamentos. Logo, nesse diapasão, bem se vê que a interdição não pode ficar restrita a aspectos meramente patrimoniais
8. Verifica-se acertada a interdição, de modo pleno, abrangendo atos de natureza pessoal em razão da falta de discernimento para a tomada de qualquer decisão.
9. Recurso conhecido e desprovido”. (20160310152995APC – ac 1043359 - 6ª TURMA CÍVEL – Rel. Des. CARLOS RODRIGUES - DJE : 05/09/2017) “APELAÇÃO CÍVEL. LEI 13.146/2015. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. CURATELA. LIMITES DA CURATELA. PODERES DE REPRESENTAÇÃO. AMPLIAÇÃO. POSSIBILIDADE. LAUDO PERICIAL. LESÕES NEUROLÓGICAS GRAVES E IRREVERSÍVEIS. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. 1. Apelação interposta pelo Ministério Público requerendo a reforma da sentença para ampliação do âmbito protetivo da curatela, diante das limitações severas do estado de deficiência apresentado pela requerida, considerando a conclusão pericial de que a curatelada não possui capacidade de autodeterminação que lhe permita reger sua própria vida de forma autônoma e independente. 2. O art. 1.767 do Código Civil reza que estão sujeitos à curatela “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade” (inciso I). Nessa situação se enquadra a requerida, consoante o laudo pericial que atestou sua incapacidade irreversível e absoluta, sem expectativa de cura ou melhora do quadro de saúde. 3. Na hipótese visivelmente extraordinária em que a extensão da intervenção sobre a autonomia privada da curatelada visa, sobretudo, proteger sua dignidade de pessoa humana, uma vez que, não tem condições de praticar quaisquer atos personalíssimos (intuito personae), em face das lesões neurológicas graves e permanentes que comprometeram sua capacidade de autodeterminação, verifica-se mais acertada a curatela de modo pleno, abrangendo atos de natureza pessoal em razão da falta de discernimento para a tomada de qualquer decisão ou para os simples atos de cuidado, de higiene pessoal, tratamento médico ou mesmo para ingestão de medicamentos. Logo, nesse diapasão, a curatela não pode ficar restrita a aspectos meramente patrimoniais. Sentença parcialmente reformada. 4. Recurso provido .”
(0714038-68.2018.8.07.0003 – ac. 1244355 - Data de Julgamento: - 22/04/2020 - 7ª Turma Cível -Relª Desª LEILA ARLANCH -PJe : 29/04/2020
“CONSTITUCIONAL.CIVIL. FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL.INTERDIÇÃO. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. PESSOA MAIOR. INCAPACIDADE RELATIVA. CURATELA. LIMITES. REPRESENTAÇÃO. ATOSDA VIDA CIVIL.PATRIMÔNIO. DISPOSIÇÃO. PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL.
1.Com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), não mais existe a figura do absolutamente incapaz maior de idade.
2.Oart. 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece às pessoas com deficiência o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Nesse cenário, a curatela passa a ser medida excepcional, voltada apenas à realização de atos de natureza negocial ou patrimonial, e deve ser fixada segundo o estado e as condições mentais do interditando,de modo que a responsabilidade outorgada ao curador seja compatível com o grau de dependência e discernimento do incapaz (art. 755 do Código deProcessoCivil e§ 3ºdo art. 84da Lei n. 13.146/2015).
3.Para as hipóteses em que o estado patológico conduz à absoluta e permanente falta de discernimento, inviabilizando a tomada de decisões autônomas, ou mesmo mediante auxílio, embora a novel legislação lhes atribua incapacidade relativa,ainterdiçãototal doindivíduoe a atribuição de poderes derepresentaçãoao curador nomeado revelam-se medidas mais adequadas àsnecessidades do interditando.Precedentes.
4.A curatela deve ser exercida em benefício exclusivo do curatelado, sendo prudente que as alterações mais significativas do patrimônio gerido passe pelo crivo do Julgador.
5.Recurso de apelação conhecido eparcialmenteprovido”. (0004648-37.2017.8.07.0008 – AC. 1250246 - 7ª Turma Cível – Rel. Des. GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA - PJe : 18/06/2020)
Sendo assim, atento às peculiaridades do caso concreto, tenho que a r. Sentença merece ser reformada para que a incapacidade de (...) seja declarada de forma absoluta, nomeando-se a Autora para o exercício da curatela plena a fim de representá-lo e assisti-lo em todos os atos da vida civil e não apenas para efeitos patrimoniais ou negociais, porquanto estes são insuficientes para suprir as necessidades do interditando.
DOU PROVIMENTO, POIS, PROVIMENTO AO RECURSO.
É COMO VOTO.
Com o relator
A Senhora Desembargadora GISLENE PINHEIRO - 2º Vogal Com o relator
DECISÃO