Audiência Pública debate reintegração social e políticas de não repetição no sistema prisional de MT
quinta-feira, 10 de julho de 2025, 15h15
Na tarde desta quarta-feira (09 de julho), a audiência pública para o ‘Plano Estadual de Mato Grosso para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões – Plano Pena Justa’ foi marcada pela participação inédita e democrática de pessoas privadas de liberdade, recuperandos, recuperandas e seus familiares de todo o estado, além de representantes de diversos setores da sociedade civil envolvidos com o sistema prisional. Com foco nos quatro eixos do Plano Nacional Pena Justa, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a iniciativa do Comitê de Políticas Penais do Estado de Mato Grosso visou alinhar as ações locais à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF nº 347, que busca um sistema prisional mais justo e constitucional.
Pela manhã, foram apresentadas propostas para os eixos 01 e 02, Controle da Entrada e das Vagas do Sistema Prisional e Qualidade da Ambiência, dos Serviços e da Estrutura Prisional. No período da tarde, o Eixo 03 tratou de "Processos de Saída da Prisão e da Reintegração Social" e o 04 focou em "Políticas de Não Repetição do Estado de Coisas Inconstitucional".
Processos de Saída da Prisão e da Reintegração Social
A diversidade de vozes na audiência pública, que contou com 40 participantes previamente selecionados por representatividade, e profissionais atuantes do sistema prisional, foi fundamental para enriquecer o debate.
População LGBT+ no cárcere
As falas de Iago Kayron Gomez da Silva, da comunidade LGBT+ do presídio Agamenon, e de Samira Dominique da Silva Queiroz, nome social de Matheus Dominique, egressa LGBT+, trouxeram à tona a dura realidade enfrentada por essa população.
Iago Kayron expressou a falta de ressocialização, não por ausência de oportunidades, mas pela desumanização.
Samira Dominique, egressa, afirmou que a população LGBT+ enfrenta preconceito e exclusão, e que é crucial "reconectar-se com sua dignidade". Ela enfatizou que "estar no cárcere não define a pessoa" e que a ressocialização só pode ocorrer de forma humana, sem agressão.
Apesar de ter vencido o cárcere com qualificações e estar há um ano fora, monitorada por tornozeleira eletrônica, ela lamentou o desrespeito ao nome social, mesmo com registro civil como Samira. Ela pediu que o "Pena Justa" garanta mais acesso ao estudo e que a escolha de diretores não se baseie apenas em tempo de sistema. "As pessoas estão pedindo socorro."
Reintegração social e Escritórios Sociais
A psicóloga Milana Sílvia Higino Mendes, coordenadora do Escritório Social de Sorriso desde março de 2024, apresentou as dificuldades e propostas para a reintegração digna de egressos. Ela explicou que o Escritório Social atende egressos em até seis meses após a soltura, o que já é um desafio devido à imprevisibilidade do tempo de pena. Milana apresentou quatro propostas: atuação em rede, com definição de fluxos e protocolos para fortalecer a intersetorialidade; acesso à informação dos alvarás de soltura para orientar os egressos sobre suas medidas cautelares; sistema unificado, semelhante a outros sistemas já existentes; e previsão orçamentária, com repasse direto para pagar, por exemplo, pela divulgação do serviço, pois muitas unidades prisionais ainda não o compreendem.
Milana alertou que a falta de cidadania, aluguel social ou repúblicas, e a influência de pessoas em situação de rua, levam à reincidência. Ela também destacou a necessidade de tratamento de saúde mental, pois muitos saem com problemas decorrentes do tratamento nas prisões. A psicóloga recomendou investimento contínuo na capacitação técnica das equipes multidisciplinares para qualificar o acolhimento, reduzir estigmas e garantir a seleção adequada de servidores.
O direito ao esquecimento
A professora de Direito Penal, Criminologia e Processo Penal da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Vládia Soares, com mais de 20 anos de experiência no sistema prisional, abordou o direito ao esquecimento como pilar da ressocialização. "Sem esquecimento não há ressocialização", afirmou, defendendo que, após o cumprimento da pena, a pessoa tem o direito de não ter seu passado relembrado para evitar o estigma. Ela ressaltou que erros não devem ser "tatuados" no corpo das pessoas, e que todos têm o direito de recomeçar e frequentar espaços públicos sem preconceito.
Políticas de não repetição do Estado de Coisas Inconstitucional
Do Eixo 04, Gabriel Salazar, da União das Faculdades Católicas do MT (Unifacc) e membro do Comitê Estadual de Políticas Penais de Mato Grosso, questionou a participação do Poder Legislativo para a superação de problemas estruturais via legislação. Ele destacou a necessidade de estruturar mecanismos de escuta, citando os Conselhos da Comunidade e a inclusão de familiares.
Salazar propôs que o Comitê mapeie os campi da UFMT e Unemat para fomentar capacitações para os egressos. Ele enfatizou a importância de envolver as faculdades na formação de futuros profissionais do sistema penitenciário, trabalhando a cultura e a pesquisa para combater o estado de coisas inconstitucional.
A audiência pública ocorreu de forma híbrida no auditório Gervásio Leite, do TJMT, e foi transmitida pelo canal oficial do Tribunal pelo YouTube, possibilitando que reeducandos das unidades prisionais do estado participassem. A audiência contou com 40 pessoas previamente selecionadas por sua representatividade social, institucional e diversidade, incluindo marcadores como raça, gênero, identidade LGBTQIAPN+, etnia indígena, e vínculos com pessoas privadas de liberdade ou egressas. Para garantir a acessibilidade, houve tradução simultânea em Língua Brasileira de Sinais (Libras) durante todo o evento.
Plano Pena Justa Mato Grosso
É a versão específica do plano nacional para o estado e é construído a partir de uma série de discussões e ações coordenadas pelo Comitê de Políticas Penais do Estado de Mato Grosso, em alinhamento com as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347.
O Comitê é coordenado pelo juiz Geraldo Fernandes Fidelis Neto, coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo (GMF-MT) do TJMT, e pelo secretário estadual de Justiça, Vitor Hugo Bruzulato Teixeira.
Plano Pena Justa nacional
O Plano Pena Justa é uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em colaboração com diversos órgãos e a sociedade civil, para enfrentar a grave crise do sistema prisional brasileiro. Sua criação atende à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 347, que reconheceu o "estado de coisas inconstitucional" nas prisões do país, ou seja, uma violação massiva e sistêmica de direitos fundamentais.
Lançado com mais de 300 metas a serem cumpridas até 2027, o Plano Pena Justa se estrutura em quatro eixos principais e conta com o apoio técnico do programa Fazendo Justiça, coordenado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), reforçando o compromisso com um sistema prisional que respeite os direitos humanos e contribua para a segurança pública.
Marcia Marafon / Foto: Alair Ribeiro
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Fonte: TJMT